terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

[Estórias da Aviação] Eu, a Panair e o assombro das imagens

José Manuel

Em fevereiro de 1965 tinha 18 anos, estudava à noite e trabalhava num banco no centro da cidade do Rio.

Morava em Copacabana e havia duas maneiras de chegar ao trabalho: ou ia de bonde desembarcando no largo da Carioca, o que demorava horrores a chegar e depois andava um pouco, ou ia de ônibus pela praia do Flamengo ou no recém-formado parque do Flamengo, descendo na praça XV. O segundo trajeto era mais agradável, mais rápido e apenas andava mais para chegar ao banco.

Mas, o que EU tenho a ver com a PANAIR?

A mais estreita relação com essa empresa, é a de que tripulei um DC-8 da Panair, o PDS, já com as cores da VARIG, em alguns voos durante certa época, e algumas recordações boas desse avião, eram a posição das luzes de leitura no encosto das poltronas, o lounge entre a porta dianteira e a “first class" e o "garbo" do Comandante Bungner pilotando de luvas de couro pretas.

Foto: Christian Volpati

A menos, mas triste, muito triste é que certas imagens nunca me saíram da cabeça.

Foi quando a partir de meados do mês de fevereiro de 1965 todos os dias que passava de ônibus pela antiga sede da PANAIR, com aqueles laguinhos na frente, via aquela movimentação de funcionários e tripulantes em protesto na rua e pior, impedidos de entrar em sua própria empresa, pois até as portas se encontravam lacradas por militares da aeronáutica em sentinela.

Era uma visão muito triste aquela, que até a mim mero espectador passante, apesar de leigo, chocava.

Ainda era muito novo para ter uma grande percepção do que se passava, apenas as notícias que lia todos os dias sobre o assunto, mas a imagem nas fotos, do rosto daquelas meninas e rapazes era pungente e nunca contei isso a ninguém, mas nos piores momentos por que passamos na VARIG, era essa imagem que me assombrava sempre.

Durante anos tive medo de que aquela imagem se tornasse realidade. Guardei para mim, mas aquilo me atormentou a vida toda, talvez porque eu valorizasse tanto o meu emprego e a minha empresa, tendo muito medo de um fim trágico como aquele da PANAIR.

No final, pelo menos já aposentado, as duas, tanto a PANAIR como a "minha" VARIG, tiveram fins trágicos e orquestrados, oficialmente consideradas as duas maiores vergonhas empresariais, sendo ambas e de diferentes modos, assaltadas e assassinadas pelo Estado Brasileiro.

A primeira, pelos militares, num equívoco terrível e histórico, tanto que ela existe até hoje com CNPJ válido, marca ativa e sem dívidas. Se hoje resolver voltar a voar, nada a impede de o fazer.

Então para quê fazer aquilo com uma empresa saudável e comprovadamente adimplente?

Por que plantar no rosto daquelas aeromoças que eu via nos jornais, acampadas perto do Palácio Laranjeiras, implorando por uma chance na vida, o semblante do desespero?

Para quê matarem um ideal ainda no início da vida?

A segunda, todos nós sabemos, teve o seu fim trágico e orquestrado por uma quadrilha de civis vagabundos, tendo como líderes um cachaceiro e uma psicopata ex-guerrilheira.

O fantasma que me assombrou durante 32 anos, acabou se materializando em 2006, portanto, 41 anos após as primeiras imagens que via da janela de um ônibus.

Quando fui para a primeira greve de fome no Santos Dumont, aquelas visões do pessoal da PANAIR, não saíam da minha cabeça a todo o instante e pior, estava ali ao "lado" onde tudo aquilo ocorreu.

Aquilo de fazer passeatas dentro ou fora do aeroporto era um revival insuportável para mim, mas importante na essência daquele momento.

Ainda em voo eu suspeitava, não sei como, durante todo o tempo, que aquilo poderia voltar a acontecer.

Em 95 quando começaram a correr os primeiros boatos, fiz um movimento no sentido de oferecermos 10% do nosso salário a título de empréstimo à empresa para que o pior não viesse a acontecer.

Não tive sucesso na minha empreitada e ainda sofri algumas agressões verbais.

Nas noites que passei sozinho no aeroporto que felizmente foram poucas, aquelas imagens do pessoal da PANAIR sem poder entrar na sua sede, na sua empresa, se materializavam em minha cabeça, e eu me via lá com eles participando e tentando achar uma razão para tudo aquilo, afinal naquele momento eu também era parte sem volta daquele quadro trágico, aquele "Night wacht".

Foi muito triste e terrível fazer parte de uma cena que eu tinha visto quarenta e poucos anos antes em plena juventude, se materializando na minha vida naquele momento.

Mas aquela era a minha realidade e eu estava ali lutando bravamente com todas as minhas forças para superar o meu destino.

Aos trancos e barrancos, cheguei até aqui salvo com saúde, mas com o meu "eu" comprometido pelas perdas sofridas e sonhos inatingidos.

Deixo aqui os meus agradecimentos ao Cmro. SANTOS ROCHA, ex--PANAIR, e ao NELSON PEREIRA (lâmpada) que chegou a fazer a escala dos DC-8, pelas prestimosas informações recebidas.

Título e Texto: José Manuel – cada vez que vou ou volto a pé do aeroporto para a praça XV, paro na frente do prédio dos laguinhos, hoje III Comar, faço uma reverência em homenagem a todos os que me antecederam em nossa longa e sofrida " via crucis ", que ainda não terminou. 

Anteriores: 
A Pedra da Gávea e o voo de Miami 
As ervas da ira (parte I) – Um sonho quase desfeito 
Os números esquecidos, a realidade e as consequências 
As ervas da ira. (Prólogo) 
O voo 100, o apartamento e Lisboa 
[Estórias da Aviação - Extra] Fatos & Cronologia 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-