Quando “Bolsonaro”, “Floresta Amazônica”, etc. etc. etc. entram no noticiário internacional, mude de página. O cidadão aplica melhor o seu tempo assistindo a um desenho da Peppa Pig
J. R. Guzzo
É uma pena, mas a vida tem dessas coisas. Um dos serviços mais úteis que a mídia brasileira poderia oferecer ao público infelizmente não está disponível no momento, e nem vai estar no futuro, próximo ou remoto. Seria um manual, tipo “como usar este produto”, com o seguinte título: “Guia Geral Para Você Perder o Mínimo Possível do Seu Tempo Lendo, Vendo ou Ouvindo Isto Aqui”. Em tese, já que o cidadão está pagando para ter acesso ao “conteúdo” — é assim que se fala hoje — dos veículos de comunicação, o que lhe entregam deveria servir para alguma coisa. Mas aí é que está: umas vezes serve, outras vezes não serve. Quando não serve, o leitor-ouvinte-telespectador não apenas está jogando tempo no lixo. Está sendo ativamente mal-informado — ou seja, fica sabendo menos do que sabia antes. É injusto, mas o que se vai fazer?
Uma sugestão: o roteiro
que Oeste apresenta nos parágrafos seguintes, com algumas
ideias que talvez ajudem o público pagante a desperdiçar menos energia, neurônios
e espaço de armazenagem mental com a quantidade de bobagens que a mídia lhe em
soca em cima sem parar. Não adianta, é claro, para fornecer a informação que
não está sendo dada. Essa vem ou não vem, muito simplesmente, e se não vem não
há o que fazer: você está pagando sem receber pelo que pagou, e pronto. A
tentativa sincera do manual que se segue, em todo caso, é ajudar a limitar o
seu prejuízo. Sempre é alguma coisa. Vamos lá:
· Vá para o mais longe possível, e de preferência
não volte mais para perto, de tudo o que lhe oferecerem como informação,
análise ou comentário de entendidos em “assuntos internacionais”. Tanto faz se
vem de um jornalista ou de um “perito” ouvido pelas redações — dá na mesma, em
matéria de inutilidade, porque nem um nem outro sabem do que estão falando em
praticamente 100% dos casos, e todos só pensam em passar adiante como realidade
o que têm dentro das cabeças como desejo.
Nada mais fácil para entender isso na prática do que o atual noticiário sobre a crise entre Rússia e Ucrânia. Os jornalistas-comentaristas-analistas internacionais decidiram, desde o primeiro minuto, que a Rússia ia invadir a Ucrânia com tropas, tanques e bomba atômica. Decidiram, também, que o bandido indiscutível da história era o presidente Vladimir Putin — nomeado pela mídia, depois de Donald Trump e junto com Jair Bolsonaro, o pior governante que há hoje no mundo, disparado, ainda por cima quando recebe uma visita ao vivo do próprio presidente brasileiro. Mas a Rússia demorou muito para atacar, e a mídia ficou inconformada com isso. Insistia, diariamente, que ia ter guerra, sim senhor — tinha de ter guerra, de qualquer jeito, pois esse era o script que desenharam, e o script precisava ser cumprido até o fim. Quando os ataques finalmente foram feitos, a impressão que ficou foi a seguinte: “Mas essa guerra já não tinha acontecido?” Ou: “Por que demorou tanto?”
A crise entre Rússia e Ucrânia
é um clássico do jornalismo de torcida que se pratica hoje por aqui. No caso, a
arquibancada está torcendo contra a Rússia. Por que será? Uma pista: Putin teve
a má ideia de dizer que a Amazônia pertence ao Brasil, e não pode ser
“internacionalizada”. Os jornalistas brasileiros ficam revoltados com esse tipo
de coisa — eles são contra a manutenção da Amazônia sob a
soberania do Brasil. Acham que o certo, para “salvar o planeta”, é entregar a
área a um condomínio de ONGs de “esquerda”, burocratas das Nações Unidas e o
presidente Macron. Aí não tem jeito. Saída possível: quando Bolsonaro,
“Floresta Amazônica”, etc. etc. etc. entram no noticiário internacional, com ou
sem Putin, mude de página ou de programa, pois não há a menor possibilidade de
qualquer análise com pé e cabeça. O cidadão aplica melhor o seu tempo
assistindo a um desenho animado da Peppa Pig.
