sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Carta a meus filhos (“Nemo inauditus debet damnari”)

Aparecido Raimundo de Souza

GOSTARIA QUE SOUBESSEM, meus filhos queridos, de coração aberto, que o pai de vocês não se orgulha nem um pouco do que fez nesses anos todos de existência. Antes tivesse dado um basta, fosse com um tiro na cabeça ou pulado na frente de algum carro em alta velocidade numa dessas avenidas que cortam as artérias da cidade. Mas nem para isso me senti capaz. Puxar um gatilho com o revolver apontado para o ouvido, ou dentro da boca, seria o mínimo. Na verdade, não saberia nem explicar como conseguia equilibrar meus óculos de grau no nariz pequeno e demasiadamente curto, como no mesmo salto no escuro, meus pensamentos mais aterradores. Me sinto, de certa forma, envergonhado pela dimensão do pavor que me atormenta e me persegue, como se eu fosse um fugitivo de um crime de bandeira literalmente hedionda.

Com isso, concluí que a minha sedução por saltar na frente de um automóvel, soaria desleal, ou inócua. Pensem comigo. Igualmente me proporia um gesto mesquinho e covarde. Não para comigo, ou com a vida errada, para os embaraços que eu criaria com o meu atropelamento para o motorista que certamente ficaria enrolado com a justiça. Acreditem, meus amados rebentos: estou pagando por tudo o que fiz. Purgando meus dias vindouros sem saber como será o próximo segundo. Tudo porque, desde quando me conheci e me assumi como gente grande, procurei pautar meus dias de adulto por caminhos sinuosos e abetesgados. Nunca fui bom filho – e quem não é bom filho, jamais será um exemplo de pai. Tiro como exemplo, meu velho, que nunca se fez comigo. Águas passadas, me lembram que não devo chorar sobre o leite derramado. Por assim, que o Altíssimo o tenha em seus cuidados, já que não se afigura mais entre nós!

De igual maneira, devo deixar esclarecido que não me comportei com a devida decência e honradez. Deixei de dar o salto quântico na compreensão viável, ou no momento certo, o que redundou com as não sei quantas jovens que, de namoradas passaram às condições de mães e acabaram por trazer vocês ao mundo. Mulheres brilhantes, criaturas que tiveram a infelicidade e a má sorte de cruzarem comigo num dado ponto da jornada. Falo em má sorte e em infelicidade, porque fiz questão de magoar e maltratar a todas, sem distinção. Deixei faltar o essencial o imprescindível para a sobrevivência, além dos maus tratos, da falta de atenção, de amor, de carinho, de afeto e, principalmente, de alinho, de decência, e moralidade, na condução dos anos em que vivemos dividindo espaços comuns. No alvor dos dezoito, talvez não soubesse precisar o sentido exato da palavra caráter.

Minha mente não processava assuntos de tamanha complexidade. O caráter era um deles. Jovem e imaturo, despreparado e inseguro, levava a vida ao deus dará, chovesse ou fizesse sol, estava tudo às mil. O negócio era curtir, o depois, que se danasse. Aos vinte e cinco, desconhecia, ainda, o chão lodoso que pisava. Tudo se transformava, ou melhor, qualquer porcaria virava motivo para sair e comemorar. Nessas ocasiões, não faltavam os amigos para farrear, os oportunistas que chegavam de todos os lugares para ajudar a passar as noites em claro. Foram tantos os bacanais regados em cenários de atividades frenéticas, onde o ápice se traduzia na farta consumação de vinhos caros e garrafas de cerveja a dar com pau. Semanas inteiras se perdiam ao acaso nos botequins das esquinas, sem mencionar as garotas de programas que pareciam surgir de guetos escuros como formigas em busca de falsos prazeres regados ao mais puro gosto do saboroso mel.

