José Manuel
O ano de 1973 corria
trabalhoso com cada um dos doze instrutores dando tudo de si, para que o quadro
de tripulantes estivesse pronto a tempo da chegada do nosso Gordão DC-10,
previsto para alguns meses à frente. E tudo era muito corrido, com a exaustão nos
nossos calcanhares chegando a tri-reator.
Num determinado mês desse ano
recebi a minha escala, com a publicação de um voo de cheque dos comissários
para Manaus, no “Cadillac dos céus“ o ótimo B- 727, e programação de um dia
inativo. Nada mais gostoso que isso.
À época, namorava a irmã de um
lojista da Zona Franca, a Dulce, pessoa muito agradável e sempre disposta a
levar quem estivesse comigo no seu fusquinha amarelo, a passeios exóticos pela
cidade.
O voo correu tranquilo pela
costa, com seis escalas, mas apesar de “puxado ", sem problemas, o que era
um indicativo de que a programação seria excelente. Ledo engano, pois tinha uma
touceira de ervas daninhas me esperando em Manaus.
Chegamos ao hotel Central, do nosso amigo Cosme, sempre amável com todos. Telefonei à Dulce, para um jantar à noite e relaxei um pouco naquele final de tarde.
No horário combinado, ela me pegou no hotel e fomos jantar num restaurante magnífico, com arquitetura indígena, que se chamava "Chapéu de Palha" [foto], onde jantamos um tucunaré na brasa, peixe típico da região, gostoso, porém, com a ressalva do exagerado “coentro" amazonense. Naquela noite estava exausto, e Dulce me deixou no hotel para tentar ter uma noite relaxante de sono.
Parecia que estava adivinhando, pois naquela madrugada, tipo 4h, por aí, o telefone tocou com a telefonista me comunicando que uma viatura policial estava à minha espera na porta do hotel.
- Como assim, deve haver algum
engano!
- Não, senhor José Manuel é
com o senhor mesmo, porque um colega seu foi preso!
- Por favor comunique que já
vou descer
- Obrigada.
Que raios poderia ter
acontecido, pensava eu enquanto tomava uma ducha às pressas e me arrumava.
- Bom dia senhores, querem
falar comigo?
- Bom dia, o senhor é o José
Manuel, responsável pela tripulação que o fulano faz parte?
- Sim, por quê?
- Seu colega está preso e o
Delegado quer falar com o senhor. Então, por favor, nos acompanhe até à
delegacia.
E lá fui eu, pensando com os
meus botões o que o bonitão teria aprontado.
- Bom dia senhor Delegado, sou
o responsável pela tripulação do referido funcionário, poderia saber o
ocorrido?
- Pode sim, e por isso mandei
buscá-lo ao hotel. O seu colega se embriagou num bordel e espancou uma das
moças que lá trabalha.
- Meu Deus, e o que posso
fazer?
- Melhor o senhor providenciar
um advogado, pois ele vai ficar detido em Manaus!
Na volta ao hotel, conduzido
pelos mesmos policiais, fiquei sabendo que o rapaz tinha machucado a moça, que
estava no hospital.
(Nota: em voos com dias inativos
e troca de tripulação técnica, o comissário mais graduado era o responsável
pela tripulação.)
Nos voos partindo de Manaus,
por ser zona franca, tem, ou pelo menos tinha, alfandega na saída e no destino.
5h30 da manhã, e eu na porta
do hotel no meu dia inativo sem saber o que fazer. Apenas tinha a certeza de
que aquele episódio não poderia ir para os jornais expondo o nome da VARIG.
- Bom dia Dulce, desculpe o
horário, mas você pode me levar ao quartel da PM?
- A essa hora? O que você
aprontou?
- Nada, apenas preciso saber o
endereço do ajudante de ordens do governador, um oficial da PM.
5h45, Dulce e seu bólido
amarelo chegaram, e pelas seis estávamos chegando ao portão do quartel.
- Bom dia, sou tripulante da
VARIG, aqui o meu crachá, preciso do endereço do oficial ajudante de ordens do
Governador, pois tenho uma encomenda para os dois.
- Por favor aguarde aqui e me
empreste o seu crachá.
Dez minutos após, voltou com o
endereço.
- Aqui está, já telefonamos a
ele e confirmamos. Ele está à sua espera.
O fusca saiu voando baixo e as
perguntas começaram.
- Como você conhece esse
oficial e que encomenda você tem para o governador?
Estava cronometrando os
horários pois às 7h no máximo o meu pedido tinha de estar nas mãos do Delegado.