Os
jornalistas não estão percebendo o tamanho da alucinação em que se meteram com
as suas agências de caça às fake news
· Todas as vezes que você encontrar a expressão
“agência de verificação”, ou qualquer outra manifestação de atividade da
Polícia Nacional de Repressão às Fake News, tome a direção
exatamente contrária. “Notícia falsa”, em quase todos os casos, é notícia que a
mídia não quer que você leia, veja ou escute — notícia, comentário, opinião,
nada. É uma das preocupações centrais do jornalista brasileiro de hoje: o que não deve
ser noticiado. É também uma ferramenta para censurar a livre circulação e fatos
e de ideias nos meios de comunicação. Talvez nada ilustre tão bem essa nova
realidade quanto a última moda na área: o desmentido da piada. É o que acaba de
acontecer com essa mesma história da viagem de Bolsonaro à Rússia. Disseram,
nas redes sociais, que foi só ele ir para lá e a crise sossegou. Era uma
brincadeira. As agências, acredite se quiser, saíram correndo para explicar,
com a maior seriedade deste mundo, que era fake news — a
“direita”, disseram severamente as agências, quis deixar Bolsonaro bonito na
foto com uma “narrativa falsa”.
Prepare-se, portanto. A
qualquer hora dessas você pode topar com algo assim em algum jornal, programa
de tevê, etc.: “A Agência de Checagem XPTO verificou que é falsa a narrativa de
que o papagaio disse ao padre isso, mais aquilo, e mais isso e mais aquilo.
Especialistas ouvidos por esta agência confirmam que o papagaio, na sua
condição de animal da ordem dos psittaciformes, não tem condições fisiológicas
para realmente se comunicar com seres humanos em idiomas conhecidos. Por outro
lado, a CNBB desmentiu que qualquer dos seus padres tenha tido contato com esse
ou outro papagaio.”
Os jornalistas não estão
percebendo o tamanho da alucinação em que se meteram com as suas agências de
caça às fake news. Mas o público não tem nenhuma obrigação de
entrar nessa neura. É só ir para o outro lado.
· Não acredite em nada que lhe for apresentado na
mídia como sendo alguma declaração de “especialistas”. Não existe, quase nunca,
especialista nenhum. O “especialista”, assim sem nome, entre aspas, é
frequentemente inventado pelos jornalistas para dizer o que querem, e fingir
que estão sendo técnicos, precisos, imparciais etc. Eles assumem várias formas.
“Cientistas”, “pesquisadores”, “peritos”, “estudiosos da área”,
“profissionais”; um dos mais usados é “o mercado”, quando os comunicadores
querem comunicar ao público os seus desejos em matéria de economia. Resultado:
você acha que o jornalista se deu ao trabalho de fazer perguntas a pessoas que
entendem do assunto do qual ele está falando, para deixá-lo melhor informado.
Mas é mentira — é só ele mesmo, o jornalista, quem inventa essa “fonte” para
dar o seu recado com uma cara mais profissional.
Pode até ser que o
especialista realmente exista, mas dá na mesma — é em geral um professor da USP
ou coisa parecida, ou nem isso, que pensa exatamente igual ao jornalista. Ou é
um amigo, ou um outro jornalista, ou são sempre as mesmas figuras; já se viu de
tudo por aí. O que importa é o seguinte: inexistentes ou existentes, os
“especialistas” não servem para fornecer informações. Servem apenas para dar
suporte ao militante dos meios de comunicação em sua missão de “agir” sobre o
ambiente político — e não de informar alguém sobre coisa nenhuma.
O
Brasil, seja lá o que estiver acontecendo na economia, está sempre em crise
terminal nas primeiras páginas e no horário nobre
Note, no noticiário econômico,
que certas coisas só sobem e outras só descem, sempre, em qualquer
circunstância. Deveriam variar, porque os fatos variam, mas não: na mídia essas
coisas não mudam nunca. A inflação só sobe. O crescimento econômico só desce. O
desemprego só sobe. As exportações só descem. Os juros só sobem. As vendas só
descem. A pobreza só sobe. A renda só desce. O “pessimismo do mercado” só sobe.
O “otimismo do mercado” só desce. E por aí vamos. É óbvio que isso não pode
estar certo durante 100% do tempo. Os fatos mudam, e as notícias teriam de
mudar; mas não mudam. Então está errado.
