Claro que as celebridades não usam máscara
— as regras sobre a covid-19 só se aplicam às pessoas comuns
Brendan O'Neil
A máscara caiu. Literal e metaforicamente. No último Super Bowl, em um estádio em Los Angeles lotado de pessoas, não havia uma máscara à vista entre o grupo de celebridades. Os fiscais moralistas que obtiveram um enorme prazer nos últimos dois anos mandando a plebe usar máscaras foram ao jogo desmascarados.
Talvez eles tenham prendido a
respiração por três horas? Vimos a atriz Charlize Theron sem um fio de tecido
no rosto, apesar de Los Angeles ter estabelecido o uso obrigatório de máscaras.
Essa é a mesma Charlize Theron que certa vez postou uma foto de si mesma com
uma máscara sofisticada com as palavras “Don’t be an ass #wearadamnmask” (Não
seja um idiota #useumamalditamascara, em tradução livre). Sabe, é só você, um
zé-ninguém, que precisa usar a porcaria da máscara, não pessoas tão lindas e
importantes quanto Theron.
A flagrante hipocrisia das
celebridades do Super Bowl deixou os usuários das redes sociais furiosos, e com
razão. Parece que, no Novo Normal, só “os empregados” usam máscara. E havia a
dama do descolado e do politicamente correto, Ellen DeGeneres, sorrindo
para selfies sem máscara, enquanto os funcionários do estádio
estavam com o rosto coberto. A plateia do talk show Ellen ainda
precisa usar máscara. Claro que precisa. Não podemos deixar DeGeneres respirar
o ar poluído dos não milionários.
Essa é a nova aristocracia da
covid-19 — se você consegue pagar as dezenas de milhares de dólares que custa
um camarote suntuoso no Super Bowl, você pode mostrar o rosto. Se não puder, e
é uma daquelas pessoas que ganha a vida trabalhando no Super Bowl, então você
precisa de uma focinheira. Tudo bem, os ricos exporem a respiração — são só os
perdigotos e os germes dos mais pobres que precisam ser abafados.
Os
estudantes de Los Angeles ainda estão amordaçados nas salas de aula, enquanto
milhares de fãs de esporte podem cantar e tagarelar quanto quiserem
Não foram só figuras como Charlize, Ellen, J-Lo e os demais que desconsideraram a obrigatoriedade da máscara em Los Angeles (que estipula que elas devem ser usadas em megaeventos). A maior parte dos 70 mil participantes dessa disputa entre o LA Rams e o Cincinnati Bengals também. Existe um elemento positivo nisso, claro: foram hordas de pessoas sensatamente se recusando a usar uma focinheira em um evento animado e enorme que envolve comer, beber, gritar e torcer. E, no entanto, a coisa toda ainda enfatiza a questão absurda dos “dois pesos, duas medidas” da máscara.
Regras para os servos
Os estudantes de Los Angeles ainda estão amordaçados nas salas de aula, enquanto milhares de fãs de esporte podem cantar e tagarelar quanto quiserem. Como disse um observador: “Aparentemente, a covid-19 não pega se você gastar US$ 5 mil em ingressos para o Super Bowl. Mas, amanhã de manhã, as crianças — para quem a covid-19 é 100% não letal — vão usar máscaras na escola durante oito horas. A ciência”.
O sentido sarcástico da
palavra “ciência” toca o cerne do debate. O uso de máscaras na era da covid-19
há tempos deixou de ser uma questão “científica”. Em vez disso, ela se tornou
algo totalmente ligado à cultura bélica — em especial à cultura bélica das
elites woke contra as irritantes pessoas simples.
As máscaras não são valorizadas
por suas qualidades protetoras, mas por seu poder simbólico. Não é a capacidade
muito contestada das máscaras de impedir o contágio da covid-19 que as tornou
uma peça tão central do Novo Normal. É seu significado cultural, sua função
política, a mensagem que elas transmitem sobre quem é importante e quem não é,
quem é virtuoso e quem não vale nada. Então, quando as celebridades sem máscara
do Super Bowl são servidas por funcionários de máscara, isso revela algo
importante sobre o poder na era da covid-19.
Foi como quando Meghan Markle,
a Duquesa de Woke, fez uma aparição sem máscara do tapete vermelho em um evento
de gala em Nova Iorque, em novembro, cercada por seu séquito mascarado de
pessoas muito menos importantes. Isso diz: “Nossa vida e nossas atividades são
muito mais importantes que as de vocês. E, portanto, não deveríamos ser
submetidos aos mesmos complicadores que vocês. As regras existem para os
servos, não para nós”.
