As decisões do STF não são mais ajuizadas que as fantasias dos moradores da vila de Ribeirãozinho
Augusto Nunes
Cinco anos antes que se
transformasse em Taquaritinga, Ribeirãozinho resolveu mostrar em 1902, com dois
monumentos à fantasia, que a gente do lugarejo era ainda pouca, mas muito
imaginosa, e pegava em armas sem muita conversa nem discurseiras extensas tanto
para mudar o regime em vigor no país como para defender a vila em perigo. No
primeiro episódio histórico, Ribeirãozinho aderiu a uma conspiração silenciosa
e, no dia aprazado, os chefes da insurreição proclamaram a restauração da
monarquia. Ninguém sabia direito qual dos descendentes de dom Pedro II ocuparia
o trono, nem o que seria feito dos governantes locais, muito menos se algum
revolucionário da cidade viraria barão, conde, duque ou visconde, mas todos
cumpriram exemplarmente a missão que lhes fora confiada.
Enquanto as autoridades locais
e a população festejavam na praça a queda da República ainda na primeira
infância, um grupo sobraçando carabinas prendeu o delegado, outro se apropriou
da estação da estrada de ferro inaugurada no ano anterior e um terceiro
expropriou o telégrafo para comunicar o sucesso da insurreição, perguntar se
deveriam deslocar a tropa para a capital e comemorar a chegada de informações
alvissareiras sobre o andamento da insurreição em outros lugares. Depois de
algumas horas, o primeiro telegrama informou que os monarquistas de Espírito
Santo do Pinhal se haviam sublevado. Não chegou mais nenhum. Diante da
constatação de que apenas duas cidades estavam dispostas a sepultar a
República, os líderes do movimento soltaram o delegado e voltaram para casa. A
monarquia durou um dia.
Compreensivelmente, Ribeirãozinho baixou o penacho durante alguns meses, até que a lira do delírio foi novamente acionada, no mesmo ano da graça de 1902, pela notícia perturbadora: dezenas de leprosos, como eram então chamados os futuros hansenianos, vinham dos lados de Araraquara em direção ao município, avançando pelos trilhos da estrada de ferro. De novo, os moradores não perderam tempo com reuniões deliberativas, trocas de ideia e outras providências de pouca valia. Enquanto mulheres e crianças se trancavam em casa, os homens rumaram para a estação de trem armados de carabinas, trabucos, garruchas, espingardas, um e outro facão de cortar cana simulando baionetas. De bruços na linha férrea, passaram a noite e a madrugada esperando a aparição do inimigo. Na manhã seguinte, descobriram que a marcha dos leprosos era boato. O que faria a numerosa milícia civil se fosse verdade? Negociariam uma retirada sem sangue ou repeliriam a ameaça de contágio na base do tiro, porrada e bomba? Como já não restavam sobreviventes quando nasci, não pude decifrar o enigma. Mas o ânimo beligerante da tropa improvisada recomenda que se crave a segunda opção. Aquilo tinha tudo para não acabar bem.
Não parecem mais ajuizados que aqueles sertanejos de Ribeirãozinho os sete homens e duas mulheres que compõem a bancada majoritária do Supremo Tribunal Federal. Pelo que andou dizendo em Lisboa o ministro Dias Toffoli, a monarquia foi oficiosamente ressuscitada no momento em que a Corte anexou ao amplo espaço que já dominava o vasto território do Poder Moderador. Pelas audácias fora da lei que vêm colecionando, os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso foto] são os braços do decano Gilmar Mendes, o déspota no trono. Os leprosos da hora agrupam as ramificações da grande tribo dos “negacionistas” — os que não tomaram vacina, os que enxergam também efeitos colaterais perigosos na imunização sem limites, os que dispensam o uso da máscara em conversas no restaurante, os que se recusam a enxergar um genocida no presidente Jair Bolsonaro e, fora o resto, os que se atrevem a criticar integrantes da nobreza de toga. “Mexeu com um, mexeu com todos”, avisou há pouco tempo Luiz Fux.
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil |
André
Mendonça tem tudo para tornar-se um ótimo juiz: basta fazer o contrário do que
fazem os semideuses de picadeiro
Nesta semana, a Constituição
foi novamente submetida a selvagens sessões de tortura por gente que existe
para preservar-lhe a integridade. Alexandre de Moraes, o Carcereiro Compulsivo,
mandou um recado ao procurador-geral da República, Augusto Aras: convém
concordar com os castigos impostos ao preso político Roberto Jefferson, ao
exilado político Allan dos Santos, ao deputado federal Daniel Silveira e a quem
mais lhe aprouver. E é bom parar de divergir das sucessivas provocações feitas
por Moraes ao chefe do Poder Executivo. Por ter sugerido que Jair Bolsonaro
fosse poupado de prestar depoimento à Polícia Federal, Aras foi tratado
grosseiramente pelo capitão do mato togado. O chefe do Ministério Público foi
intimado a enviar ao ministro, no prazo de 24 horas, o material que há na
procuradoria sobre o inquérito que Moraes abriu a pedido de Omar Aziz — este
sim um caso de polícia.
Barroso, depois de novas
alusões a “autoridades genocidas”, decidiu que só entrariam no país portadores
do passaporte vacinal. Alguém lhe soprou que, aplicada a brasileiros que
viajaram para o exterior sem o documento, estaria criada a versão brasileira de
um personagem que até agora existiu apenas no cinema: o exilado de aeroporto.
Ao reescrever o decreto às pressas, acabou endossando quarentenas e testes que
rejeitara quando propostos pelo presidente da República. A suprema semana
terminou com a posse do ministro André Mendonça, que tem tudo para tornar-se um
ótimo juiz: basta fazer o contrário do que fazem os semideuses de picadeiro — e
qualificar publicamente de inconstitucionais as decisões inconstitucionais dos
colegas. Talvez consiga injetar uma dose de coragem em Nunes Marques, a
decepcionante primeira indicação de Bolsonaro.
Quando isso vai acabar?,
perguntam-se milhões de brasileiros inconformados com a arrogância insolente do
que é, em sua essência, um time de funcionários públicos do grupo A muito bem
remunerados com o dinheiro dos impostos. Se não é fácil saber quando,
não parece difícil adivinhar como. Vai acabar no momento em que a
Polícia Federal se recusar a prender alguma autoridade alvejada por mais um
mandado de prisão proibido pela Constituição.
Título e Texto: Augusto
Nunes, revista
OESTE, nº 91, 17-12-2021
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