Aparecido Raimundo de Souza
Meus olhos, esbugalhados e levados
pelas tonturas da imaginação, me ajudam a viajar bem longe da terra. Loucura?
Sim, pura loucura! Nada mais que isso. Quando ela não está, a sua ausência é
sentida em toda parte, nos mínimos detalhes, notadamente dentro de meu coração
batendo em desabalados descompassos. Fico me perguntando, como uma estranha com
a qual nunca tive nenhum contato, nem troquei, sequer um olá, um bom dia, pode
fazer tanta diferença, ou melhor, como a sua deserção se redundou
esquisitamente forte e pujante quando não se afigura por perto?
Desde o dia em que a vi, pela
primeira vez, coisa de três semanas, venho me sentindo tomado por uma sensação
diferente. Algo ilógico e delirante que mexeu com a minha estrutura, e a faz
fraquejar, desde a sua base. Na verdade, invadiu a minha cabeça, a ponto de
deixar o meu espírito em franco estado de abnormidade. Descobri, para minha
desventura, que uma infinidade de pequenos lugares inacessíveis passou a habitar
o meu “eu” interior, e que somente os vejo preenchidos, quando ela chega da
rua, por volta das oito da noite e inunda meus devaneios e desconfortos com a
sua estada marcante e inimitável.
Nessa hora, engano meus propósitos,
provoco espasmos, tapeteando a insensatez diante da felicidade que ela irradia.
É a partir daí, na ânsia desinquieta da minha carne fraca, que o meu
autocontrole sossegado se desmancha num avesso contraditório e se desfaz
apressado. Ao vê-la se livrar dos sapatos de saltos (num minuto atrás eles
quebravam o tranquilo do corredor), todo meu âmago se atiça em clima de festa.
A princesa entra, atira os pisantes e as meias num canto e vai direto para o
banheiro. Acende a luz. Puxa a descarga.
Reaparece, matizada, agora, por uma claridade que não se apaga. No quarto, ao lado da King sise espaçosa, torna luminosa uma lâmpada fraca de um abajur e, então, se despe. Matreira, de regresso ao banheiro, traja apenas calcinha e sutiã. Ao vê-la assim, quase sem nada, deliciosa e exposta, calo meus afogueamentos. Abafo meus ímpetos. Ou pelo menos tento.
Não houvesse o vão do fosso
existente entre o meu apê e o dela (embora as residências se posicionem quase
uma dentro da outra), me atiraria de cabeça, num voo cego e aterrissaria no
chão de sua varanda, despedaçado, esfacelado, todavia feliz e realizado por
estar ao seu lado. Um Ícaro dos tempos modernos que não aprendeu a usar as
escadas e os elevadores.
Enquanto ela se banha, os traços de
suas expressões, em meio à água e a espuma, flutuam na minha imaginação. Ao
tempo em que passam como um filme, andejo em quimeras levado não só pela
intimidade que se estreita, igualmente, por uma orexia descomedida em devorar,
com sofreguidão, cada centímetro da sua venustidade assediado por uma pretensão
candente, e pior, atacado pelas vilanias de todos os pecados aflorando meus
nervos em frangalhos.
Enfim, quando ela se devolve ao
quarto e atravessa a minha visão, agora, nua em pelo, a toalha presa aos
cabelos, propositalmente a graciosa estanca, por breves segundos, diante da
abertura do alpendre. Eu, enfeitiçado,
enlouqueço. Torno a sair do meu raio físico. Vou, à mil, ao topo do
mundo, e volto saltitante, os nervos pandarecados, querendo escapulir por todos
os poros da epiderme. Percebo, a cada minuto, a textura do sexo desperto,
movido pela subversão da posse.
Meu Deus! Tenho plena consciência de
que essas originalidades infantis da minha parte, estão se transformando, pouco
a pouco, em anomalias. Entre um anélito e outro, me pilho tolhido por estranhas
sensações de loucura, onde afogos e suplícios cheios de constelações brilham
incandescentes diante de meu rosto espicaçado.
Não evito a tortura de me imaginar
posicionado com ela, sobre os lençóis, passeando pelos desvãos e reentrâncias
dos seus recantos e escondidinhos perfeitos, devagar e também apressado. De
repente, ela se abre todinha para mim, se acantoa num frêmito de entrega total.
Enrodilhada às pernas ao redor da minha cintura, eu a beijo com ternura e
carinho.
Divido os minutos que o relógio
transforma em comenos eternos. Estamos por fim, ofegantes, os suores embebidos
em uma quentura abrasante, tentando encontrar um ritmo constante no meio de nossos
movimentos desvairados. Nessa demência, enquanto confesso impulsos urgentes e
desatinos extravagantes, uma sensação de paz toma conta da minha vontade, e me
faz sair do real.
