A administração Biden segue a passos largos em várias frentes na tentativa de desvirtuar os pilares democráticos norte-americanos
Ana Paula Henkel
Depois da eleição presidencial de 2018, o brasileiro começou a entender — pra valer — a real atuação do Supremo Tribunal Federal. Foi-se a era de sabermos de cor a escalação da Seleção Brasileira de Futebol. O povo se apaixonou por política e hoje sabe de cabeça os nomes, sobrenomes, apelidos e decisões dos ministros do STF. O ativismo da nossa mais alta Corte, até então apenas suspeito e bem disfarçado na maior parte do tempo, foi exposto na clara luz do dia. As dúvidas sobre a militância do tribunal deixaram de existir e hoje sabemos que a atual escalação do STF não gosta de jogar na esfera institucional.
Juízes com grande poder de
decisão. Decisões fora de sua área de atuação. Esse era um medo que
aterrorizava os Pais Fundadores dos Estados Unidos. Homens não eleitos que
poderiam decidir o que quisessem sem a chateação de ter de ouvir “os representantes
do povo”. A Revolução Americana, nascida na opressão de decisões britânicas de
taxar os colonos na América sem a devida representatividade no Parlamento (“No
taxation without representation”), forjou uma nação com pilares
sedimentados na desconfiança de decisões de homens sem votos. Os filtros do
sistema político americano que evitam tais aberrações foram estudados e
descritos por homens que entenderam que, em um justo sistema de freios e
contrapesos em uma república, um Poder não pode — jamais — ferir as leis e
atuar com maior peso sobre outro.
Há mais de 230 anos, Alexander
Hamilton, James Madison e John Jay, três dos Pais Fundadores Americanos,
publicaram uma série de ensaios promovendo a ratificação da Constituição dos
Estados Unidos, conhecidos como Federalist Papers. Ao explicar a
necessidade de um Judiciário independente, Alexander Hamilton observou no Federalist número
78 que os tribunais federais “foram projetados para ser um órgão intermediário
entre o povo e sua legislatura”, a fim de garantir que os representantes do
povo agissem apenas dentro da autoridade dada ao Congresso nos termos da
Constituição. Em um trecho do Federalist número 78, publicado
em 1788 como parte de um dos documentos mais importantes da era fundadora da
nação mais próspera do mundo, Alexander Hamilton é incisivo:
“Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar isso seria afirmar que homens, agindo em virtude de poderes, podem fazer não apenas o que seus poderes não autorizam, mas o que eles proíbem. (…) É mais racional supor que os tribunais foram concebidos para ser um órgão intermediário entre o povo e o Legislativo, a fim de manter este último dentro dos limites atribuídos à sua autoridade. A interpretação das leis é da competência própria e peculiar dos tribunais (…) A Constituição deve ser preferida à lei, à intenção do povo, à intenção de seus agentes. Nem esta conclusão supõe, de modo algum, uma superioridade do Poder Judiciário sobre o Legislativo. Supõe apenas que o poder do povo é superior a ambos; e que, onde a vontade do Legislativo, declarada em seus estatutos, se opõe à do povo, declarada na Constituição, os juízes devem ser governados por este e não pelo primeiro. Eles devem regular suas decisões pelas leis fundamentais, e não pelas que não são fundamentais”.
Os Pais Fundadores da América
dedicaram anos de suas vidas estudando as falhas e os acertos de sistemas
políticos até chegarem à sua Constituição, documento único com mais de 230 anos
e apenas 27 emendas. No entanto, por mais que esses homens estivessem imersos
na proposição de desenhar um sistema justo e sólido, pequenas imperfeições
foram inevitáveis. Até na Corte Suprema, estritamente constitucional, momentos
de puro ativismo podem acontecer. Como na manobra militante de 1974 que
legalizou o aborto no país, no emblemático caso Roe v. Wade, mencionado
em alguns de meus artigos aqui em Oeste. E há outro ponto dentro
desse raro, porém existente e importante, ativismo judicial na América. O uso
de agências regulatórias, que podem ter ações com poder de lei na ausência de
legislações específicas.
