sexta-feira, 1 de maio de 2020

O dever de desobediência

Henrique Pereira dos Santos

O governo determinou um conjunto de regras de governo das nossas vidas a vigorar enquanto o governo quiser, a pretexto de nos proteger da ameaça de uma epidemia.

À cabeça dessas regras está um obrigação geral de reserva que, tanto quanto percebi, determina a minha obrigação de não sair de casa a não ser quando as circunstâncias o exijam, pondo nas mãos da polícia o poder arbitrário de me mandar para casa se o agente concreto que me pergunta o que estou a fazer na rua assim o entender.

Não há fundamento técnico e científico nenhum que dê suporte a esta decisão.

Mesmo as pessoas que olham para isto tudo apenas com os olhos da defesa em relação à doença - um absurdo social com forte apoio popular - reconhecem que as medidas neste sentido decorrem apenas do bom senso, e não de qualquer evidência de eficácia, e muito menos de necessidade ou utilidade, em manter confinadas pessoas saudáveis por tempo indeterminado.

Ninguém pode dizer que será possível fabricar uma vacina para esta doença, muito menos quando estará disponível, qual o seu grau de eficácia e quanto tempo demorará a imunidade que ela vier a conferir mas aceitamos que nos digam que até esse momento, a nossa vida está condicionada pelo dever geral de reserva, e não pela nossa liberdade e o respeito pela liberdade dos outros.

Ou seja, sem qualquer fundamento sólido para além de modelos matemáticos e bom senso, o governo achou normal violar uma série de direitos constitucionais das pessoas comuns, por tempo indeterminado.

O simples facto do governo ter omitido (obrigado João Gonçalves pela chamada de atenção) qualquer perspectiva do que pretende fazer para resolver os gravíssimos problemas que a proibição de visitas aos lares levanta, condenando milhares de pessoas em fim de vida e indefesas à solidão, demonstra bem como a prepotência é a primeira premissa das decisões tomadas.

Mesmo num sector em que o Estado tem fortes responsabilidades na garantia de proteção dos grupos de maior risco, onde ocorrem, não apenas em Portugal, mas em toda a Europa, 40 a 50% das mortes com esta nova doença, a única coisa que o Estado se propõem fazer é manter uma regulamentação administrativa desumana e que, para mais, foi incapaz (e eu não estou a dizer que haveria soluções para ter sido de outra maneira) de assegurar a proteção que se pretenderia assegurar.

A única coisa que, como sociedade, temos para oferecer às pessoas de maior risco, mais velhas e indefesas é acrescentar ao medo e à insegurança da situação a solidão imposta, mesmo quando essas pessoas prefiram, legitimamente, correr o risco de viver a vida que lhes resta na companhia de quem lhes é próximo.

A nós, os que não estamos nesta situação, só nos resta uma atitude digna: resistir à prepotência do governo e estar lá, ao pé de quem queira e prefira correr esse risco, desobedecendo.

Outro exemplo simples: a distância social recomendada pela Organização Mundial de Saúde é de um metro. Vamos admitir que queremos ser mais prudentes e usemos um metro e meio. Ou seja, um raio de pouco mais de sete metros quadrados, arredondemos para dez metros quadrados. Assim sendo, qual é o fundamento para cada loja ter de garantir 25 metros quadrados por cliente? Ninguém sabe, o que sabemos é que a consequência concreta é a lotação das lojas diminuir drasticamente para menos de metade, diminuindo administrativamente a liberdade económica do operador sem qualquer fundamento. A liberdade de quem não se queira meter em espaços confinados com esta lotação não seria minimamente beliscada, mas ainda assim o governo entende que pode restringir a liberdade do dono da loja e dos clientes com base em critérios que simplesmente não têm qualquer fundamento.

Eu não sou jurista, mas diria que há aqui uma violação flagrante do código do procedimento administrativo ao tomar-se uma decisão administrativa sem fundamento (ou com fundamento obscuro) e sem qualquer respeito pelo princípio da proporcionalidade.

A epidemia não suspendeu os direitos fundamentais das pessoas, no máximo pode fazer-nos aceitar a compressão desses direitos de forma proporcional à ameaça, com fundamentos de defesa dos bens coletivos bem claros e com absoluta transparência.

Não foi essa a opção do governo, o que é mau, mas o pior é que não foi essa a opção do governo porque somos nós que pedimos ao governo que se esqueça da liberdade para nos acalmar o medo.

Aos outros, ao que prezam a liberdade e a responsabilidade inerente, só lhes resta desobedecer.
Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 1-5-2020

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