terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

[Estórias da Aviação] As ervas da ira (parte II) – Quando o demônio se incorpora

José Manuel

O ano de 1973 corria trabalhoso com cada um dos doze instrutores dando tudo de si, para que o quadro de tripulantes estivesse pronto a tempo da chegada do nosso Gordão DC-10, previsto para alguns meses à frente. E tudo era muito corrido, com a exaustão nos nossos calcanhares chegando a tri-reator.

Num determinado mês desse ano recebi a minha escala, com a publicação de um voo de cheque dos comissários para Manaus, no “Cadillac dos céus“ o ótimo B- 727, e programação de um dia inativo. Nada mais gostoso que isso.

À época, namorava a irmã de um lojista da Zona Franca, a Dulce, pessoa muito agradável e sempre disposta a levar quem estivesse comigo no seu fusquinha amarelo, a passeios exóticos pela cidade.

O voo correu tranquilo pela costa, com seis escalas, mas apesar de “puxado ", sem problemas, o que era um indicativo de que a programação seria excelente. Ledo engano, pois tinha uma touceira de ervas daninhas me esperando em Manaus.

Chegamos ao hotel Central, do nosso amigo Cosme, sempre amável com todos. Telefonei à Dulce, para um jantar à noite e relaxei um pouco naquele final de tarde.

No horário combinado, ela me pegou no hotel e fomos jantar num restaurante magnífico, com arquitetura indígena, que se chamava "Chapéu de Palha" [foto], onde jantamos um tucunaré na brasa, peixe típico da região, gostoso, porém, com a ressalva do exagerado “coentro" amazonense. Naquela noite estava exausto, e Dulce me deixou no hotel para tentar ter uma noite relaxante de sono.

Parecia que estava adivinhando, pois naquela madrugada, tipo 4h, por aí, o telefone tocou com a telefonista me comunicando que uma viatura policial estava à minha espera na porta do hotel.

- Como assim, deve haver algum engano!

- Não, senhor José Manuel é com o senhor mesmo, porque um colega seu foi preso!

- Por favor comunique que já vou descer

- Obrigada.

Que raios poderia ter acontecido, pensava eu enquanto tomava uma ducha às pressas e me arrumava.

- Bom dia senhores, querem falar comigo?

- Bom dia, o senhor é o José Manuel, responsável pela tripulação que o fulano faz parte?

- Sim, por quê?

- Seu colega está preso e o Delegado quer falar com o senhor. Então, por favor, nos acompanhe até à delegacia.

E lá fui eu, pensando com os meus botões o que o bonitão teria aprontado.

- Bom dia senhor Delegado, sou o responsável pela tripulação do referido funcionário, poderia saber o ocorrido?

- Pode sim, e por isso mandei buscá-lo ao hotel. O seu colega se embriagou num bordel e espancou uma das moças que lá trabalha.

- Meu Deus, e o que posso fazer?

- Melhor o senhor providenciar um advogado, pois ele vai ficar detido em Manaus!

Na volta ao hotel, conduzido pelos mesmos policiais, fiquei sabendo que o rapaz tinha machucado a moça, que estava no hospital.

(Nota: em voos com dias inativos e troca de tripulação técnica, o comissário mais graduado era o responsável pela tripulação.)

Nos voos partindo de Manaus, por ser zona franca, tem, ou pelo menos tinha, alfandega na saída e no destino.

5h30 da manhã, e eu na porta do hotel no meu dia inativo sem saber o que fazer. Apenas tinha a certeza de que aquele episódio não poderia ir para os jornais expondo o nome da VARIG.

- Bom dia Dulce, desculpe o horário, mas você pode me levar ao quartel da PM?

- A essa hora? O que você aprontou?

- Nada, apenas preciso saber o endereço do ajudante de ordens do governador, um oficial da PM.

5h45, Dulce e seu bólido amarelo chegaram, e pelas seis estávamos chegando ao portão do quartel.

- Bom dia, sou tripulante da VARIG, aqui o meu crachá, preciso do endereço do oficial ajudante de ordens do Governador, pois tenho uma encomenda para os dois.

- Por favor aguarde aqui e me empreste o seu crachá.

Dez minutos após, voltou com o endereço.

- Aqui está, já telefonamos a ele e confirmamos. Ele está à sua espera.

O fusca saiu voando baixo e as perguntas começaram.

- Como você conhece esse oficial e que encomenda você tem para o governador?

Estava cronometrando os horários pois às 7h no máximo o meu pedido tinha de estar nas mãos do Delegado.

