Contra o ativismo ou o silêncio judicial, a letra fria da lei e nossa vigília diária
Ana Paula Henkel
A eleição presidencial norte-americana de 2016, entre Donald Trump e Hillary Clinton, não foi histórica apenas pela digital da polarização política. Em jogo, na difícil escolha entre dois candidatos não muito queridos até por seus partidos, muito mais do que planos econômicos e sociais domésticos ou ações na política externa. O mundo aguardou por uma das eleições presidenciais mais importantes da história americana não só como a que poderia eleger a primeira mulher presidente dos Estados Unidos, mas também a que colocaria novos juízes na discreta e poderosa Suprema Corte Americana. Com a vitória de Donald Trump, a eleição de 2016 trouxe a possibilidade da indicação de dois ou mais juízes constitucionalistas para o tribunal — e agora pode reverter o processo mais famoso de ativismo na Suprema Corte Americana: o caso Roe versus Wade, que acabou legalizando o aborto nos Estados Unidos numa manobra ativista histórica dos juízes progressistas da época.
Para falarmos da Suprema Corte
Americana (SCOTUS – Supreme Court of The United States), é preciso voltar
um pouco na história do país. A Declaração de Independência, assim como a
Constituição americana, enxuta com suas 27 emendas, não mostra apenas a solidez
dos documentos mais importantes da nação mais próspera do mundo. Quando alguns
bravos homens das 13 colônias britânicas na América do Norte se encontraram no
Segundo Congresso Continental e decidiram se unir contra a Coroa britânica, nem
tudo foi suave como alguns historiadores proclamam. Havia 13 colônias
independentes com suas peculiaridades e identidades. Houve muito debate e
questões regionais conflitantes foram levantadas, mas mesmo assim eles
decidiram colocar as diferenças de lado e escrever seus nomes em um pergaminho que
declarava a independência da Grã-Bretanha.
Todos estavam cientes dos
tempos difíceis que os aguardavam, mas também era muito claro o que era
defendido na escrita daqueles homens: independência, liberdade,
representatividade no governo, republicanismo, um processo legal de um Estado
Democrático de Direito que não existia para os colonos. Mesmo com muitas
diferenças entre eles, aqueles homens se uniram em torno do maior ponto em
comum que os conectava: o empenho em criar uma grande nação na terra com o
maior documento governante que a humanidade já conheceu. E eles foram
bem-sucedidos.
A Constituição americana
estabeleceu um governo beneficente limitado e protegeu a sociedade civil para
nutrir a liberdade, a família e os direitos religiosos e civis. Na Declaração
de Direitos, elaborada durante anos, os pilares sagrados para a nação
norte-americana: a proteção ao indivíduo contra o governo central, a proteção à
liberdade de expressão, de imprensa e religiosa e a sagrada proteção contra a
tirania e a opressão — o direito de manter e portar armas contra os inimigos,
tanto indivíduos quanto governamentais.
Os Pais Fundadores dos Estados Unidos ainda fizeram questão de deixar explícito na Magna Carta o devido processo legal, a necessidade de mandados com base em causa provável, julgamentos rápidos, cláusulas pétreas de proteção às propriedades e tudo o que é crucialmente importante para uma sociedade civil livre. Nenhum documento na face da terra é como a Constituição americana, baseada nas declarações de independência e nos direitos naturais inalienáveis. O federalismo, implementado pelos Pais Fundadores e que concede autonomia sólida aos Estados, forma mais um filtro institucional adicionado à espetacular teia de freios e contrapesos para evitar a tirania do Executivo e o ativismo do Judiciário. Mesmo assim, a nação estabelecida no império da lei não é perfeita e também tem cicatrizes de raros ativismos judiciais. Infelizmente, o que é uma rara praga para os ianques é a regra para nós, brasileiros.
Se procurarmos no renomado
dicionário americano Webster o termo “ativismo judicial”, encontraremos a
seguinte descrição: “prática no Judiciário de proteger ou expandir direitos
individuais por meio de decisões que se afastam de precedentes estabelecidos ou
são independentes, ou opõem-se a supostas intenções constitucionais ou
legislativas”.
Ativismo judicial
O termo “ativismo” é usado
tanto na retórica política quanto na pesquisa acadêmica. No uso acadêmico,
ativismo geralmente significa apenas a disposição de um juiz para derrubar a
ação de outro ramo do governo em um precedente judicial em que juízes reforçam
as próprias opiniões sobre os requisitos constitucionais ou ações de tribunais
anteriores. Por essa ótica, o ativismo pode não ser considerado pejorativo, e
estudos sugerem que não possui uma valência política consistente.
Na retórica política, no
entanto, o ativismo judicial não é apenas um termo ruim, é uma ação nociva.
