Não só em universidades, mas também nos jornais, devemos ser livres para fazer as perguntas difíceis, contemplar as hipóteses impopulares, dizer o que algumas pessoas consideram “indizível”
Rodrigo Constantino
O historiador Niall Ferguson
[foto] foi o entrevistado do Roda Viva nesta semana. Acompanho
seu trabalho faz tempo, e admiro bastante sua capacidade de análise e
argumentação. Em determinado momento, quando perguntado sobre o ambiente dos
debates na era moderna, Ferguson se disse um “fundamentalista da liberdade de
expressão”. Ele explicou que é vital para uma sociedade ter não só liberdade de
expressão, mas livre pensamento, livre questionamento, debate aberto. Foto: Greg Salibian/Fronteiras do Pensamento
Para Ferguson, não só em
universidades, mas também nos jornais, devemos ser livres para fazer as
perguntas difíceis, contemplar as hipóteses impopulares, dizer o que algumas
pessoas consideram “indizível”. Há alguma restrição para essa liberdade?
Ferguson responde: “Há elementos muito claros para o que pode e não pode ser
dito; o que não pode ser dito num espaço público é uma ameaça específica a um
indivíduo; mas certamente posso criticar uma ideia sem minha fala ser
restringida; discurso não é violência, violência é violência, e quando as
pessoas da esquerda — e eles também fazem à direita — tentam censurar certas
ideias, pois alegam que são perigosas, meu argumento é que não são as ideias
que são perigosas, são os censores, as pessoas que tentam calar o debate que são
perigosas”.
Ferguson continua seu raciocínio: “Acho que uma característica bem perturbadora dos últimos dez anos tem sido uma crescente cultura intolerante e iliberal, especialmente em universidades americanas, mas acontece em todo lugar; isso se espalhou por corporações, se espalhou pela mídia, e temos frases vagas, como ‘discurso de ódio’, usadas para justificar a censura. Discurso de ódio é apenas a versão do século 21 para blasfêmia, heresia. As pessoas que se intitulam woke nos Estados Unidos hoje estão engajadas numa espécie de estranha missão religiosa e se comportam como membros de um culto tentando prescrever certas formas de discurso para cancelar ou desconvidar palestrantes de quem discordam. Tudo isso eu considero nojento e uma desgraça. Nada pode ser mais danoso para uma sociedade livre do que calar o livre pensamento e a livre expressão, principalmente em universidades, que são lugares onde essas coisas deveriam ser apreciadas e preservadas”.
No alvo! A história mostra que
a liberdade nunca teve muitos amigos sinceros, os tais “fundamentalistas”, pois
a maioria a defende até esbarrar em seus interesses. Poucos são os que defendem
a liberdade com base em princípios. Defender a liberdade de expressão com a
restrição de que ninguém se sinta ofendido com ela, por exemplo, é pregar a
censura. Defender a “liberdade” de concordar com a maioria do momento ou o
poder estabelecido não é pregar liberdade, e sim o direito de repetir o
consenso, de seguir o coro.
Toda tirania, afinal, veio em nome do
bem coletivo. Nenhum tirano se apresentou como malvado
Nunca isso ficou tão claro
como nessa pandemia. Um clubinho arrogante, que tenta monopolizar a fala em
nome da ciência, resolveu barrar até especialistas renomados, médicos sérios ou
jornalistas curiosos que simplesmente não repetiam a “versão oficial” sobre a
crise sanitária, sendo que essa oscilou bastante, pois a própria OMS se mostrou
um tanto errática. O debate foi interditado, os arrogantes rotularam de
“negacionistas” aqueles com dúvidas, os verdadeiros crentes dogmáticos que
colocaram o Dr. Fauci no papel de profeta passaram a descascar os mais céticos,
e as redes sociais suspenderam várias contas suas.
A coisa está tão feia que
vemos esse clima asfixiante ao debate nas próprias universidades, sem falar da
mídia, um antro de ideologia e arrogância. Um apresentador da CNN Brasil, que
se diz liberal, chegou a defender a censura na cara dura, sem nenhum pudor: “A
frouxidão do controle interno de conteúdo antivax nas redes sociais no país é,
infelizmente, um convite ao controle externo. A autorregulação está falhando
miseravelmente. MP e legisladores terão de atuar para preservar vidas.” Stalin,
Lenin, Mao, Fidel, Mussolini e tantos outros tiranos não teriam nada a alterar
nessa linha de raciocínio.
Toda tirania, afinal, veio em
nome do bem coletivo. Nenhum tirano se apresentou como malvado. Era sempre pela
raça, pela nação, pelo povo, e, com base nisso, tudo estava permitido. Para
proteger o coletivo, quem liga para algumas perdas de liberdade básica individual?
Ainda mais quando “sabemos” que esses indivíduos são párias sociais, hereges,
negacionistas, sujeitos perigosos que se recusam a aderir ao consenso. Se não é
possível persuadi-los, então só resta mesmo calar todos na marra, em prol da
saúde geral. Prisão para quem questionar as vacinas vendidas como panaceias! E
isso de um suposto liberal…
Além do “jornalista liberal”,
uma coordenadora da UFRJ foi na mesma linha, alegando que chegara a hora de as
universidades qualificadas criarem estruturas de combate ao negacionismo em
seus quadros. Para ela, “não devem ser permitidas palestras tentando travestir
de polêmica posições bem estabelecidas na comunidade científica”. Trata-se da
Inquisição iluminista! Detalhe: a senhora autoritária publicou outra postagem
na virada do ano afirmando que 2022 será uma grande preparação para um 2023
melhor, já que Bolsonaro será derrotado e Lula será eleito para “recolocar o
Brasil nos trilhos, revertendo toda a destruição dos últimos anos”. Quem nega a
destruição causada pelo PT não é negacionista?
O Ocidente flerta com o
crescente abandono dos pilares que fizeram dele a civilização mais avançada de
todas. O devido processo legal tem sido substituído pela pressão dos movimentos
de minorias; a ciência verdadeira foi trocada pelo dogma da ideologia; a noção
do certo e do errado vem sendo esgarçada pelo relativismo seletivo (não há mais
verdade objetiva, mas é preciso combater as fake news); e o mais
sagrado princípio, da liberdade de expressão, para poder questionar isso tudo,
vem sendo atacado justamente por quem deveria ser seu guardião, por jornalistas
e professores universitários. Não dá para dourar a pílula: o quadro é
assustador.
PS: na mesma entrevista, a
apresentadora militante tentou lacrar e arrancar do entrevistado uma denúncia
ao governo Bolsonaro. Ela quis saber se muitas mortes poderiam ter sido
evitadas caso o governo fosse outro no Brasil. Ferguson, com sutileza, explicou
que a direita populista pode pecar em muitos aspectos, mas que dificilmente o
resultado seria muito diferente com outro no comando, pois basta ver o que
aconteceu no mundo todo, e ainda mencionou os Estados Unidos, com Trump e
depois Biden. As causas das mortes transcendem a medida A ou B, isso sem falar
que, no caso brasileiro, o presidente teve pouca margem de manobra, por conta
do arbítrio do STF. Foi uma bela “lapada” de quem faz análise séria em cima de
quem só faz militância partidária.
Título e Texto: Rodrigo
Constantino, Revista
Oeste, nº 95, 14-1-2022
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