Carina Bratt
DEITADA NA REDE da minha varanda, as vistas voltadas para a cidade, lá embaixo, por vezes penso em me fechar em copas. Cerrar as cortinas, me trancar todinha, por inteira, da cabeça aos pés, sem deixar brechas, sem abrir a guarda. Enfim, não dar trelas, não me importar, notadamente dispensando maiores cuidados aos olhos arregalados que me espiam, esbugalhados, como se eu fosse uma coisa rara. Apesar desse inconveniente, me sinto viva. Gosto dessa provocação. Esse desrespeito vem de butucas estranhas, oriundas de um furtivo apê do prédio em frente ao meu. Todos os dias, esse cara surfa meticuloso o meu privado, à procura da minha vida particular. Passeia num mar malicioso pegando ondas no meu cotidiano, ao tempo em que se faz nocivo e maligno ao meu descanso.
Parece, com esses gestos
incoerentes, querer me desnudar por inteira, ou pegar, de relance, um fio solto
dentro de meu corpo exposto. Ou por outra: descobrir alguma coisa fútil em meu
âmago e transformar essa banalidade despicienda em algo permanente, como uma
derrota inextinguível e perpétua que amanhã ou depois caia sobre meus costados
e me deixe prostrada, sem saída, sem escape, sem volta à minha vidinha normal.
Por conta de certos atropelos e entrechoques do dia a dia, da convivência com
criaturas hipócritas e traiçoeiras, dissimuladas e desleais, como o dono desses
olhos que me martirizam, passei a ficar esperta e acordada, ágil e destravada,
tudo para observar melhor as figuras que me rodeiam, principalmente aquelas que
convivem comigo e garantem (cruzando os dedinhos) com todas as letras, serem
‘AMIGOS’ e ‘AMIGAS’.
Embora nova na idade, me
tornei velhaca e esperta, ladina e astuta, especialmente no tratamento com
certos tipos de amizades que esbravejam e se mostram de ‘Peito Aberto’, ou que
rezam a cartilha recordando aquele velho ditado ‘Estou ao seu lado para o que
der e vier’. Aprendi que os ‘Amigos e Amigas de Verdade’ não se traduzem por
frases feitas. Apenas aparecem na hora em que mais precisamos de apoio e
consolo, de ouvir uma palavra de avivamento e que nos coloque para cima, que
abrem as portas do coração e nos enlevam a alma com a caridade voluptuosa da
compreensão. Os ‘Amigos e Amigas’ visto por um outro contexto mais aprofundado,
não nos abandonam aos reveses da sorte, ou ao deus dará.
Quero abrir aspas para explicar o que acabei de escrever acima. ‘De peito aberto, os ‘Amigos e Amigas’ espiam para dentro de nós não das alturas em que se encontram, em contrário, se alinham às nossas mazelas e ferimentos, achaques e dissabores e nos acalmam os frangalhos com gestos de ternura e procuram, com todo cuidado, nos tirar o peso da cruz pesada e tornar o fardo mais ameno e abrandado. Os ‘Amigos e amigas’ autênticos e justos, incorruptíveis e absolutos não cobram nada em troca, como não pedem favores. São como portas abertas nos convidando ao abrigo de um cantinho tranquilo. Euzinha mesma já fui luz acesa na escuridão, hoje farejo as trevas e as obumbrações que trazem tormentas e procelas, trovoadas e vendavais. Sei, todavia, a hora exata de recolher a minha rede, fechar as portas e janelas do meu quadrado e expulsar os inconvenientes e desagradáveis, que só querem se aproveitar da minha serenidade e quietude...’. E digo mais:
‘Como esses olhos maldosos que
me prescrutam todas as manhãs. Logicamente, esses incautos aos quais me refiro,
fazem da nossa hospitalidade, degraus para a subida até o topo e, ao chegarem
ao cimo, nos pisotearem com todas as forças de seus sapatos. Como o sol
abrasante sei aquecer o meu ‘eu’ interior e espantar os fantasmas que me
amedrontam. Sou como pétalas de rosas deixadas ao longo do caminho que
percorro. Busco, a cada dia, transformar meus medos e receios, aflições e
pusilanimidades em um magnânimo e enorme jardim florido. Deitada na rede da
minha varanda, as direções sentineladas voltadas para a cidade lá embaixo,
atenta, também às investidas do engraçadinho que me persegue, por vezes penso
em me fechar em copas’”. Fecho aspas.
