O PCP teve sempre – e apenas – a força que,
por interesse próprio, os outros lhe deram. Se esteve na Alameda durante o
estado de emergência, foi porque o Estado quis, e não porque o PCP se impôs.
Outros já notaram a dualidade
de critérios do regime em relação ao sindicalismo comunista, deixado à solta na
Alameda, e a hipotéticos peregrinos de Fátima, logo ameaçados com o bloqueio das estradas. Mas há outra duplicidade que vale a pena registar: a do
próprio sindicalismo comunista. Na Alameda, durante o estado de emergência,
quis conviver; mas agora, terminado o estado de emergência, os mesmos que na
Alameda andaram aos montes pelas faixas laterais, depois do espetáculo
norte-coreano no relvado, parecem muito assustados pela ideia de ir ensinar para as escolas sem todos serem testados à entrada.
Em ambos os casos, como é bem
de ver, trata-se de exibições de força: as coisas só podem ser o que o PCP quer
que sejam. Daqui se poderia concluir que o PCP é um colosso. Mas não. A parada
da Alameda, que tornou ridícula a autoridade do Estado em Portugal, não provou
a força do PCP. Nem mesmo o aviso de que a Festa do Avante é para se fazer,
mesmo com todos os outros festivais proibidos. Convém lembrar que o PCP se
ficou, nas últimas legislativas, por 6,33% dos votos e 12 deputados. Perdeu
cinco lugares no parlamento. Mesmo no tempo da sua máxima influência, em 1975,
não foi além dos 12%. O PCP teve sempre – e apenas – a força que, por interesse
próprio, os outros lhe deram. Para começar, a força que lhe emprestou a
ditadura salazarista, que fingia que toda a oposição era comunista. Depois, a
força que lhe deu o MFA, ao entregar-lhe, por exemplo, os Sindicatos Nacionais
do corporativismo. E finalmente, desde 1976, a força que lhe concede o PS. Sim,
o PS. Em 1975, os socialistas não se submeteram a Álvaro Cunhal. Mas depois,
também nunca se dispuseram a livrar o país das “conquistas da revolução” que
eram a base da influência comunista, a não ser sob pressão de maiorias de
direita, como em 1982 ou em 1989.
O PCP tem cada vez menos
câmaras municipais e a CGTP cada vez menos filiados. Os novos sindicatos
escapam-lhe, como se viu na greve dos motoristas de materiais perigosos. A sua
força é a do velho sindicalismo da função pública e das empresas do Estado,
sobretudo de transportes – o instrumento das “greves gerais”. Mas teria ainda
menos importância, sem a reversão, em 2016, da concessão a privados dos
transportes públicos de Lisboa e do Porto. Ora, foi o PS que ofereceu isso aos
comunistas – o que, só por si, valeu a “geringonça” para o PCP –, tal como
agora, com a presidência da república, lhes ofereceu a Alameda.
Nada disto é surpreendente. Os
comunistas dão jeito ao PS. Viabilizam-lhe leis e orçamentos, mas sobretudo
fixam o medo e o ressentimento da direita, justificando-lhe o papel de
“charneira” a que o PS sempre aspirou. Rui Rio presta-se ao jogo, com o seu
sonho de permitir aos socialistas governarem sem estarem constrangidos pelo
PCP. Desse ponto de vista, o teatro da Alameda também serviu a uma direita que
falhou o seu papel histórico, que era representar o reformismo, e não ajudar o
PS a estar à vontade no poder.
O PCP é hoje um dos side-shows (o
outro é a “extrema direita”) que disfarçam a verdadeira questão da democracia
portuguesa: o peso crescente do Estado numa sociedade cada vez mais
fragilizada, e a identificação desse Estado com um partido, o PS. O poder
socialista, com as suas clientelas, faz-se sentir em tudo, até na barragem de
fogo contra Rodrigo Guedes de Carvalho, pela suposta irreverência com que
entrevistou a ministra da Saúde. Não, na Alameda não esteve o PCP. Ou antes, só
esteve o PCP, porque estiveram o PS e a presidência da república, que criaram a
excepção, e o PSD, cuja influência nos acontecimentos consiste cada vez mais em
não ter influência nenhuma.
Título e Texto: Rui Ramos,
Observador,
8-5-2020, 1h57
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