- Conheço esse oficial porque
por duas vezes já fiz o favor a ele de trazer de Miami, giletes de lâmina
dupla, que ainda não existem aqui, para o Governador e desta vez não tenho
encomenda nenhuma.
- Ué... então, o que vamos
fazer lá?
- Vou tentar obter a
retribuição desses favores, porque um colega está preso!
- Bom dia Capitão, desculpe a
hora e a intromissão, mas estou com uma urgência e só conheço o senhor a quem
recorrer.
Contei a história e que
gostaria fosse o mais rápido possível pois o nome da Varig estava em jogo.
- Volte ao hotel e aguarde o
meu telefonema, pois vou fazer o possível para te ajudar.
- Obrigado, Capitão, e
continuo às suas ordens.
7h, estava de volta ao hotel e
a Dulce voltando para casa dormir.
Dei uma relaxada, pois fazia
três horas que trabalhava sem parar, e exatamente às 8h o telefone tocou.
- Oi, pode relaxar que o seu
colega está solto. Não foi muito fácil e espero que isso não se repita da forma
como foi.
- Muito obrigado Capitão, e
reitero estar ao seu dispor quando precisar, e a VARIG está às suas ordens. Bom
dia.
- Recepção, por favor, assim
que fulano que teve problemas com a polícia chegar me avise, por favor, e
obrigado.
Mais tarde quando saí, fiquei sabendo
da sua chegada ao hotel pelo pessoal da recepção.
Até hoje aguardo ser
comunicado pelo próprio, o seu retorno, enfim, uma desculpa, um obrigado,
coisas simples de gente civilizada.
O dia transcorreu normalmente,
em termos, pois estava trabalhando desde as 5h, depois com algumas compras e no
dia seguinte rumamos para o aeroporto e o voo de volta. Todos a bordo, inclusive os passageiros,
motor 1 girando e nada do rapaz problema chegar a bordo. Chamei o Despacho e
pedi que providenciasse a vinda do problema que estava retido na alfândega.
- José Manuel, por que a porta
ainda está aberta? No interfone o Comandante perguntava, enquanto eu de olho na
estação da alfândega.
- Capitão está faltando um
Comissário que já está chegando ao avião, respondi, depois fiquei observando a
calma do referido, vindo acompanhado do Dov, que me relatou perda de mercadoria
na alfândega, a razão da demora.
- Porta fechada e travada,
Capitão.
Taxiamento, speech feito,
todos em suas estações, finalmente decolamos para Belém.
Nosso B-727 tinha uma
configuração interessante de duas cabines separadas por um complexo de galley à
direita e à esquerda da fuselagem. O "colega" estava posicionado
nessa função, e para esse trecho era servido um super café da manhã. Enquanto
orientava os colegas e o supervisor, notei ruídos estranhos e observei que o
dito, jogava e batia com força qualquer peça móvel, fazendo muito barulho com
essas atitudes.
Chamei sua atenção e obtive
uma resposta chula, a qual revidei com a ordem para se sentar na primeira
cabine e assumi o seu lugar.
Ao final do serviço, sentei-me
a seu lado, para bater um papo e comecei perguntando se ele sabia quem o havia
liberado na delegacia.
Sua resposta foi um atentado
contra a dignidade da minha mãe e comuniquei-lhe que estaria fora do serviço
até São Luiz.
Pouso normal em Belém e nova
decolagem para São Luiz, com um pequeno serviço de bebidas e café, pelo pouco
tempo de voo.
Nesse pequeno trecho,
conversei com o Comandante sobre o atraso em Manaus e contei toda a história, ressalvando
que mais uma ofensa, gostaria que o dito tripulante fosse até ao Rio, no
cockpit sob sua responsabilidade.
E houve a segunda e a
terceira!
O Comandante achou muito sério
o caso e me perguntou se queria que o deixasse em Fortaleza. Respondi que não
pois o melhor seria que ele prosseguisse fora do serviço até ao Rio. Então,
ficamos acordados que a partir de Fortaleza, ele iria no cockpit. Tínhamos
ainda pela frente Fortaleza, Natal, Recife e finalmente o Rio de Janeiro
Para minha surpresa, quem o esperava
na Alfândega do Rio era um colega de terra bem conhecido, o já famoso Plínio
que na saída veio me pedir para relevar o caso.
Respondi que não era eu a quem
ele deveria pedir e sim ao comandante e seu relatório de voo.
Título e Texto: José Manuel
– esse caso não foi bem mais uma das ervas daninhas, mas uma plantação de
coentros que tive de resolver, “voando". Nunca mais o vi. Acho que foi seu
último voo. Fevereiro de 2022
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