quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Triângulo esquisito

Aparecido Raimundo de Souza

O CAVALO MALCRIADO matou, depois de um conflito violento, a poder de dentadas e patadas, o pangaré Gato Preto, por ciúme da égua Babalu. A propósito, Babalu não poderia ser chamada de égua, mas de uma potranca para quadrúpede nenhum botar defeito. A história que abaixo segue, se deu na fazenda Esmeraldas, interior de Minas Gerais, colada ao haras do cantor Eduardo Costa. Parece fábula, mas não é. Tampouco literatura de “cordel cavaleiresca”. Aconteceu mesmo e saiu reportagem até no Jornal Nacional. Os moradores da região ficaram perplexos com a reação literalmente “humana” dos envolvidos. A notícia bombástica e surreal, se espalhou (em face de inusitada) além do Willian Bonner e da Renata Vasconcellos, por todos os demais jornais e tevês do País. 

Na verdade, tudo começou a criar forma quando o Manga-Larga Marchador batizado de Malcriado viu, pela primeira vez, a virginal Babalu tomando banho e se perfumando para ir para a propriedade rural de Paula Fernandes, em Santana de Pirapama, a 175 quilômetros de Belo Horizonte. Desse dia em diante, o sujeito, melhor dizendo, o garanhão, passou a dar em cima e a querer namorar a deliciosa. Essa brivana, entretanto, aficionada de um simples e pacato puxador de carroças conhecido como Gato Preto, sempre que pressentia a aproximação de esquisito dava um jeito de se distanciar das suas vistas e rejeitar as conversas do infeliz. Às vezes não havia jeito e a coisa se fazia inevitável:
— Babalu, por São Guido de Anderlecht, me dê uma chance. Posso lhe fazer feliz para o resto de sua vida.
— Que diabo de santo é esse?
— O protetor de todos os cavalos, sem distinção de credo, raça, cor...

Se abria numa pose ensaiada e seguia com a lábia:
— Como pode perceber, sou um cavalo estudado, reconhecido, caro, de raça, de personalidade. Para seu governo, falo três idiomas fluentemente. Sem mencionar que corre sangue nobre, nas minhas veias. Não me atrelo à carroças e charretes, não fico quarando no sol, só sirvo a patroazinha, a sinhá Filomena. Nem o patrão, o doutor Casanova encosta as mãos em mim. Ao contrário de Gato Preto... o que esse animal estropiado poderá oferecer à você? Uma cocheira caindo aos pedaços, capim de segunda, água balofa? Eu não: comigo você terá a melhor refeição, a melhor alfafa, água potável e fresquinha, um bom lugar para passarmos as noites vendo a lua e as estrelas e muito mais...

Babalu, contudo, se mostrava intransigente e, sobretudo, fiel:
— Preste atenção, Malcriado. Não seja malcriado. Ai, ai, ai. Gosto de você. Mas o aprecio como amigo. Visitar a sua cocheira, bater um papo, botar as fofocas em dia, falar das carroças, dos cowboys, enfim, essas coisas ligadas ao nosso cotidiano. Meu negócio é o Gato Preto. Você sabe. Estou gamada. Cai de quatro, com o focinho no coração dele, quando vi o pobrezinho. Diria mais: amor nascido a primeira relinchada que ele deu quando me pilhou passeando pelas cercanias.
Malcriado, duro na queda e pior, fulo da vida, seguia esperançoso:
— Não vou desistir. Você será minha. Nem que precise sair dando coices no vento.
— Não é assim que se conquista uma dama. Olhe. Espie ao nosso redor.

A bela tomou fôlego e prosseguiu:
— Veja, no pasto, ao entorno, quantas “garotas” bonitas à sua espera. Temos ali a Lula, a Rosa Weber, a Carmem Lúcia, essa apelidada de a “Dona dos Bois”. Ao lado dela, a Dilma, com registro de mérito, chegada recentemente do plantel do Amado Batista.
— Não me interessam. Meu negócio é você.
— Desista, Malcriado. Você não pode me obrigar.
— E você, igualmente, não pode me forçar ou a me persuadir a esquecer você.
— Olhe, está vendo aquela belezura, de pelo vermelho?
— Estou.
— O nome dela e Joice. Está gamada em você. Caidinha... nas estrebarias, Brasil à fora, é conhecida como a “Encantadora Hasselmann...”.