Descrever os juízes como ativistas nesse sentido é argumentar que eles decidem
casos com base em suas próprias preferências políticas e opiniões, em vez de
uma interpretação fiel da lei, abandonando assim o papel judicial imparcial e
“legislando da bancada”. As decisões podem ser rotuladas de ativistas por
derrubar uma ação legislativa ou executiva, ou por simplesmente permitir que
ela permaneça. Esse ativismo no Judiciário ocorre exatamente quando juízes se
recusam a aplicar a Constituição ou as leis de acordo com seu significado
público original, ou ignoram o precedente obrigatório e decidem os casos com
base em preferências pessoais.
Roe versus Wade
Nos Estados Unidos, um dos
casos mais conhecidos e polêmicos sobre o ativismo do Judiciário, até hoje
centro de intermináveis batalhas políticas e protestos pelo país, é a decisão
da Suprema Corte Americana no caso Roe versus Wade. Em 1969,
Norma McCorvey ficou grávida de seu terceiro filho, mas decidiu que não queria
ter o bebê. Na época, a lei do Texas, onde McCorvey residia, só permitia o
aborto em casos de estupro, incesto ou para salvar a vida da mãe. Ela chegou a
ser aconselhada por suas amigas a afirmar falsamente que havia sido estuprada,
mas não havia nenhum relatório da polícia para apoiar essa alegação. Então
McCorvey tentou fazer um aborto ilegal, mas logo descobriu que as autoridades
haviam fechado algumas clínicas.
Depois de visitar um advogado,
“Jane Roe” (nome fictício usado para proteger a identidade da requerente, Norma
McCorvey) decidiu entrar com uma ação federal contra o Distrito de Dallas,
Texas, pela impossibilidade de realizar o aborto. O caso foi parar na Suprema
Corte, e, numa decisão histórica, os magistrados esticaram malandramente a
Décima Quarta Emenda Americana, que protege, entre outros pontos, o direito à
privacidade para criar uma nova legislação que protegeria “o direito ao
aborto”. A Corte com maioria progressista entendeu que ali caberia uma
“interpretação” de que a emenda também protegia a liberdade e a privacidade de
uma mulher grávida de optar por um aborto sem a restrição do governo.
Desde 1973, ano em que a lei
entrou em vigor em todos os Estados americanos, ferindo gravemente o
federalismo estabelecido na Constituição do país, o caso tem trazido enorme
comoção nacional. Em 2016, eleitores motivados por uma ou duas vagas na Suprema
Corte, e a possibilidade de reversão do pernicioso ativismo do tribunal nos
anos 1970, acabaram se tornando uma das razões da vitória de Donald Trump. Em
uma pesquisa em 2018, um em cada cinco eleitores do candidato republicano disse
à CNN que a Suprema Corte foi uma das razões pelas quais votaram em Trump. Além
disso, mais de 56% dos eleitores que votaram no republicano afirmaram que esse
foi o “fator mais importante” em sua decisão.
Donald Trump, que saiu das
primárias de maneira surpreendente, foi visto como a chance que os eleitores
conservadores e constitucionalistas queriam: enviar um republicano à Casa
Branca para fazer uma enorme diferença na composição do tribunal por uma
geração. E ele entendeu o recado. Durante seu discurso na Convenção Nacional
Republicana, quando aceitou a nomeação para ser o candidato à Casa Branca,
Trump mencionou a Suprema Corte: “Também vamos nomear juízes para a Suprema
Corte dos Estados Unidos, juízes que defenderão nossas leis e nossa
Constituição”, disse. “Não deixem essa oportunidade escapar. Não temos mais
quatro anos. Eles vão começar a nomear juízes para a Suprema Corte. Temos uma
chance e não podemos deixar isso escapar.”
Conservadores e independentes
concordaram, e muitos votaram em Trump com a Suprema Corte em mente.
Presidentes estaduais do Partido Republicano propagaram a necessidade de apoiar
Trump, deixando explícito em suas reuniões que a Suprema Corte desempenhava um
papel significativo em sua escolha. O presidente eleito daquele ano
provavelmente indicaria dois ou mais juízes e apenas um candidato, Donald
Trump, escolheria conservadores sólidos para ocupar as cadeiras. Em julho de
2016, o comentarista conservador Hugh Hewitt escreveu em um artigo, intitulado
“É a Suprema Corte, estúpido”, que sua decisão de votar em Trump havia sido
baseada em grande parte nas repercussões catastróficas de uma Presidência de
Hillary Clinton no tribunal mais importante do país. A um mês das eleições, em
outubro de 2016, Manny Klausner, libertário e cofundador da Reason Foundation,
disse que votaria no candidato do Partido Libertário, Gary Johnson, mas
acrescentou que, para outros milhões de libertários, “a probabilidade de o
próximo presidente nomear vários juízes para a Suprema Corte nos próximos
quatro anos era uma razão suficiente para que os eleitores em Estados que
poderiam decidir as eleições (swing States) votassem em Trump em vez de
Johnson”.
