terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Quando a vida se resume em ligações de um celular

Aparecido Raimundo de Souza 

ERAM, AO TODO, onze irmãos, dos quais Paulo só conheceu oito. Com o passar dos anos, foram morrendo, até que restou somente a Maria José, ou carinhosamente, como ele a chamava, de “Zezé”. Zezé não descuidava. Ligava todos os dias. Quando ela demorava em dar sinais de vida, ele se antecipava. Pegava o telefone, acionava à câmera, e, assim que lhe aparecia enfocada o rosto consanguíneo na pequena tela do aparelho, trocavam um bom dia, ou uma boa tarde. 

Ambos, a bem da verdade, sequiosos por uma boa conversa, imploravam, ávidos uma gota que fosse de carinho e atenção. Por assim, se completavam e se tornavam uma só alma irmanada numa angústia que beirava às malhas da aflição. Nessas horas, aproveitavam para flertarem lembranças adormecidas, muitas das vezes com os olhares em lágrimas e palavras aquecidas de ternura e afeto. Em outras, se mostravam visivelmente contidos pela imensidão de estarem separados por um espaço invisível e igualmente invencível. 

Falavam também de trivialidades, de coisas fúteis que pretendiam realizar vindouramente. Trocavam rascunhos de mimos que reviviam os tempos áureos da mocidade, evocavam a vida na fazenda dos idos da inocência, quando ainda pai e mãe faziam parte do plano terreno. Fato é que nunca passavam um dia sem comunicação visual. Em brincadeiras, Zezé dizia que iria embora primeiro. Que ele ficaria para semente, portanto, “que aprendesse a se virar sozinho no mundo, quando ela não estivesse mais contígua, para responder aos seus chamados via WhatsApp”. 

Ironia ou não, Zezé partiu na frente, vítima de um súbito AVC. Coincidentemente viajou num domingo de manhã límpida, com um céu azul de sol bonito por todo o infinito espalhado. Se viu, do nada, expulsa da sua vidinha simples e pacata, levando na bolsa uma passagem sem volta, justo no dia do aniversário dele. Paulo desde então, ficou sozinho, trancado no seu espaço vazio, preso, acorrentado não só à operação que deu errada, em face de um médico irresponsável, como agarrado a um pau de arrimo, que passou a ser seu companheiro fiel de todas as horas. 

De repente, num piscar de olhos, Paulo se descobriu estranho e incapaz dentro da sua pequenez. Sentimentos como esses, de não pertencer à lugar nenhum, exatamente por ter deixado escapar alguma coisa boa que o mantinha vivo e alegre, sem ter outra alternativa à altura, para superar o vazio inesperado, fez com que se sentisse rejeitado, abandonado esquecido esmagado, enroscado numa percepção completamente distorcida. Embora não professasse nenhuma religião conhecida, tinha mania de ler a Bíblia. 

Esse empenho salvador o ajudava a acreditar piamente que um dia, se desapegaria da deserção da irmã que resolvera se ausentar tão prematuramente. Cedo, após o desjejum, por volta das nove, se levantava, se sentava no quintal debaixo de um abacateiro, ou na porta na sala, que acessava à varanda. A tarde, dependendo do calor, repetia o gesto, se reclusava na cozinha, ladeado por uma garrafa de refrigerante. Lia, de novo, por uma hora, uma hora e meia, o Livro Sagrado e, no final desse tempo, ligava para a irmã distante. 

Fazia isso maquinalmente. Sem pensar. Sem se dar conta. Virou mania essa rotina destrambelhada. Belo, dia, havia acabado de ler alguns versículos, ato contínuo, passou a mão no celular e discou para a irmã. O telefone de Zezé tocou, tocou, até que a ligação caiu. Tentou a câmera, mas a adesão não prosperou. Foi quando Paulo, num momento de nitidez da mente, se deu conta que havia esfacelado seu senso de limite. Parecia um endoidecido, a procura de uma sombra acolhedora, como um sedento suando em bicas em meio de um deserto escaldante. 

Voltou à realidade. Regressou mal, abatido, em pandarecos. Lembrou que Zezé não atenderia mais. Morrera fazia tempo. Esse sem pé nem cabeça de ligar sem reembolso da outra parte, de ficar à deriva, sem a abordagem da resposta, se repetiu por muitas e inúmeras vezes. Como um doido, sem se aperceber, instintivamente grudava no celular e buscava o número da falecida. Nada de resposta. Só a taciturnidade da quietude. De contrapeso, um abrandamento com respingos de petrificação despertando uma espécie asquerosa de demônio invocando o contraditório. 

E novamente aquele estertor enorme, doido, ingrato, perverso, desumano, inexorável e sufocante, vinha à tona e ele sentia bailando na atmosfera uma espécie de medo mórbido, uma sensação de presença-ausente tomando conta de tudo, inundando com formas obscuras o seu coração fulminado e carcomido pela angústia lancinante e empedernida. O tempo, para Paulo, até hoje, no agora dos sessenta anos, continua como partículas imponderáveis desprendidas de um ontem infando e tenebroso. 

Um escuro negro demais povoado por fantasmas que não dão trégua, amedronta. O degredo não para, o exílio não se abranda num armistício. O arredio não apazígua, tampouco o inabitado pensa em retornar com esperanças de paz. Tudo, como num carrossel gigantesco, insiste em girar rápido demais e mostrar, nesse trânsito desconexo, a cada instante, o abismo medonho que ficou palpável e intransponível. O oco folozado e abissal, cada vez mais profundo e majestoso, se engrandece diante de seus dias que se tornaram frios e áridos, gélidos e sem cor, como a cara pálida e o sorriso prescrutante da morte à espreita. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 15-2-2022

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