Aparecido Raimundo de Souza
PITOF VOLTA para casa depois de seis meses viajando e surpreende a mulher no quarto da filha deles com um rapaz de porte atlético, olhos verdes, alto e loiro que, por duas vezes (se não lhe falhar a memória justo naquele momento), poderia jurar havia encontrado na fila da padaria do bairro. Diante daquela cena chocante, se esgoela, endemoniado. Ele realmente está apoplético e exaltado.
— Miriam, sua vagabunda!
— Juca... eu...
— O quê?
— Pitof, meu bem, é você?
— Não, piranha de segunda, é a vovozinha. Que pouca vergonha se passa aqui? Quem é Juca?
— Juca? Quem falou em Juca?
— Você, sua magricela despudorada.
A mulher sai debaixo do sujeito que não é o Juca, veste, às pressas a bermuda (está só de calcinha) e senta, na cama, enquanto cobre os seios com um travesseiro.
— Calma. Deixa explicar. Para tudo tem uma justificativa.
— O que estou presenciando aqui, por acaso, ainda existe algum fundamento ético?
— Posso falar?
— Tente.
— Se você permitir, chegaremos a um denominador comum. Ouça o que tenho a dizer. Esse rapaz chegou de outro estado. Bateu palmas, fui atender. Se dizia faminto. Três dias sem comer. Pediu alguma coisa para forrar o estômago.
— Estou vendo...
— Paciência, homem. Não acabei. Dá um tempo.
— Fiz um prato de comida, estalei dois ovos, mandei nossa empregada Jacinta comprar um refrigerante e ele estava indo embora quando, assim, do nada, uma forte dor nas costas me atacou...
— Indo embora?
— Exatamente. Ele então se prontificou a me aplicar uma massagem. Não vi nada demais nesse gesto. Pura retribuição. Para mostrar minha gratidão, decidi ir mais longe. Ao olhar para os pés dele, reparei que estavam sem sapatos e também com as roupas rasgadas. O que fiz?
Míriam respira numa pequena pausa, mexe nos cabelos e continua:
— Dei a ele um daqueles tênis que você deixou de lado e ocupa o lugar de outros mais novos na sapateira do banheiro. Veja por você mesmo. Está logo aí aos pés do criado-mudo. Repeti o mesmo procedimento com a calça jeans que a Jacinta, por descuido, desbotou metendo na água sanitária.
— E a camisa que está ali no chão? Ganhei da mamãe, lembra?
— Há um ano ou mais que você não pensa nela...
— Nela quem? Na mamãe?
— Não, meu querido. Na camisa...
— E daí?
— E como! Pelo visto o garanhãozinho aceitou sem pestanejar. Pois bem: agora, depois de tudo o que você acabou de me falar o que, em linhas gerais, essa palhaçada toda tem a ver com o fato desse pilantra estar aqui em trajes indecentes com a minha mulher — e pior, na cama da nossa filha? Vadia dos infernos, quem é o Juca?
— Alto lá. Primeiro ninguém aqui fazia nada de errado. Segundo, ele simplesmente me aplicava uma massagem relaxante. Terceiro, não sei de nenhum Juca.
— Por que esse cara está pelado?
— Faz parte, meu bem. Na verdade isso que você acabou de presenciar nada mais é que uma nova terapia chamada “roça pele”, ou como é conhecida na Espanha: “cuerpo à cuerpo”.
Pitof, não aceita essa explicação que considera totalmente vazia e fora de propósito:
— Sua vaca sem vergonha. Agora me convença do contrário: precisava do brinquedinho dele de fazer neném estar nesse estado desesperador?
— Estado desesperador, senhor? Eu?
Pitof não espera que o estranho continue. Parte para cima da mulher e gruda descontrolado em seu pescoço. O sujeito, até então sentado ao lado da beldade, se arma num malabarismo felino e se ajusta em pé, encostando o traseiro na penteadeira. Pelo oval do espelho, Pitof divisa a bunda magra do elemento, e, por pouco, não solta uma estrondosa gargalhada. Mentalmente avalia que deve se mostrar sério ou perderá o controle da situação.
Volta ao ataque mais estrondoso que antes:
— Não está vendo o troço desse filho de uma égua? Olhe para o tamanho do bicho. E o Juca, quem é o Juca? Outro amante seu?
— Meu amor...
— Amor os cambaus. Adúltera!
— Não sou adúltera. Não traio você...
— Não?
— Traição seria se você nos pegasse chacoalhando os ossos ao som do “Deixa a vida me levar” do Perereca Pacotinho. Ou se você topasse com esse Juca inventado dependurado nas hélices do ventilador de teto.
— Não importa onde eu peguei os dois. O que conta é que você me coloca, sabe se lá quanto tempo, um par de chifres na testa com esse Juca.
— Eu? Chifres? E logo com o Juca? De novo, Pitof, quem é esse Juca? Não estou vendo mais ninguém aqui...
— Míriam, deixa de bancar a desentendida. Assuma!
— Não tenho nada para ser assumido. Você está ficando é maluco, Pitof. Esquece o Juca...
— Não se faça de sonsa. Nem queira dar uma de santinha. A propósito: cadê a Renilda e a Rosinha?
— A Renilda mais Rosinha deram um pulo no salão da Godoya. Uma cuidando das unhas e a outra pintando os cabelos.
— Tem certeza?
— Absoluta.