- Conheço esse oficial porque por duas vezes já fiz o favor a ele de trazer de Miami, giletes de lâmina dupla, que ainda não existem aqui, para o Governador e desta vez não tenho encomenda nenhuma.

- Ué... então, o que vamos fazer lá?

- Vou tentar obter a retribuição desses favores, porque um colega está preso!

- Bom dia Capitão, desculpe a hora e a intromissão, mas estou com uma urgência e só conheço o senhor a quem recorrer.

Contei a história e que gostaria fosse o mais rápido possível pois o nome da Varig estava em jogo.

- Volte ao hotel e aguarde o meu telefonema, pois vou fazer o possível para te ajudar.

- Obrigado, Capitão, e continuo às suas ordens.

7h, estava de volta ao hotel e a Dulce voltando para casa dormir.

Dei uma relaxada, pois fazia três horas que trabalhava sem parar, e exatamente às 8h o telefone tocou.

- Oi, pode relaxar que o seu colega está solto. Não foi muito fácil e espero que isso não se repita da forma como foi.

- Muito obrigado Capitão, e reitero estar ao seu dispor quando precisar, e a VARIG está às suas ordens. Bom dia.

- Recepção, por favor, assim que fulano que teve problemas com a polícia chegar me avise, por favor, e obrigado.

Mais tarde quando saí, fiquei sabendo da sua chegada ao hotel pelo pessoal da recepção.

Até hoje aguardo ser comunicado pelo próprio, o seu retorno, enfim, uma desculpa, um obrigado, coisas simples de gente civilizada.

O dia transcorreu normalmente, em termos, pois estava trabalhando desde as 5h, depois com algumas compras e no dia seguinte rumamos para o aeroporto e o voo de volta.  Todos a bordo, inclusive os passageiros, motor 1 girando e nada do rapaz problema chegar a bordo. Chamei o Despacho e pedi que providenciasse a vinda do problema que estava retido na alfândega.

- José Manuel, por que a porta ainda está aberta? No interfone o Comandante perguntava, enquanto eu de olho na estação da alfândega.

- Capitão está faltando um Comissário que já está chegando ao avião, respondi, depois fiquei observando a calma do referido, vindo acompanhado do Dov, que me relatou perda de mercadoria na alfândega, a razão da demora.

- Porta fechada e travada, Capitão.

Taxiamento, speech feito, todos em suas estações, finalmente decolamos para Belém.

Nosso B-727 tinha uma configuração interessante de duas cabines separadas por um complexo de galley à direita e à esquerda da fuselagem. O "colega" estava posicionado nessa função, e para esse trecho era servido um super café da manhã. Enquanto orientava os colegas e o supervisor, notei ruídos estranhos e observei que o dito, jogava e batia com força qualquer peça móvel, fazendo muito barulho com essas atitudes.

Chamei sua atenção e obtive uma resposta chula, a qual revidei com a ordem para se sentar na primeira cabine e assumi o seu lugar.

Ao final do serviço, sentei-me a seu lado, para bater um papo e comecei perguntando se ele sabia quem o havia liberado na delegacia.

Sua resposta foi um atentado contra a dignidade da minha mãe e comuniquei-lhe que estaria fora do serviço até São Luiz.

Pouso normal em Belém e nova decolagem para São Luiz, com um pequeno serviço de bebidas e café, pelo pouco tempo de voo.

Nesse pequeno trecho, conversei com o Comandante sobre o atraso em Manaus e contei toda a história, ressalvando que mais uma ofensa, gostaria que o dito tripulante fosse até ao Rio, no cockpit sob sua responsabilidade.

E houve a segunda e a terceira!

O Comandante achou muito sério o caso e me perguntou se queria que o deixasse em Fortaleza. Respondi que não pois o melhor seria que ele prosseguisse fora do serviço até ao Rio. Então, ficamos acordados que a partir de Fortaleza, ele iria no cockpit. Tínhamos ainda pela frente Fortaleza, Natal, Recife e finalmente o Rio de Janeiro

Para minha surpresa, quem o esperava na Alfândega do Rio era um colega de terra bem conhecido, o já famoso Plínio que na saída veio me pedir para relevar o caso.

Respondi que não era eu a quem ele deveria pedir e sim ao comandante e seu relatório de voo.

Título e Texto: José Manuel – esse caso não foi bem mais uma das ervas daninhas, mas uma plantação de coentros que tive de resolver, “voando". Nunca mais o vi. Acho que foi seu último voo. Fevereiro de 2022

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As ervas da ira. (Prólogo) 
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