A turma que elogiou até Stálin deve aprender a pelo menos tolerar quem pensa diferente
Deonísio da Silva
Em 2001, um dos colunistas da revista Época era Olavo de Carvalho. Escrevia num viés diferente de todos nós, os outros colunistas. Aquela equipe trouxe a tiragem de 200 mil exemplares para 800 mil semanais.
Foto: Mauro Ventura |
Augusto Nunes era o diretor. Deu capa a Jorge Amado na semana em que as outras, como Veja e Istoé, deram capa ao afogamento da namorada de um dos filhos do empresário Abílio Diniz. Os donos da empresa reclamaram do diretor de redação: as outras vendiam dois ou três exemplares a cada um da Época naquela semana. Augusto Nunes demitiu-se. Jorge Amado morreu. Tiveram que fazer nova reimpressão e a Época bateu as concorrentes.
Referência solar do jornalismo
brasileiro, como sempre souberam seus leitores e hoje sabem também todos os que
o ouvem e veem, Augusto Nunes estreou na direção da revista contrariando os
patrões, que queriam aproveitar a oportunidade para excluir Olavo de Carvalho,
mas o diretor de redação manteve o colunista.
Anos depois, eu coordenava uma mesa de debates em Passo Fundo (RS), diante de cerca de 4 mil pessoas, numa das famosas Jornadas de Literatura, e pedi a Augusto que nos desse o privilégio de ouvir dele aquela história que tão poucos conheciam e só de bastidores. E ele contou, as pessoas fizeram perguntas, todas respondidas. Sua mulher, a fotógrafa Luzia Lacerda, estava na plateia e fez fotos daquele encontro.
A mudança de rumos na Época foi memorável por motivos de todos conhecidos, mas para mim acrescidos de um viés particular. Era a semana do dia 6 de agosto de 2001, aniversário de minha mãe. Eu visitava Nydia Guimarães, viúva do escritor Josué Guimarães, que, por motivos espíritas, me chamava de filho (e de neta a minha filha Manuela, do casamento com a professora e poeta Soeli Maria Schreiber da Silva). Eu já morava em São Carlos (SP), mas estava no Sul para visitar minha “mãe” e ouvia uma curiosa história de amor contada por minha “irmã” Adriana Machado Guimarães, a quem conhecera criança em Porto Alegre. Lembro que ela me contava de um amor complicado em andamento. Soube mais tarde que aquela história teve um final feliz. Anos depois almocei com Adriana em sua casa, no Recreio, no Rio.
Naquele dia frio, porém, eu
estava em Canela (RS) e escrevi a coluna no escritório onde Josué Guimarães escrevia,
enquanto Nydia bebia uísque Natu Nobilis na sala. A internet
era de linha telefônica e demorei a obter confirmação de que chegara direitinho
à redação. Quando desci para a sala, Nydia disse à empregada: “Pode servir, o
Deonísio terminou”. Tempo de muitas delicadezas. Na vida literária e na mídia
também.
Mas 21 anos depois o Brasil
está rachado. Ignoram que temos amores, cônjuges, filhos, amigos, que todos
temos valores sagrados, como o amor, a amizade, a solidariedade na hora da dor
etc. Vejam: morreu um daqueles colunistas, aos 74 anos, idade precoce nessa
outra época. Mas como ele não integrava a horda dos imbecis coletivos contra os
quais tanto se insurgiu, leio notas medonhas sobre a sua morte, escritas por
impiedosos que batem num intelectual que a morte, só a morte, calou.
A turma que elogiou até Stálin
antes de Kruschev estarrecer a esquerda com a revelação de seus crimes, deve
aprender a pelo menos tolerar quem pensa diferente. Tolerar é só um começo, mas
é indispensável. O passo adiante é examinar as razões de quem pensa diferente
de nós.
Os livros de Olavo de Carvalho
são muito lidos, milhões de brasileiros pensavam como ele e em 2018, diante de
várias opções, elegeram a Jair Bolsonaro presidente da República. E depois de
um segundo turno, espécie de prova dos noves, pois as urnas perguntaram: é este
mesmo que vocês querem? E a maioria respondeu que sim, que era ele.
Milhares de leitores ou alunos
pagavam para ouvir e ler Olavo de Carvalho sabendo que ele apoiara Jair
Bolsonaro, apesar disso ou por causa disso. E souberam também de seu
rompimento. E continuaram seus leitores ou alunos. Respeitemos a todos eles,
não é nenhum favor que lhes fazemos. E este respeito deve ser mútuo, é claro.
Quem insulta Olavo de
Carvalho, agora morto, negando-lhe a inegável grandeza que teve, fala de sua
pequenez, também inegável por, ainda vivo, bater num morto. De mortuis
nihil nisi bene (dos mortos, só o que foi bom), diziam os sábios
romanos. Mortuus res sacra est, reus sacra est (o morto é
sagrado, o réu é sagrado).
O poderoso império romano
levou três séculos para aceitar a mensagem cristã do maior dos mandamentos:
“amai-vos uns aos outros”. Enfrentava e vencia seus inimigos pela espada. E não
entendia aquela seita que vinha com mensagens de rendição, tal como pareciam a
seus cidadãos e sobretudo a seus soldados. Mas, se os cristãos não tivessem
vencido, não teríamos tido a civilização ocidental cristã.
Sim, nossa civilização tem
estes dois adjetivos: ocidental e cristã. É conhecida por isso. Por isso, há festas
de batismo, de casamento e ritos à hora de nossa morte. Como dizia Charles
Chaplin, “não sois máquinas, homens é que sois”.
A morte de um dos grandes da
direita, como foi Olavo de Carvalho, pode servir para que intelectuais não
alinhados a ideologias totalitárias de uma banda ou de outra, renovem sua
esperança de convívio entre diferentes e, assim procedendo, convidem e comovam
outros a fazer o mesmo. Ainda que não sejam cristãos, pois este também deve ser
um direito e não uma obrigação, uma vez que a fé é escolha, não é e não pode
ser imposição. Sem contar que não se pode discriminar ninguém, pois nossa
Constituição garante a liberdade religiosa e nessas horas também é dela o
limite do que pode e do que não pode ao prescrever que todos são iguais perante
a lei. Se somos iguais, nos tratemos como iguais.
Provavelmente a repercussão da morte de Olavo de Carvalho vai evidenciar uma vez mais o atraso do pensamento brasileiro, que não é só brasileiro, evidentemente, pois afeta outras nações. O Brasil vive menos a era dos antigos ideais de paz e mais a era do filme Meu ódio será tua herança, título adaptado de The Wild Bunch (O bando selvagem), o celebérrimo longa-metragem do cineasta americano Sam Peckinpah. É um dos melhores filmes do século passado e foi indicado para o Oscar justamente pelo roteiro.
Título e Texto: Deonísio da
Silva, revista Oeste, 25-1-2022, 18h
Relacionado:
Morre Olavo de Carvalho aos 74 anos
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-