Mas a questão é: máscaras são
expressões tão flexíveis de superioridade cultural que, dependendo da situação,
você pode sinalizar sua natureza neoaristocrática se recusando a usar máscara
ou usando máscara. Isso explica a suposta hipocrisia de Charlize
Theron, o fato de que ela pode dizer “coloque uma maldita máscara” num dado
momento e, no outro, simplesmente se recusar a usar máscara durante um
megaevento. No primeiro caso, ela está anunciando seu nível elevado de
consciência social, o fato de que ela compreende melhor que um idiota médio que
usar máscara pode ajudar a salvar vidas. No segundo caso, a atriz está nos
fazendo lembrar que faz parte de uma nova classe, aquela casta muito bajulada e
bem remunerada de influenciadores culturais, para quem as regras não valem.
Tanto o post sobre vocês, idiotas, precisarem cobrir a boca quanto a diversão
sem máscara no Super Bowl confirmam que Charlize Theron vive num plano moral
diferente do nosso, reles mortais. Um plano no qual a virtude é abundante, e
seguir as regras é opcional.
O uniforme das novas elites
No Reino Unido, os guerreiros
da cultura tendem a preferir usar máscara, em vez deixar o rosto livre, como
uma forma de demonstrar sua primazia moral. Assim é a tendência das selfies com
máscara, em que membros da Turma Certa tiram fotos de si mesmos devidamente
amordaçados, ainda que muitas vezes estejam em trens vazios ou ruas desertas.
Ciência!
Para essas pessoas, a máscara
se tornou um indicador de decência social. Então, Marina Hyde, do Guardian,
critica “os antimáscaras” como uma espécie de “nacionalistas”. Um jornalista
do Independent considera as máscaras uma forma de proteção não
contra a covid-19, mas contra a fumaça tóxica de pessoas comuns. As máscaras
“oferecem uma camada extra de defesa em relação à pessoa que está a 2
centímetros do seu rosto no metrô e que não escovou os dentes”, disse Rupert
Hawsley. Ele considera que um dia vamos “olhar para trás e não vamos acreditar
que no passado costumávamos respirar, bufar e tossir umas nas outras, deixando
germes e outros micróbios correndo soltos”.
Garçons
sofreram uma humilhação a mais: a necessidade de amordaçar o rosto enquanto
servem drinques caros para os ricos sem máscara
Em outras palavras: o inferno
são os outros. O impressionante é que as elites woke tanto
usando quanto descartando as máscaras em certos ambientes são movidas pelo
mesmo impulso fundamental: distinguir-se. E se proteger da respiração e da
estupidez das pessoas comuns. Celebridades podem andar sem máscaras, contanto
que os serviçais as usem.
Mas elas colocam máscaras — e
deixam ostensivamente claro que estão de máscaras — quando estão fora e em meio
a plebeus nacionalistas com dentes sujos e legiões de germes. Isso não tem
quase nada a ver com a covid-19. Na verdade, a máscara se tornou uma parte
central do uniforme das novas elites. Pode ser usada ostensivamente ou
arrancada ostensivamente, dependendo de qual ação comunicar de forma mais
bem-sucedida para o mundo que “Eu sou uma das pessoas especiais”.
A polêmica do Super Bowl e a
questão mais ampla da máscara revelam algo que poucas pessoas, em especial as
supostamente esquerdistas, querem confrontar: a forma como a crise da covid-19
exacerbou tensões de classe e empoderou uma nova elite de potências culturais e
corporativas à custa dos direitos e do padrão de vida das pessoas comuns.
Durante o lockdown,
as classes que trabalham num laptop puderam ficar em casa e
fazer pão, contanto que entregadores, trabalhadores da limpeza e do varejo
continuassem fazendo o que costumam fazer. Os bilionários ganharam mais bilhões
enquanto a classe trabalhadora e as pessoas nos países em desenvolvimento
perderam seu sustento. E garçons e atendentes sofreram uma humilhação a mais: a
necessidade de amordaçar o rosto enquanto servem pratos chiques e drinques
caros para os ricos sem máscara. Está na hora de desmascarar o terrível
elitismo do Novo Normal.
Título e Texto: Brendan
O’Neill é o repórter-chefe de política da Spiked e
apresentador do podcast The Brendan O’Neill Show. Ele está no Instagram: @burntoakboy. Revista Oeste, nº 101, 25-2-2022
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