Em Chevron v. National
Resources Defense Council (1984), a Suprema Corte americana decidiu
criar a doutrina de que os tribunais normalmente devem ceder às agências
governamentais quando a linguagem de uma lei é ambígua. O conceito de
“deferência Chevron” surgiu das interpretações concorrentes da Lei do Ar Limpo
(Clean Air Act), entre as administrações de Jimmy Carter e Ronald Reagan. Em
1977, o Congresso alterou a Lei do Ar Limpo após críticas de que o governo não
cumpria os padrões de qualidade do ar estabelecidos pela Agência de Proteção
Ambiental (EPA). A lei alterada exigia que os Estados que não atendiam às
especificações teriam de estabelecer um programa de licenças regulando “fontes
estacionárias novas ou modificadas” de poluição do ar. Em grande parte, a
definição de “fontes estacionárias” ficou intacta sob as emendas de 1970 à Lei
do Ar Limpo, que se referia a “qualquer edifício, estrutura ou instalação que
emite ou possa emitir qualquer poluente do ar”. O problema é que as
administrações Carter e Reagan não concordavam com a definição de “fontes estacionárias”.
Em um ano na Casa Branca, o atual presidente já encara preocupantes
números de aprovação
Em 25 de junho de 1984, o juiz
da Suprema Corte John Paul Stevens redigiu a decisão unânime da Corte que
considerou a revisão judicial da interpretação de uma lei por uma agência. Se o
Congresso não se manifestou diretamente sobre a questão específica, a
interpretação da agência podia ser baseada em uma construção permissível da
lei. No caso da Chevron, as emendas de 1977 deixaram à agência o poder de interpretar
a linguagem ambígua da lei. O juiz Stevens argumentou que não havia uma
intenção clara na história legislativa das emendas de 1977 para obter uma
definição nítida de “fontes fixas ou estacionarias”, e, onde a linguagem não
era precisa na questão de sua aplicação, as agências tinham experiência além do
Congresso para promover a flexibilidade em administrar uma legislação
importante.
Eu sei, parece um caso saído
de um livro do Barroso. Agora imaginem os Pais Fundadores da América ouvindo
que juízes deram o poder de interpretar legislações às agências reguladoras!
Administradores que nunca receberam um voto de cidadãos americanos. E Chevron
v. National Resources Defense Council acabou se tornando a porta para
que outras agências administrativas adquirissem mais e mais poder, muitas vezes
sendo usadas pelo próprio Executivo, que, se não conseguir conversar com as
Casas Legislativas, pode assinar ordens executivas absurdas e até
inconstitucionais. Como Joe Biden.
Em um ano na Casa Branca, o
atual presidente já encara preocupantes números de aprovação (uma nova pesquisa
da Quinnipiac University mostra queda de 36% para 33% nesta semana), para quem
ainda deveria estar gozando da “lua de mel” com o eleitorado. Biden começou o
ano de 2021 anunciando que jamais obrigaria as pessoas a se vacinar contra a
covid, e que sua administração “erradicaria” o vírus. Bem, de acordo com vários
imunologistas sérios, como o doutor Zeballos, no Brasil, e o doutor Martin
Kuldorff, aqui nos EUA, o vírus não vai a lugar algum tão cedo. Ele pode até
ser atenuado por variantes como a Ômicron, que traz alta transmissibilidade e
baixíssima letalidade, mas está longe de ser “erradicado”, como declarou o
democrata.
Sobre o passaporte sanitário
fascista de uma vacina ainda em desenvolvimento, Biden também não cumpriu sua
promessa. E, usando exatamente uma agência regulatória, a Osha (Occupational
Safety and Health Administration), seu governo baixou uma ordem exigindo que
empresas com mais de 100 empregados obrigassem seus funcionários a se vacinar.
