terça-feira, 11 de janeiro de 2022

[Estórias da Aviação] O voo 100, o apartamento e Lisboa

José Manuel

O ano era 1974, e desde 72, fazia parte de um grupo de instrução, em que se priorizavam as ações na formação de um grande número de comissários que iriam substituir os mais antigos promovidos ao DC-10, que demandava um grande número de tripulantes.

Foi uma época prazerosa, de muita satisfação pessoal, por ter sido um dos escolhidos à nova missão, mas sem dúvida de um trabalho extremamente extenuante.

Cheguei a fazer com o B-707 um total de doze voos em um mês para Buenos Aires, dando instrução a todos os comissários em cada voo.

A VARIG se modernizava rapidamente e a Diretoria do Serviço de Bordo não media esforços no sentido de que os relógios estivessem ajustados à nova era.

E claro, os DC-10 eram o divisor de águas em nossa empresa.  Um salto formidável em tecnologia e conforto aos passageiros.

Curiosamente, e aqui faço o meu registro histórico, por ter sido o único tripulante brasileiro nessa época (72), a fazer parte de uma tripulação americana e voar um Wide Body da Lockeed, o Tri-star L-1011 com a finalidade de representar a bordo, a VARIG servindo de ligação entre convidados, e a tripulação daquele avião, dois anos antes dos nossos DC-10 chegarem!

No início da década de 70, talvez até antes, a VARIG já estava em negociações com a Douglas, fabricante do DC-10, mas a Lockeed que fabricava o Tri-Star concorrente, tentava introduzir esse avião aqui na América do Sul.

E trouxe ao Brasil esse avião ligeiramente menor que o DC-10, mas também trimotor, com duplo corredor e tecnologicamente avançadíssimo, pois já possuía um sistema automatizado de pouso e decolagem sem a interferência dos pilotos, o que assombrou a todos, nos três voos de demonstração que fizemos entre GIG/BSB, GIG/SAO E GIG/POA.

Todos podiam ver esses extraordinários pousos e decolagens, através de grandes telas nas cabines de pax. Uma outra curiosidade e imaginem o que senti, pulando do AVRO ao futuro, pois, este avião possuía uma galley imensa no porão frontal, contíguo aos de carga, com acesso por um elevador para tripulantes. Dá pra imaginar o meu espanto?

Pois é...., mas voltando à instrução, no ano de 74, à volta de julho estava em plena estafa e não conseguia pelo volume de trabalho finalizar o meu novo apartamento, cuja montagem havia iniciado em 73.

Achei então que era hora de parar e solicitei, meu desligamento do quadro de instrutores no que fui gentilmente atendido pelo nosso superintendente Norton Osório, me colocando à disposição da escala normal de voo e novamente, claro, do telefone do Plinio malvadeza.

Foi aí, que ao chegar do voo 100 de Porto Alegre, por volta das 14h, fui avisado pelo pessoal do operacional, de que havia um recado da DSB, para mim. Era o Norton, querendo falar comigo.

- Tudo bem, tchê? Fizeste bom voo?
- Sim, correu tudo bem, o senhor quer falar comigo?
- Como está o teu passaporte? E as vacinas, estão em dia?
- Sim, voltei recente da Europa e está tudo ok, por quê?
- Aqui a tua passagem para Lisboa hoje às 22h. Vais substituir um colega que se acidentou na base, por 30 dias!

Pra quem não sabe, a aviação é assim, na lata! Manda quem pode, obedece quem tem juízo!

Com um ponto de interrogação na cabeça e o meu apartamento no espaço, me despedi dele já traçando a rota para Lisboa. Primeiro, uma escala no Itaú aeroporto, pegar algum dinheiro e pagar contas a futuro, a seguir a casa dos meus pais como segunda escala, contar o ocorrido, deixar o dinheiro do Itaú, uma refeição, alguns objetos e então a penúltima escala, ou o que havia sobrado do meu projeto de casa, refazer as malas com roupa de frio inclusive e aprontar um acampamento portátil para os próximos 30 dias, na Europa!

Depois, tentar relaxar um pouco por que afinal eram 16h e já tinha ido a Porto Alegre com benefícios intermediários e uma noite inteira pra pensar o que fazer.

Instalado de novo naquele Boeing 707, eu, o navegador e o sextante, nem dois anos fazia da minha última volta, já retornava para a Europa, de novo, desta vez, sem a francesinha a me esperar, mas um Londres, um Frankfurt e um Zurique, tudo bate e volta, que eram os voos que fazíamos na base Lisboa. Não posso dizer que foi ruim, pois afinal estava outra vez com a minha família, recebia uma polpuda diária e hotel reservado. Não dava pra reclamar pois afinal quantos viventes neste mundo haviam recebido uma dádiva como aquela?

Mas, ainda no avião, no meio do Atlântico, me sentia desconfortável ao pensar na rota de colisão que a minha vida havia tomado, só porque tinha ido a Porto Alegre. E o pior estava por vir, já em terras lusas.

Ali mesmo ao pé da escada fui recebido pelo Paulino, representante da DSB, em Lisboa, que me deu as boas-vindas com um envelope de dinheiro das diárias, uma reserva no Residencial Horizonte e a minha escala para aqueles próximos dias.


E aí, a "boa" notícia:

- Tu vais cumprir o baseamento do fulano, até ao fim do ano!!
- Não, acho que está enganado, o senhor Norton me disse que eram 30 dias!
- Não, não, é até ao final do ano mesmo.

Quando notei que iria ficar dando nó em pingo d'agua embaixo de um avião, resolvi deixar a assombração europeia do Plínio falando sozinho e fui embora para a meu novo apartamento português uma vez que o meu, brasileiro ninguém queria me deixar entrar.

Foi a partir daí que passei a não curtir a ideia de me basear em lugar algum.

Em 1978, cedi, fui chamado para ir para Los Angeles, mas ao passar no vestibular da Santa Ursula, desisti e o Nakamura foi no meu lugar. Tinha gente que gostava e ia pra todos, mas eu nunca quis. Nunca me agradou a ideia de viver no futuro e ter que retornar ao passado. Minha cabeça não funciona apenas monetizada.

E aí, 30 dias e alguns voos dentro da Europa, consegui retornar ao Rio, promovido à RAI, (Rede Aérea Internacional), uma escala internacional na mão e finalmente o meu apartamento ficando pronto alguns meses depois.

Enfim, valeu a estadia em Lisboa e tudo de bom que lá ocorreu.

Lá também, sem querer, comecei a conhecer como funcionava o CIB.Co (Crew International Business and Co.), Startup, transnacional e que muito tempo depois vim a saber fazia parte de uma organização de dimensões transcontinentais.

Título e Texto: José Manuel - 30 dias fora do local onde habitamos, é sempre uma dádiva dos céus, pela repaginada que damos em nossa vida. Janeiro de 2022

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Um comentário:

  1. José Manuel, aprecio os teus textos contando, relembrando estas histórias; muito obrigado por proporcionar momentos de leitura tão agradáveis como interessantes.
    Um abraço grande
    Vilmar Mota

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