Voltando ao texto, vou a
partir de agora, me trancar todinha, por inteira, da cabeça aos pés, sem deixar
brechas, sem abrir a guarda. Enfim, não dar trelas, não me importar,
notadamente dispensando maiores atenções aos olhos caóticos e arregalados que
me sondam, sem dar folga, como se eu fosse uma coisa rara. Não sou uma coisa
que se rotule de prodigiosa. De repente, o interfone da minha portaria me faz
voltar ao agora. Quando o José (porteiro) dá sinais de vida e interrompe o
silêncio e eu pulo da rede, afoita, e atendo, já sei, de antemão, que ele, o
‘Meu Amado’ chegou. A partir dai, quando ele se faz real, as minhas divagações
se esvaem. Me perco de mim, me arreganho, me faço mala velha, me divorcio do
certo e me embrenho pelo errado. Esqueço do forasteiro solitário de prontidão
do outro lado, no prédio em frente, me observando e se desfazendo em desejos
irrealizáveis.
Àbro a porta do meu loft sem
titubear. Daí pra frente, desfilo para ele arrancando as roupas. Me faço nua em
pelo, crua e saborosa para seus pecados. Me quedo à flor das mesuras da sua
alucinação. O rala e rola tem inicio. O Meu Amor, presente aqui, todo meu,
literalmente viajo. Perco o juízo, a razão, o tino e me deixo levar. Apaixonada
estou. Os cinco pneus furados. Esqueço tudo, de roldão os olhos caóticos e
arregalados que seguem me espiando como se eu fosse uma coisa rara. Para esse
infeliz do apê do prédio em frente, sou, de fato, uma coisa rara. Seus olhos
estranhos seguem invadindo à minha vida particular. São maliciosos ao meu
cotidiano e, de certa forma, nocivos e deletérios à minha privacidade. O
desconhecido, bem sei, não desiste. Parece querer me mastigar, por inteira,
talvez, pegar um fio solto. ‘Os amigos e amigas de verdade não se traduzem por
frases feitas...’ alto lá, de novo esse assunto? O que isso tem a ver com essa
história? Nada! Acho que só estou querendo embolar o meio de campo. Confundir a
quem se dá ao trabalho de ler as minhas 'Danações' desse domingo. Pirei na
batatinha.
Meu Deus, cá entre nós, de
fato, que papo mais careta! Me perdoem. Me fiz repetitiva. Deve ser a emoção.
Acho que estou ficando gagá. Desordenando as investidas, triturando no
liquidificador os alhos com bugalhos que se entrometeram no meu chão. Ta legal,
não importa. Como o sol abrasante de um domingo de manhã inigualável, ainda sei
como aquecer todo meu ‘eu interior’ e espantar os fantasmas que me amedrontam.
E os afugento. Percebo que agora são os espectros dele, logo ali, do outro
lado, que o tiram do ar. Ele se morde de raiva. Quem sabe, dia desses, caia na
real e se dê conta que não tem chance e, num momento de loucura, se atire pela janela,
com seu binóculo de longo alcance se espatifando lá no térreo em meio a uma
poça de sangue. No descuidar dessa paixão tresloucada, por outro lado, o Meu
Amor que acabou de chegar me botou de quatro. Vou me entregar à ele. O resto,
que vá para a Rússia do ‘Vlasumir Putinho’. Meu Amor trouxe na mochila um facão
enorme, de lâmina provocante. De volta à rede, entre beijos e afagos, suores
escorrendo em profusão, o seu instrumento de trabalho em evidência, acabou de
sair das coxias e pintou em cena. Nesse momento, seu corte certeiro desbasta
uma vegetação de flora rasteira. Uauuuuuuuuu!...
Título e Texto: Carina Bratt.
De Campinas São Paulo. 27-2-2022
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Recado rápido. Tipo aquele rasteiro que finge entrar por uma porta giratória...
Cá entre nós: o que isso tudo tem de importante?!
As malhas de uma ‘Rede’ apodrecida que não vemos ou fingimos não existirem
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Sob a sombra de antigas mortes o silêncio se deitou esquecido
O outro gume da faca
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