De acordo com a ordem, Joe Biden teria poder regulatório para emitir um mandato
médico em prol da saúde pública e do “bem comum”. Muitos Estados, empresas e
organizações sem fins lucrativos desafiaram a regra imposta pela Osha e foram
para os Tribunais de Apelação em todo o país. Em novembro do ano passado, o
Tribunal de Apelações do Quinto Circuito bloqueou totalmente a ordem draconiana
do democrata e jogou o problema para a Suprema Corte.
Colhendo os frutos
Sempre é bom lembrar que a
eleição presidencial norte-americana de 2016, entre Donald Trump e Hillary
Clinton, não foi histórica apenas pela digital da polarização política. A
escolha não era nada fácil, já que na cédula havia o nome de dois candidatos
que não eram muito queridos nem pelos eleitores nem por seus partidos. No
entanto, mais uma vez, o pragmatismo do norte-americano entrou em cena na
eleição e, junto com ele, o famoso “single issue voter”, ou algo como “eleitor
de questão única”. Para eles, havia apenas uma razão, um único motivo para
eleger Donald Trump: a indicação de dois ou mais juízes para a poderosa Suprema
Corte Americana.
Donald Trump ficou quatro anos
na Casa Branca e conseguiu deixar uma marca inigualável. Além de um número
surpreendente de indicações de juízes conservadores para as Cortes Superiores e
distritos federais, Trump colocou três juízes constitucionalistas na Suprema
Corte. Para aqueles que taparam o nariz e votaram no bufão laranja por uma
única questão, a colheita chegou ontem, quinta-feira, 13 de janeiro de 2022. Em
uma votação histórica, a Scotus bloqueou a ordem de vacinação para todas as
empresas privadas que possuem 100 ou mais empregados, escrevendo em sua
decisão: “O secretário (de Saúde) ordenou que 84 milhões de
americanos tomassem uma vacina contra a covid-19 ou se submetessem a exames
médicos semanais à sua própria custa. Este não é um ‘exercício cotidiano do
Poder Federal’”.
A opinião final da Corte
também observa que o Congresso nunca decidiu dar à Osha o poder de regular a
vida dos norte-americanos: “Embora a covid-19 seja um risco que ocorre em
muitos locais de trabalho, não é um risco ocupacional na maioria”. A decisão
observa a falta de “precedentes históricos” da agência governamental Osha na
emissão de amplas regulamentações de saúde e alerta: “Permitir que a Osha
regule os perigos da vida cotidiana — simplesmente porque a maioria dos
americanos tem empregos e enfrenta esses mesmos riscos enquanto estão
trabalhando — expandiria significativamente a autoridade regulatória da Osha
sem autorização clara do Congresso”.
O juiz Neil Gorsuch, um dos
apontados por Donald Trump, concordou que o Congresso não deu à Osha o poder de
regular a vida diária nem as liberdades de milhões de norte-americanos, e foi
enfático: “A questão diante de nós não é como responder à pandemia, mas quem
detém o poder de fazê-lo. A resposta é clara: de acordo com a lei atual, esse
poder é dos Estados e do Congresso, não da Osha. Ao dizer isso, não impugnamos
as intenções por trás das ações de ordens da agência. Em vez disso, apenas
cumprimos nosso dever de fazer cumprir as exigências da lei quando se trata da
questão de quem pode governar a vida de 84 milhões de
norte-americanos. Respeitar essas exigências pode ser difícil em tempos de
estresse. Mas, se este Tribunal as cumprisse apenas em condições mais
tranquilas, as declarações de emergência nunca terminariam, e as liberdades que
a separação de Poderes da nossa Constituição procura preservar seriam poucas”,
concluiu Gorsuch, mostrando o motivo pelo qual os eleitores com apenas uma
razão para votar Trump comemoraram a decisão nas redes sociais.
Mas não pensem que não há
juízes ruins na Corte Suprema Americana. Os juízes indicados por democratas,
Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan, não apenas discordaram da
decisão e queriam que o governo federal violasse o próprio federalismo
americano, diminuindo a autonomia dos Estados e do Congresso. Também cometeram
gafes (mas pode chamar de fake news) do nível do nosso STF.
