sexta-feira, 16 de agosto de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Entre avanços e freadas, a memória do tempo se mede pelos tabefes que recebemos na cara

Aparecido Raimundo de Souza


COMEÇAMOS A ESCREVER DESDE que ingressamos no grupo escolar, aos nove anos. Antes da escola, ficávamos na biblioteca que meu avô mantinha em casa. Era uma residência enorme, de muitos cômodos e os livros ocupavam numerosas prateleiras fixas às paredes que iam do chão ao teto e se estendiam para todas as demais dependências. Até nos corredores, banheiros e quartos elas podiam ser encontradas todas, claro, repletas de autores os mais diversificados. 

Quando vovô morreu, coube a nós, por vontade própria, a doação de todo o acervo, naqueles idos, em torno de nove mil livros, hoje, passando dos doze mil ou mais. Em face disso, não há um autor nacional ou estrangeiro que não tenhamos a coleção completa. Enquanto papai, meus tios e tias brigavam pelos bens que vovô conseguira juntar em vida, casas, terrenos, chácaras, apartamentos, carros, sítios (além de elevados valores em contas bancárias) às carreiras e espavoridos, corremos a tirar das vistas deles o nosso rico amontoado de volumes, vez que a maioria dos consanguíneos queria donativar essas verdadeiras obras primas e títulos raros (numa repartição escabrosa e infeliz) às escolas, instituições e bibliotecas da cidade.

Hoje, nosso maior orgulho são esses volumes que se perdem de vista (entre eles, celebridades como Jorge Amado, Clarice Lispector, Hermann Hesse, Machado de Assis, Adelaide Carraro, Cassandra Rios, Ranulfo Prata, José Lins do Rêgo, Érico Veríssimo, Lya Luft, José Mauro de Vasconcellos, Albert Camus, Jean Paul Sartre, Saint-Exupéry, William Golding, Níkos Kazantzákis, Oscar Wilde, Paulo Coelho, André Gide, Paul Claudel, François Mauriac, Roger Martin du Gard, Paul Valéry, Henry James, Georges Bernanos, E. L. Doctorow, Mikhail Bulgákov, Luiz Fernando Veríssimo, João Cabral de Melo neto, Otávio de Faria, Ricardo Pinto, Rachel que Queiroz, Adelia Prado, Cecilia Meireles, Camões, José Saramago, Jay Baruchel) e tantos mais. Todos esses nomes estão aqui, vivos, ao alcance das nossas mãos. Sem contar os autores que batizamos como emergentes, ou, os (chegados agora) como Nicholas Sparks, George R.R. Martin, Charles Bukowski, Cressida Cowell, Guilherme Pinto, Luisa Geisler, Tatiana Salem Levy, Daniel Galera, Vanessa Barbara, Raphael Montes, Chico Mattos, Antonio Xerxenesky, Marcelino Freire, Juan Plablo  Villalobos, Ivana Arruda Leite, e outros.


O mal das pessoas, hoje em dia, é que elas não se dedicam ao simples da vida, ao cotidiano do agora, dificilmente pegam um livro para ler. A nosso entender, todos perderam a sensibilidade do que custa tão pouco e faz um bem enorme à alma. Ao espírito, de um modo geral. Essa geração que aí está trocou o sonho de uma leitura salutar, de um enredo das mil e uma noites pelas futilidades das redes sociais, pelas imbecilidades de um aparelho celular último tipo.

Doença contagiosa e incurável de uma galera de não pensantes, de medíocres retrogradados que viraram máquinas e zumbis da evolução avassaladora. Essa enorme onda de cidadãos e cidadãs, perdeu, na verdade, deixou ir para o ralo, o carinho e a magia gratificante de viajar confortavelmente pelo mundo inteiro nas asas de um bom romance ou de um escritor que bem perto de nós, fala, ou mais precisamente dentro de nossas almas, canta, esmiúça, detalha, tudo aquilo que gostaríamos de ouvir de quem verdadeiramente amamos. Sem leitura, o cidadão não abre as ideias, não se recicla não se edifica não se renova. Permanece burro, pobre, miserável, resumido, atacanhado na sua própria estupidez.