Se
há algo que une democratas e republicanos nos Estados Unidos é o respeito quase
religioso à Constituição
Bem, o pragmatismo do voto
conservador em 2016 em Donald Trump, mesmo com todas as críticas às suas
aparições públicas, parece começar a servir a seu propósito. Trump nomeou três
juízes para a Corte mais importante dos EUA, e, na semana passada, o tribunal
ouviu os argumentos orais no processo Dobbs versus Jackson
Women’s Health Organization — um caso sobre aborto que visita a
constitucionalidade da Lei da Idade Gestacional do Mississippi, que, com
algumas exceções, proíbe o aborto após 15 semanas. Enquanto concedia o certiorari (ouvirão
o caso), a Suprema Corte limitou a questão do recurso a “se todas as proibições
de pré-viabilidade de abortos eletivos são inconstitucionais”, e os argumentos
se concentraram mais amplamente em se o Tribunal Superior deveria revisitar e
anular Roe versus Wade. A porta para corrigir o ativismo de
1973 foi finalmente aberta, e com uma Corte com maioria conservadora (6-3), o
voto calculado de católicos e evangélicos no malcriado do Twitter pode
finalmente pagar dividendos.
Supremo Tribunal Federal
Já no Brasil, na última
semana, finalmente testemunhamos a sabatina de mais um nome indicado ao Supremo
Tribunal Federal pelo presidente Jair Bolsonaro. André Mendonça teve seu nome
aprovado no Senado para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria do ministro
Marco Aurélio Mello, indicado por Fernando Collor de Mello e que permaneceu 31
anos na Corte. Diante de tantos desmandos à nossa Constituição por parte do
tribunal, a sabatina de André Mendonça foi vista por milhões de brasileiros que
estavam atentos à TV como uma final de campeonato de futebol. Para milhões que
foram às ruas no 7 de setembro para pedir um basta no ativismo político da
Corte, há esperança e dúvidas se, de fato, teremos alguém no STF que protegerá
nossas leis e nosso devido processo legal.
Em seu discurso, André
Mendonça assumiu publicamente compromissos importantes e disse “que se
compromete com a democracia e o Estado Democrático de Direito conforme expresso
desde o preâmbulo da Constituição Federal”. Ele também declarou que “o
Judiciário é o garantidor da legítima atuação dos demais Poderes — sem
ativismos nem interferências indevidas”. O indicado de Jair Bolsonaro também
afirmou que “cabe ao Supremo Tribunal Federal não legislar sem executar as
políticas públicas com base na lei”. Assim como na Suprema Corte Americana em
1974, o Supremo Tribunal Federal no Brasil não esconde seu desejo quase
incontrolável de legislar sobre o aborto. Gostaria de poder acreditar sem
pestanejar nas declarações do senhor André Mendonça, mas só o tempo e suas
decisões mostrarão o legado que será escolhido por ele — e colhido por todos
nós.
Se há algo que une democratas
e republicanos nos Estados Unidos é o respeito quase religioso à Constituição e
aos limites dos Poderes. A transformação do STF nos últimos anos é preocupante.
Quanto mais interpretação livre do texto constitucional pela última instância,
quanto mais liberdade para atuar fora de sua esfera e quanto maior o silêncio
da mais alta Corte do país quando leis são criadas por prefeitos e
governadores, cerceando nossos direitos fundamentais, mais risco corremos.
Contra o ativismo ou o silêncio judicial, a letra fria da lei e nossa vigília
diária. É a última garantia para as nossas liberdades.
Antonin Scalia, um dos mais
respeitados juízes da Suprema Corte Americana, falecido em 2016, era categórico
quanto ao papel dos tribunais para a manutenção de democracias saudáveis e dos
pilares do império da lei e da ordem: “Enquanto juízes mexerem na Constituição
para ‘fazer o que as pessoas querem’ em vez do que o documento realmente
comanda, os políticos que escolherem e confirmarem os novos juízes, naturalmente
quererão apenas aqueles que concordam com eles politicamente. A Constituição
não é um documento vivo, é um documento legal”, dizia Scalia — certamente um
norte na América até hoje quando o assunto são as prerrogativas e os limites de
cada Poder.
Em suas declarações a respeito
do novo ministro do STF, o presidente Jair Bolsonaro disse que um dos pontos
para a indicação de André Mendonça era o fato de que ele era “terrivelmente
evangélico”. Assim como Donald Trump em 2016, o presidente que sairá da eleição
presidencial de 2022 no Brasil terá a chance de indicar dois ministros para a
Corte Suprema em 2023. Indicações que podem afetar toda uma geração. O Brasil é
um país que abraça e respeita todas as religiões, mas tenho certeza de que reza
para que essas indicações sejam, antes de qualquer coisa, terrivelmente fiéis
às nossas leis.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, revista
Oeste, nº 90, 10-12-2021
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