A juíza Elena Kagan sugeriu
que tomar a vacina reduz totalmente a propagação do vírus, uma alegação
duvidosa que é contestada pelo número quase fora de controle de novos casos em
todo o mundo. A opinião de Kagan é que “esta é a política mais correta para
acabar com tudo isso que está aí”. O juiz Stephen Breyer ecoou o sentimento de
Kagan de que a vacina — ainda em desenvolvimento — impediria a propagação do
vírus no local de trabalho. Ele disse que o argumento das empresas de que
centenas de milhares de pessoas deixariam a força de trabalho devido à
vacinação forçada, prejudicando a já em dificuldades economia dos EUA, é
discutível, porque “mais pessoas podem renunciar a seus postos quando
descobrirem que precisam trabalhar em conjunto com outros não vacinados”, disse
Breyer, antes de sugerir que um mandato de vacina eliminaria os casos de covid
nos EUA.
Até o próprio CDC (Centro de
Controle e Prevenção de Doenças) admitiu que a vacina não bloqueia a
transmissão da covid, mas isso não impediu que os juízes continuassem a alegar
que as vacinas eram eficientes para conter a propagação do vírus. O juiz Breyer
também usou repetidamente o aumento do número de casos após o surgimento da
variante Ômicron para justificar a manutenção do mandato da Osha e afirmou que
houve “750 milhões de novos casos ontem”, apesar de a população dos EUA ser
menos da metade desse número.
O presidente eleito em 2022 indicará
para o Supremo Tribunal Federal dois ministros em 2023
Os exemplos, dados e fatos não
reprimiram as falácias vindas dos juízes progressistas, como Sotomayor, que
passou a afirmar que a covid é um “risco grave” para “pessoas de todas as
idades e condições”, e que pessoas não vacinadas têm potencial destrutivo para
si mesmas e para os outros, inclusive os vacinados. Ela, junto com Breyer,
também afirmou, de forma bizarra e sem a menor responsabilidade, que “os
hospitais estão quase todos com capacidade total”, o que não é verdade, e
mentiu que mais de 100.000 crianças estão hospitalizadas com covid e em
respiradores. Faltou combinar com os dados oficiais: de acordo com o atual censo
nacional de covid pediátrico, esse número é de 3.342 crianças internadas, a
maioria de maneira incidental.
Mesmo com uma derrota
histórica ontem e com uma decisão importantíssima para a preservação das
liberdades que sustentam o Ocidente, a administração Joe Biden segue a passos
largos em várias frentes na tentativa de desvirtuar os sólidos pilares
democráticos norte-americanos. Com uma atual Suprema Corte, com maioria
conservadora, que vê na letra fria da lei o único norte possível (nessa decisão
sobre a Osha, o placar final foi de 6 a 3), democratas tentam aumentar o número
de juízes do tribunal para 11 ou até 13 membros; tentam acabar com a ferramenta
de fillibuster no Senado, manobra que daria ao partido de
Biden o poder de passar leis com maioria simples (e não os 60 de 100 senadores
necessários para votações importantes); além das inúmeras tentativas de
“federalizar” as eleições e tirar o poder e o importante filtro de segurança
colocado pelos Pais Fundadores da América.
Em 2022, a agenda nefasta da
esquerda radical, que também está presente nos Estados Unidos, vai tentar
seguir um caminho ainda mais violento; na América e no mundo. Neste ano, temos
uma eleição-chave para o nosso futuro no Brasil. O presidente eleito em 2022
indicará para o Supremo Tribunal Federal dois ministros em 2023. Que o caminho
que os norte-americanos pragmaticamente decidiram trilhar em 2016 nos ensine
que resultados eleitorais são também colhidos com o tempo.
A agenda democrata tentou
seguir um caminho muito bem pavimentado, de maneira quase perfeita, por Obama.
De acordo com a velha imprensa e os institutos de pesquisas, Hillary seria
eleita presidente em 2016 em todos os cenários. Faltou combinar com o eleitor.
Título e Texto: Ana Paula Henkel,
revista
Oeste, nº 95, 14-1-2022
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