O que mais vejo a presente situação dos EUA
é a necessidade de encontrar sempre alguém que moralmente esteja abaixo de nós,
que represente, por contraste, todo o esplendor da nossa superioridade.
Paulo Tunhas
Escapa-me por inteiro a razão
de ser do entusiasmo gerado pelos atuais protestos contra a violência policial
que conduziu à morte de George Floyd. De facto, não me escapa, até julgo
percebê-la muito bem. O que acontece é que esse entusiasmo me provoca uma
instintiva repugnância, não só pela violência que os entusiastas admiram, e que
conduz a mais mortos do que a outra, como, e sobretudo, pela imagem que os
entusiastas têm de si mesmos.
Vamos por partes. Que há
racismo nos Estados Unidos, como há racismo por esse vasto mundo fora, é a
última coisa que se pode negar. Que o racismo — enquanto coisa distinta de se
não gostar, com legitimidade inteira, de determinadas culturas – é o pecado por
excelência, é algo que me parece quase uma evidência: dificilmente se encontra
uma visão das coisas que contenha no seu seio tantos sinais de uma irracional
inclinação ao mal, por meio da qual alguém, seja pela cor da pele, seja por
qualquer, às vezes imperceptível, traço fisionômico, nos aparece como exemplo
concreto e absoluto de uma mancha moral, física e metafísica que a humanidade
não pode tolerar. Que as forças policiais americanas têm, como todas as outras,
uma história de comportamento racista, é algo que, quanto mais não seja, todos
sabemos por inúmeros filmes (americanos), que vão do ótimo (Mississippi
Burning, por exemplo) ao péssimo (não vale a pena dar exemplos). Que a
história dos Estados Unidos se encontra marcada desde sempre – desde a chegada
dos escravos vindos de África, como aqueles cujos corpos aparecem, afogando-se
no mar, num dos últimos quadros de Turner, Slave Ship, que se
encontra em Boston – pelo conflito em torno do racismo, ao ponto de tal
conflito ter originado a única guerra civil americana, lê-se em qualquer livro.
Tudo isto é óbvio. Como é óbvio
que uma parte muito significativa de crimes cometidos nos Estados Unidos —
ínfimos, pequenos, médios e grandes — são cometidos por negros, um facto que
cabe parcialmente à sociologia explicar, sem que a explicação ambicione ser uma
absolvição pré-concebida, como em sociologia acontece muitas vezes: ocultar
isto é ocultar um dado essencial do problema, com a função instrumental de
acrescentar uma dose suplementar de arbitrário à violência policial. Não é
sério. Outra coisa óbvia é que uma parte das manifestações que os entusiastas
adoram foram puros atos de vandalismo e destruição em grande escala, e,
naturalmente, não foram propriamente os ricos os mais prejudicados: foram
aqueles que têm parcos haveres e que os viram destruídos de um momento para o outro.
Para os entusiastas, estas preocupações com a propriedade privada, mesmo a dos
mais desfavorecidos, são uma pieguice hipócrita que magnificamente contrasta
com a suprema elevação da sua concepção do mundo. Até ao momento, é claro, em
que os azares da vida – uma crise econômica, por exemplo – ponham em causa os
seus modestos privilégios: aí o caso muda de figura e urge protestar. Dizer que
não são sérios é um eufemismo.
Tanto a violência policial
como o vandalismo atravessaram várias presidências, incluindo a de Obama. Exceto
o PCP, que, em virtude da lógica de ferro da sua ideologia, vê em Obama, como
em Trump, apenas o símbolo do imperialismo norte-americano, muita gente, de uma
boa parte da esquerda a uma certa direita, detecta na presente situação de
violência uma consequência direta da intrínseca perversidade de Donald Trump.
Dada a má-fé colossal que diariamente se manifesta nestes últimos anos, e mais
ainda, se possível, por estes dias, não tenho vontade nenhuma de criticar Trump
e vivo essa situação com inteira boa consciência. A culpa não é minha: é do
entusiasmo coletivo que se lhe opõe, que me parece muito mais perigoso. Em
concreto, não vejo qualquer racismo no que Trump tem dito por estes dias, nem,
de resto, no que tem dito, no seu estilo muitas vezes truculento, e às vezes
com real graça, desde que foi eleito presidente. A forma, o conteúdo e a
intenção do que diz obedece a uma lógica inteiramente diferente.
Mas vamos ao que
verdadeiramente me interessa: a imagem que os entusiastas têm de si mesmos. Em
primeiro lugar, é inútil mencionar que não estamos na presença de uma
reencarnação coletiva de William Wilberforce, o grande inglês cuja batalha
contra o escravagismo conduziu, em 1833, ao Slavery Abolition Act:
falta a ocasião, o risco, a grandeza moral e a inteligência humana. Em
contrapartida, aquilo a que temos direito são generalizações maciças e
fanáticas, ódio à democracia (mesmo quando travestido de apelo a uma democracia
mais funda e verdadeira) e, sobretudo, uma formidável infantilidade que promove
o egotismo de cada um ao estatuto de consciência moral do mundo, quando na
verdade tal egotismo não é mais do que uma forma disfarçada de entusiasmo
negativo, isto é de niilismo.
Generalizações maciças e
fanáticas: os Estados Unidos não são senão o lugar de uma violência sem
limites, que tem no racismo generalizado a sua manifestação mais veemente. Ódio
à democracia: o poder é intrinsecamente ilegítimo sempre que não corresponde à
imagem que desejamos que ele tenha (o que vale para os Estados Unidos vale
ainda mais, talvez, para Israel, que suscita tal ódio em proporções épicas).
Egotismo infantil: um dos avatares daquela infantilização generalizada que, em
meados do século XIX, Tocqueville previu como resultado dos progressos de um Estado
tutelar encarregado de regulamentar os nossos mínimos comportamentos – um caso
praticamente único de uma previsão sociológica inteiramente conseguida – é exatamente
a transformação de qualquer pequena consciência individual em consciência
legisladora do universo, dotada de imprescritíveis direitos a impor a sua
vontade ao grosso da humanidade, ao mesmo tempo que, na sua local esfera
legítima de ação, padece do mais aterrador conformismo e da radical ausência de
imaginação política capaz de nos permitir pensar fora dos mais primitivos
esquemas que o ser humano jamais concebeu (a tendencial transferência de toda a
propriedade para o Estado, por exemplo).
Em Mississippi Burning,
o personagem representado pelo genial Gene Hackman, conta àquele que William Dafoe
encarna, que o seu pai, um fazendeiro pobre, havia um dia morto a vaca que
pertencia a um negro, sua única propriedade. Razão dolorosa para o ato:
precisamos sempre de acreditar que alguém está abaixo de nós. Tenho lido muitos
artigos sobre a presente situação dos Estados Unidos e, sem grande surpresa,
devo dizer, é algo de análogo o que mais vejo: a necessidade de encontrar
sempre alguém que moralmente esteja abaixo de nós, que represente, por
contraste, todo o esplendor da nossa superioridade. Estamos bem lixados com
estes maluquinhos e com a praga do entusiasmo niilista.
Título e Texto: Paulo
Tunhas, Observador,
4-6-2020, 7h23
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