Pitof coteja o rapaz com o dedo em riste:
— Escuta aqui filho de jumento com cabra fujona. Por acaso não nos encontramos umas duas vezes na padaria?
— O senhor deve estar enganado. Nunca estive no açougue.
— Quem falou em açougue, seu monte de bosta?
— Ora bolas, o senhor...
— Pegue os seus cacarecos e escafeda.
— Quem? Eu? Eu, ou ele?
— Os dois. Imediatamente. Como é que é? Você disse "você ou ele?" Ele quem, satanás?
Míriam tenta ganhar tempo acalmando a fera.
— Amor, senta aqui, vamos conversar...
— Não temos mais nada a tratar. Fora, Míriam. Você tem cinco minutos... coloca as suas bugigangas num saco de lixo e se manda com seu macho.
Volta a fuzilar o infeliz. Nesse exato momento ele procura um jeito de esconder a arma de artilharia, embora e totalmente sem graça, enrolada murcha e inoperante no meio das pernas.
— Vou perguntar pela última vez seu filho de uma lambisgoia parida em chiqueiro: tem certeza que não cruzamos os bigodes na farmácia?
— Não senhor... nem sei onde fica a quitanda do seu bairro!
— Você é o Juca, confesse. Sim ou não?
Entra, em cena, vindas da rua, Renilda e Rosinha, ambas com uma porção de sacolas de compras do supermercado.
Renilda, por alguns breves momentos fica estática, parada no umbral da porta, ao se deparar com a mãe pelada, seu pai que não via ha seis meses, em pé, brabo, encolerizado e... ao se livrar dos óculos escuros... dar de arregalos com o...
—... Arnóbio, o que você faz nu em pelo na frente dos meus pais? Mamãe, me explica o fato de estar na cama da Rosinha com meu namorado?
O pai se volta para a filha. Trocam beijos, abraços e permutam carinhos:
— Conseguiu esmaltar as unhas, filha? E você Rosinha, pintou os cabelos?
— Pai, responde a segunda filha — que igualmente se aninha e beija o pai e pede a benção. Nós estávamos no supermercado fazendo compras. Que história é essa de unhas e cabelos? Até onde sei, o salão da Godoya, hoje, o senhor se recorda?... sexta-feira, está mais lotado que ônibus de periferia em horário de rush.
— Renilda, minha filha, pelo que estou percebendo, você conhece esse sujeitinho de merda?
— Claro, que sim, papai. É o Arnóbio Manso, meu namorado. Agora, pelo amor de Deus, um de vocês três quer, por favor, me contar o que é que está acontecendo aqui?
— Peguei a sua mãe com esse vagabundo do seu namoradinho no maior amasso. Não é verdade, seu Micróbio descarado?
— Arnóbio, senhor, Arnóbio...
Míriam se intromete, tentando apaziguar o clima:
— Mentira, filha. Seu pai está deturpando os fatos...
— Arnóbio, poderia me explicar toda essa palhaçada? Você “furunfava” com a minha mãe?
Arnóbio Manso tenta justificar o impossível.
— Claro que não, Renildinha. Seu pai que eu não conhecia pirou o cabeção. Entrou aqui de repente, me confundiu com o Juca e...
— Juca? Quem é Juca, Arnóbio?
— Sei lá. Foi a sua mãe que assustada com o imprevisto da chegada de seu velho chamou pelo Juca. Para piorar, mentiu que eu bati palmas no portão, estava faminto, três dias sem comer, e, por conta, pedi alguma coisa para forrar o estômago.
— É verdade, mãe?
— Sim filha...
— Então, seu canalha, você balançava o esqueleto com minha mãe? Sim ou não?
— Não, Renildinha. Juro por Deus. Quero que a lage dessa casa caia sobre as nossas cabeças.
Míriam passa as mãos numa colcha, se enrola nela e desembarca da horizontal.
— Da nossa não. Da sua, seu cretino. Enlouqueceu?
Renilda movida por um enfurecimento mais alucinado que seu pai, parte para cima de Arnóbio desferindo nele uma esquentada seção de tapas, unhadas e bofetões, não dando, claro, à criatura nenhum tipo de defesa:
— Suma da minha frente, seu tarado. E nunca mais apareça...
— Renildinha, meu amor...
— Vá pro inferno, seu pilantra. Esqueça que eu existo.
Arnóbio consegue se safar da namorada. Feito um foguete, abre caminho entre o pai e as duas irmãs ganhando a sala, sem olhar para seu próprio rastro.
— Agora, mamãe —, voltando ao ponto de onde paramos. Quem é o Juca?
A pobre mulher, encurralada e sem escapatória, procura no vácuo uma explicação plausível que finalize com aquela desordem.
O abrupto, nessa hora infame se faz presente. Uma das portas do enorme armário se descerra num forte e estrondoso empurrão. Um jovem igualmente como veio ao mundo, sai desesperado e como um raio caído em local errado, se arremessa às cegas pela janela. A gota que faltava se apresenta e transborda o copo. Rosinha, em prantos e aos berros, acorda do marasmo e se torna possessa:
— Juca, Juca, seu desgraçado... e eu nem me dei conta do nome... Que burra... Juca, Juca, o que você fazia dentro do roupeiro da minha irmã? Volta aqui, seu peste... Juca, Juca... Juuuuuucaaaaaa...
Título e Texto. Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 11-1-2022
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