Meu Deus, vocês não imaginam quanto dinheiro seu pai gastou com a consumação de horas incertas e anárquicas, com criaturas promíscuas de procedências profanas e estranhas, vagabundas com tributos comprados em lojinhas de R$ 1.99, sem registrar as porções de batatas fritas e os refrigerantes consumidos em camas barulhentas dos pulgueiros de beiras de rodovias. Se juntasse os valores jogados nos ralos e bocas de lobo, projetando uma espécie de imagem surreal, daria para comprar uma casa para cada um de vocês e, com toda certeza, ainda sobraria dinheiro para uns dois carros zeros, na garagem. Esse foi o caminho escolhido. Ou melhor, o trilho, o atalho, o carreiro. Entre tantas veredas de fins diferentes, alguns até que poderiam ter me levado à gloria, ao topo de todas as pretensões e sonhos. Qual o quê!

Segui saltitante e embasbacado, atoleimado, sorridente e enleado pelo mais cômodo e menos trabalhoso. Não sabia que no fim trivializaria os fatos e daria com os burros n’água. Desconhecia que num porvir próximo me neutralizaria num bagaço humano, num crápula, num João sem destino, rejeitado à sorte de migalhas e pratos de comidas oferecidos por desconhecidos que se dedicavam a fazer o bem sem olhar à quem. Pois é, meus filhos: tive tanta sorte e ventura ao alcance das mãos, igual quinhão de fartura e felicidade batendo à minha porta... e tudo se esvaiu por entre os dedos de minhas falsas aventuras. Se fizesse, hoje, um retrospecto dessa jornada percorrida, chegaria a conclusão que em todas as ocasiões em que a Estrela do fadário excelente deu as caras e tentou se aproximar, simplesmente a ignorei. Fechei os olhos levado pela lassidão dos intuitos maléfico e continuei em frente, todavia, pela variante errônea. Virei o focinho, me neguei a mim mesmo de ser completamente abastado e realizado.

Acreditando piamente nesse voar nas asas dos ímpetos da loucura desenfreada que me davam na telha, como um Ícaro sem noção, travestido em certos momentos de burrice e insensatez, cabeçadas e extravagâncias, hoje vejo e sinto na carne, não me levaram a nada, não me fizeram ver nada, não me deixaram nada de útil nem de aproveitável. Tudo o que consegui, meus amados filhos, foi me autodestruir, me aniquilar, me desnivelar, me enfraquecer de uma maneira tão infeliz, tão infame, tão sem propósito, que ao acordar e colocar os pés no chão, percebo que não há piso sólido que me sustente o acúmulo dos dias acintosos e malévolos. Por conta de minha trajetória pouco ortodoxa, não quero participar de um campeonato de perdões. Jamais! Cada uma de vocês, em contato com a consciência, me julguem, me condenem ou me absolvam, ou, de outro modo, ajam como melhor acharem estar fazendo a coisa direita.

Sem exagerar em termos de meu estado de agora, concluo observando que se faz tarde, muito tarde demais para recomeçar, reconstruir, refazer, ou mesmo para me retocar e me reorganizar. Viver o pouco de vida que ainda me resta de sobra dentro do tempo futuro que não sei o quanto ainda tenho pela frente. Hoje, nesse agora, vegeto, me estrebucho na desilusão enfadonha e cansativa dos dias e noites frias. Me fiz inerte ambulante, cadáver insepulto capaz de enterrar a carcaça alquebrada. Em face dessa minha insegurança contumaz entendo que, se de repente vier a óbito por algum acidente de percurso, ou me findar abatido por uma dessas doenças que assolam os dias de agora, e logicamente os de amanhã, certamente não terei a blandicia nem a complacência de nenhuma de vocês.

Não posso, mesma linha de conduta, reclamar. Bem sei, foi a escolha que fiz num dado momento de ociosidade da alma, num minuto de leviandade e incoerência, completamente destituído e divorciado dos preceitos que regem uma família de verdade, e a mantém em harmonia constante, para que perdure e não pereça ao menor chegar de um vento mais forte e raivoso. Hoje sou resto, não de mim mesmo, apenas trapos e andrajos das andanças erradas quando bem poderia ter escolhido a plenitude de criar e educar todas vocês, e, agora desfrutar de uma velhice mais amena e acolhedora. Que bobo fui. Que rato de esgoto me transformei? Me flagro verme peçonhento, me sinto, dos pés à cabeça um animal. "Mea culpa, mea culpa, claro, mea maxima culpa". Que a Terra não me seja pesada.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Aracaju. 25-2-2022 

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