Não é nenhum mistério da tumba
do faraó saber por que a economia é descrita dessa maneira. É que a mídia não
publica, ou dá tão escondido que muitas vezes não se encontra a notícia, quando
a inflação, o desemprego, os juros, a pobreza e o pessimismo caem; faz
exatamente a mesma coisa quando o crescimento, o emprego, as exportações, as
vendas, a renda e o otimismo sobem. Aí fica mesmo difícil. O Brasil, seja lá o
que estiver acontecendo na economia, está sempre em crise terminal nas
primeiras páginas e no horário nobre. Não importam os números reais, nem o que
o cidadão vê a sua volta — “o país” está no fundo do poço todo santo dia. A
vida seria simplesmente impossível, na prática, se o noticiário econômico
estivesse correto. Como a vida continua, apesar dos jornalistas, é melhor
segurar a ansiedade. O mundo, positivamente, não está acabando.
·
Nunca dê atenção a qualquer calamidade provocada,
segundo anuncia a mídia, pela aplicação de “agrotóxicos” na agricultura e na
pecuária brasileira. O Brasil não aplica “agrotóxicos”; como um dos dois ou
três maiores produtores agrícolas do mundo, aplica defensivos contra pragas,
pois se não fizesse isso não haveria colheita nenhuma. Mas e daí? O tema foi
transformado em artigo de fé indiscutível, como as convicções católicas sobre o
sacramento da eucaristia — não adianta querer provar ao Papa, digamos, que as
coisas não são assim do ponto de vista “fático”, como diria um despacho do
ministro Alexandre de Moraes. É fé pura: nove entre dez jornalistas brasileiros
se convenceram, para o resto da vida, que a comida produzida no Brasil está
“envenenada”, e não há possibilidade de discutirem mais o assunto. É um
disparate absoluto, claro: se os alimentos brasileiros estivessem mesmo com
veneno, as pessoas estariam morrendo em massa do café da manhã até a janta,
todos os dias — ou então os hospitais estariam com filas que fariam a covid
parecer uma brincadeira. Ninguém morreu até hoje no Brasil, nem foi para UTI,
por chupar uma laranja, mas não adianta nada: a mídia continua tendo certeza de
que os “agrotóxicos” estão acabando com a gente.
A sugestão, nessa história — e
essa história é jogada o tempo todo em cima do público — é fazer a mesma coisa
que você faria se lesse, por exemplo, o seguinte: “Um homem de oito metros de
altura fez isso ou aquilo” etc. etc. Fica fácil: não pode existir o homem de oito
metros de altura, nem o triângulo de quatro lados, nem o atleta que corre a
maratona em cinco minutos. Quando aparece algo assim, então, é só dizer: “Isso
aqui está errado; alguém se enganou”. Resolvido, não é? Ninguém precisa ficar
tenso. É a mesma coisa com os “agrotóxicos” — esqueça o assunto, pois o “veneno
na comida” é o homem de oito metros das redações brasileiras.
Não
perca o seu tempo tentando descobrir se o “PMDB” vai romper com o governo
·
Não dá, é claro, para expor uma por uma todas as
possíveis cretinices que a imprensa fornece diariamente ao público; o espaço
físico, em publicações digitais, não tem limites, mas a paciência do leitor
tem. É preciso, por via de consequência, ir parando em algum lugar, e aqui é um
lugar tão bom quanto qualquer outro. Os exemplos apresentados acima, em todo
caso, já dão uma ideia de como se defender um pouco mais dos comunicadores e
dos meios de comunicação deste país. A chave é ficar na posição fundamental da
lógica: se isso aqui não está fazendo sentido, e não está fazendo sentido
agora, não vai fazer mais tarde. Deixe de lado, portanto, e vá adiante.
O guia serve para uma série
surpreendente de assuntos. Trate igual aos “agrotóxicos” os incêndios que estão
destruindo as últimas árvores da Floresta Amazônica. Não se preocupe em saber
se os desabamentos fatais de Petrópolis são causados pelas plantações de soja
em Mato Grosso, que, segundo a imprensa, “estão alterando o clima”; as casas
caíram porque foram construídas em lugares onde não poderia ter sido feita
nenhuma construção. Não dê atenção aos diversos “boicotes” econômicos que as
grandes empresas multinacionais estão fazendo ou vão fazer contra o Brasil, por
motivos ambientais ou porque o Brasil tem um governo de direita — o agronegócio
bate recordes todos os anos, o saldo de exportações brasileiro foi de US$ 60
bilhões em 2021 e quase todas as 500 maiores companhias do mundo mantêm
operações no Brasil. Não perca o seu tempo tentando descobrir se o “PMDB” vai
romper com o governo, ou por que Gilberto Kassab ainda não se definiu a
respeito do seu futuro. Vai pondo. O jornalista, em geral, não está do mesmo
lado que você, nem quer as mesmas coisas. Pense sempre nisso e a vida fica mais
fácil.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista
Oeste, nº 101, 25-2-2022
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