Apesar de toda essa magia, no final,
tudo não passa de uma versão fantasiosa criada pela neurastenia que se forma em
mim e, então, me flagro solitário, vencido, aniquilado, atrelado a um inferno
inóspito, dando murros fortes na ponta de uma faca, e, o mais agravante: me
atrapalhando freneticamente num contínuo e estrépito cinco contra um.
Deprimido, humilhado, esfacelado, os
bofes gangrenados à saltar pela boca, as vistas mortas, sem vida, sem cor,
envoltas em nuvens que se esgarçam, me petrifico, rés ao chão... meu aspecto,
no geral, é o de um desenterrado. Apesar de tudo isso, sigo em frente. Ao
oculto dos bastidores, na coxia que acessa meu palco de sonhos irrefreados,
envolto pela cortina, sutilmente eu controlo seus horários. Na retorta de
acuradas observações, analiso seus movimentos. Idas e vindas, chegadas e
saídas. Sou o Sherlock Holmes diante não de um estudo em vermelho, porém, de
uma relação literalmente apedeuta.
Por conta dessa sofomania incurável,
sei dizer com precisão britânica a que horas ela se levanta. O instante em que
toma o chuveiro matinal, bem quando se veste e se embeleza para sair para o
trabalho. O barulho das vasilhas de café, na cozinha, deixa no ar um cheiro
forte, misturado a um odor mais robusto e vigoroso: o de sua feminilidade acima
de qualquer suspeita. Estou de plantão, sempre, a visão enxuta grudada na sua
realeza seguida de um apetite enorme de envolvê-la no meu estado
doente-ebulitivo.
Dessa forma inverossímil, bem sei,
ela vem me desgastando. Aos poucos, me consumindo. Sem nada seguro para me
agarrar, procuro reescrever uma estratégia. Em paralelo, busco me recarregar
desopressando os queixumes que me envolvem na doce miragem da sua silhueta
ímpar. As convulsões perdidas, contudo, persistem seguir no vácuo, à procura de
não sei o quê. Os amigos que me visitam dizem que emagreci. É fato? Sim é real!
A minha transformação para um quadro
cadavérico cada vez mais se deprime e se acentua. Por certo o meu desleixo
comigo mesmo está patente e cada vez mais acessível. Quase não me alimento.
Estou deveras fraco. Me sinto desmantelado, fora do normal, abatido, cansado,
deprimido. Novamente vem a noite. As oito em ponto, ela restaura os meus medos,
quebra o silêncio sisudo do meu santo sepulcro, e reembolsa as minhas
exprobrações, reativa as minhas tantas rebordosas e quantas outras
descomposturas.
Uma transformação visceral emana das
espiadelas via "voyeurismo" as quais me entrego. Novamente o
espetáculo recomeça e se amiúda. Expectador de um dramalhão infindo, acalmo,
tranquilizo, pressuroso. Meu cansaço depreciativo deve se juntar a dezenas de tresloucados
(ao lado) e acima do meu andar, imersos numa platéia igualmente vastíssima.
Assim como eu, inquilinos de outras unidades sofrem do mesmo mal desse amor
doudo e mentecapto, néscio e disturbado.
Pela fenda entreaberta do náilon do
cortinado, eu sigo quieto, calado, espiando. Espreito longamente.
Demoradamente, sorvendo cada detalhe. Ela liga a tevê. Não perde a novela das
nove horas. Todo santo dia... todo santo dia é sempre uma reprise. A combinação
prodigiosa de sua presença (aliada a tantos outros movimentos, toques
imperceptíveis, celular a todo vapor, torneira se abrindo, o ruído produzido
pela porta do guarda roupas, lembra uma gata no cio, o som do micro-ondas, da
lavadora e secadora de loucas, da maquina de bater roupas).
Meu Deus do céu! Tudo concorre
desordenado para uma repetição que se renova sem cair na rotina enervante da
mesmice. É no enjoo do monótono que surge algo alcandorado permitindo que portas aldravadas se
escancarem para prazeres ainda não experimentados. Concluo, sem mais delongas,
ela, a minha vizinha espalhafatosa é,
sem dúvida alguma, o meridiano ideal que atravessa meu peito e atinge meu ponto
mais frágil. A matriz que me renova a manhã para um porvir de florestas e
corais tecidos no sobrevoo de uma Esperança longínqua que a bem da realidade,
apesar dos pesares, sei, de antemão, nunca chegará ser minha.
Título e texto. Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 24-12-2021
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