Mandem, por curiosidade, um estudante de escola pública ou particular, ou mesmo um burguês de faculdade escrever dez linhas sobre um tema qualquer. Vamos mais longe nessa loucura. Peçam a um advogado para elaborar uma petição, de improviso, só consultando os códigos. Temos certeza que os senhores e as senhoras ficarão horrorizados. E o que venha a ser isso? Simples, meus amados. É a evolução galopante dos novos tempos no massacre constante do progresso atropelativo que outrora nos fazia ser mais felizes, ou mais “nós mesmos”, como, por exemplo, víamos as meninas brincando de bonecas, de amarelinha, de cabra cega, de pula corda. Mesma ótica, as matinês no cine local, os meninos jogando bolinhas de gude, nadando nos açudes e rios perto de casa, das “soltações” de pipas, das peladas nos finais de tarde, nos campos de terra batida ao longo da linha do trem, cujos trilhos se perdiam na distância das Marias- fumaça... Hoje nos deparamos, horrorizados, atônitos, infelizmente, com o inverso, com o antagonista, com o hostil. Grosso modo, nos confrontamos com o contrário. Um infenso que amedronta que atemoriza que desanima que acovarda e que assombra.

Um bando de apalermados, de tolos, de atrapalhados e rústicos, agarrados feitos pulgas em cachorros, a seus celulares, tirando onda. Fones ou “consoladores de cornos” atochados nos ouvidos, curtindo músicas cujas letras nem o capeta têm prazer em ouvir. Essa juventude se perdeu das coisas boas. Nossos jovens viraram escravos se deixaram se permitiram ser submissados. O que vemos, no geral, gente sem identidade, agrilhetada pela arrogância de uma geração de robotizados prostrados, trucidados, pisoteados, pela famigerada INTERNET.


Não nos regozijamos mais em flagrarmos os pais conversando com seus filhos, ou os filhos com seus pais. Nas ruas, nas praças, nos restaurantes, nos ônibus, em nosso local de trabalho, nas igrejas, nos trens, nos aviões, dentro de nossas residências, todos, todos, sem exceção, estão concentrados nas telas de seus aparelhos celulares ultrassofisticados. Saíram de cena, foram para as coxias, os carinhos dos tempos dos nossos avôs e avós. Sumiram, nos bastidores do “para sempre”, os gestos simples de amor, as conversas as mais variadas nos barzinhos. Não vemos mais as praças com casais namorando, os velhinhos com suas senhorinhas, de mãos dadas, tampouco deparamos com as bandinhas de músicas dando vida aos coretos, tocando melodias inebriantes dos tempos idos.

Alguns dos senhores se recordam das cadeiras ao longo das calçadas depois do jantar com a família? Lembram, ao menos, da vizinhança se confraternizando, contando piadas, jogando dominó e conversas foras, até depois da meia noite? Contribuímos com a nossa cegueira sem volta, dando lugar a bandidos e ladrões (que se aproveitando da burrice degradante dessa turba de debilitados mentais) soltos por aí, a bel-prazer da impunidade, embarcando em pontos estratégicos com o intuito de roubar e saquear os incautos, e, pior, às vistas e às barbas de todos. Quando não lhes tiram a vida...

Uma pena, senhoras e senhores. Uma apertura, no peito, uma dor afogada no coração, em face de não podermos dar marcha à ré no tempo. Regressar, regredir, restaurar, reembolsar o passado que nos fazia uma geração de criaturas felizes. “Devoltar” no ontem, ao menos, naquela quadra antecedentemente introdutiva em que todos tinham tempo para serem felizes e respiravam absolviam, estimulavam o agora, o tempo dádiva, o tempo regalo, o tempo prenda. Nessa ótica fosse revitalizando as pequenas coisas boas e alegres da existência plena, fosse, igualmente, reconfortando, reestimulando num bucólico olhar ou num simplório e despreocupado aperto de mãos. 
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo. 16-8-2019

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