Malcriado deu uma olhadela meio sem graça. Desconversou:
— Não faz meu tipo. Parece até com a Marcela, a eguinha Pocotó daquele nariz em pé, o Temer.
— Ganhou vários prêmios nos rodeios de Barretos e Jaguariúna.
— Tô nem aí!

Babalu espantou, com o rabo, umas moscas chatas:
— Apareceu na televisão. Foi no Faustão, no Ratinho. O Gugu (que Deus o tenha), fez uma entrevista com ela. O Faro também não ficou atrás. Levou a beldade na sua “Hora do Faro”, fez tanta merda que só faltou lamber a bunda da dita...
— Esqueça.
— Não vou desistir de Gato Preto.
— Gato Preto, Gato Preto, Gato Preto. Não pensa em outra coisa?
— É o amor, Malcriado. Você nunca amou?
— Amei. Amei não, amo. Você!

Testemunhas contaram que nos dias seguintes Malcriado voltou à carga com várias outras tentativas não só de namorar, como de cruzar com Babalu. Essa gatinha, intransigente, arredia, senhora de si, sempre dava um ninja e deixava Malcriado falando sozinho. O fato é que o alazão se constituía num majestoso herbívoro de primeira ordem. As montarias do Zorro, do Fantasma e do próprio Dom Quixote de La Mancha, sequer chegavam às suas ferraduras. Forte, bonito, corpo atlético, Malcriado frequentava academias, nadava no rio que cortava a quinta, lutava judô, jogava capoeira, corria, solto, no pasto, por muitas horas, e apreciava uma boa alimentação. Sem contar que sabia, de cor e salteado, todas as músicas de Marília Mendonça. Até que, belo dia, o inesperado. O maldito deu de cara com seu rival, o Gato Preto, num lugar propício à sua sanha e resolveu que aquele dia seria o dia, e, aquela hora, a benigna e idônea, o momento oportuno e conveniente, talhado e consentâneo, para colocar um ponto final definitivo naquela situação vexatória.

Tudo por amor à Babalu. Sem pestanejar, sem pensar nas consequências, partiu para o abraço. Voou para cima do infeliz com a animosidade e a impavidez dos apaixonados. Gato Preto, coitado, colhia umas flores para (exatamente) presentear à sua doce amada. Sem chances de defesa, Malcriado, se fez duplamente javardo e brutamonteado. Nesse irracionalismo contundente, pegou, de jeito, o azêmola que tanto odiava. Reinava, dentro dele, um sentimento exasperado e antagônico, assim tipo obeso, indescritível e fora de propósito. A arenga, rápida e rasteira alcançou o objetivo. Gato Preto, pacato até dizer chega, cansado do trabalho e das carroças que puxara durante o dia, se arrastava exausto e aos peidos. Não aguentava, grosso modo, um gato pelo rabo.

Surpresado no imenso jardim (conforme dito acima) quando juntava flores as mais diversas para um buquê à paixão da sua vida, não percebeu a aproximação do maquiavélico e endiabrado Malcriado. Nem poderia. De fato, o equídeo apareceu do nada, surgiu mais agressivo que puta de zona depois de ter feito um programa e não recebido por ele:
— Te peguei, seu filho de uma bardota mal parida...
Ao acabar de pronunciar essas palavras, partiu cego de ódio e raiva para o pescoço de Gato Preto:
— Tome essa, e mais essa, e mais essa...
Gato Preto, sem ninguém para defendê-lo, recebeu sobre os costados uma chuva enorme de patadas e mordidas. Funcionários da fazenda, bem ainda uma dezena de peões que cuidavam das cavalariças, acorreram e se juntaram aos demais para tentarem apartar o encarniçado e revolto Malcriado.

O asinino, todavia, não se deixou ser dominado. Tampouco intimidado. Lutou de unhas e dentes, ao tempo em que gritava o nome daquela deidade glamourosa que o rejeitara. Quando finalmente conseguiram reprimir o abagualado e labrusco Malcriado, nada mais poderia ser feito. Gato Preto em quadro lamentável, desmoronou como um fardo pesado, rés-ao-chão, o corpo totalmente ensanguentado. Minutos depois, apesar das correrias do médico veterinário, a criatura evoluiu para óbito. Babalu, ao saber do trágico e funesto episódio, se depauperou em pranto sentido. As “cavalas” Dilma e Rose, as burricas Eliziane e Rosa, bem ainda as mulas Lula e Flordelis (esta última com a Bíblia entre as patas), ajudaram a conter as dores e os dissabores da pobre e donzela Babalu.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 28-12-2021

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