terça-feira, 19 de agosto de 2014

O que nos diz Ferguson sobre tensões raciais na América

 
José Manuel Fernandes
Acontece na América. Com alguma regularidade. Um incidente acende paixões que, num ápice, se transformam em motins e em violência. Sempre com uma forte componente racial. Agora foi em Ferguson, povoação dos arredores de St. Louis, no Missouri. Um polícia matou, tudo indica que com seis tiros, um jovem negro, Michael Brown, que não estava armado. Foi a 9 de Agosto. E desde essa altura que a zona não tem descanso. A última noite foi mais tranquila, depois de o governador do Estado, o democrata Ray Nixon, ter chamado a Guarda Nacional.

Não vou recapitular aqui os acontecimentos dos últimos dias, mas quem desejar ficar com uma ideia mais precisa do que se passou pode ver esta excelente cronologia do Washington Post. O New York Times também tem uma boa síntese, na fórmula de perguntas e respostas, sobre o que aconteceu em Ferguson. A mesma fórmula é utilizada pelo site Vox, numa peça sobre as “11 coisas que necessita de saber sobre Ferguson”.

Depois dessas breves introduções, só para recapitular o essencial dos factos, passemos a alguns textos que nos permitem pensar de forma mais informada sobre o que se passou e sobre o porquê de tanta violência.

Comecemos por uma ideia feita: a de que este tipo de confrontos é fruto de uma América ainda muito segregada do ponto de vista racial. É uma ideia que só parcialmente corresponde à realidade e que, sobretudo, não retrata bem a realidade de Ferguson, uma zona habitacional da classe média onde dois terços da população é negra, mas onde os bairros são mistos. É isso que nos mostra, de forma muito gráfica e muito clara, esta análise do Washington Post. Como aí se escreve, o problema de Ferguson não é a segregação racial. Ferguson até constitui uma relativa excepção quando o comparamos com outros bairros da região:

While most of St. Louis County’s residents live in municipalities that are either homogeneous or internally segregated or both, Ferguson and its North County neighbors stand out for their relative heterogeneity and internal desegregation. Moreover, the income gap between blacks and whites is smaller in these municipalities than elsewhere.


O problema que parece estar na origem dos confrontos é a forma diferenciada como a polícia trata brancos e negros nessa zona. Uma polícia que está muito longe de traduzir, na sua composição racial, a composição racial dos bairros que patrulha. Não é um problema de Ferguson, é um problema de muitas outras cidades dos Estados Unidos. Recorro de novo ao Washington Post e a uma representação gráfica onde se pode ver, para mais de cem cidades americanas, a relação entre a composição racial das suas forças policiais e a existente na população residente. Conclusão? “The vast majority of cities have a police presence that is a lot whiter than their population”.

Se estes são alguns dados de base, a verdade é que num país onde a discussão política está extremamente polarizada – onde até já se vendem aplicações para telemóveis para saber que produtos comprar em função de as empresas financiarem os democratas ou os republicanos - os acontecimentos de Ferguson suscitaram logo excessos de ambos os lados. Como se escreve no Wall Street Journal, “the temptation on the MSNBC left is to excuse the criminals armed with bricks and firebombs and burning down convenience stores and make Ferguson a national allegory of police brutality and racism. The response on the talk-radio right is often law-and-order posturing that overlooks the troubling conversion of a suburb in the Midwest into a quasi-war zone.” Em contrapartida, o dever dos líderes políticos deverá ser “de-escalate the confrontation”.

Seja lá como for, é bom discutir as raízes da violência em Ferguson, e sobre este tema a The Atlantic oferece-nos um bom resumo. Reparem nesta história, por exemplo:

One particularly appalling incident came in 2009, when Ferguson police picked up a 52-year-old named Henry Davis, as recently 
reported by The Daily Beast. He was arrested by mistake. The warrant had been for another man with the same last name. But rather than police setting him free, Davis was charged with “property damage” because he had bled on an officer’s uniform.

Tudo indica que a forma como a polícia interveio para conter os confrontos quase sempre acabou por incendiar ainda mais os ânimos. Um dos pontos que tem suscitado mais controvérsia é a sua utilização de armamento militar, o que já levou o Presidente Obama a pronunciar-se. Eis alguns textos onde se discute o que pode fazer a polícia e o que devem fazer as autoridades:
· Na New Republic recordam-se outros motins anteriores, nomeadamente os de Cincinnati em 2001, para sugerir que “a solução existe”:
·  Merlin Chowkwanyun, da Universidade de Wisconsin-Madison, é frontal no Washington Post: We keep pledging to study the cause of riots like Ferguson’s. And we keep ignoring the lessons.
· Quase provocador, Sunil Dutta, professor de segurança interna na Universidade Técnica do Colorado e antigo membro da polícia da Los Angeles Police, argumenta: I’m a cop. If you don’t want toget hurt, don’t challenge me.
· O Washington Post recorda que nem tudo são manifestantes pacíficos: Ferguson protesters: The peaceful, the elders, the looters and the ‘militants’.

Seja lá como for, a verdade é que nas últimas décadas a criminalidade tem diminuído em muitas cidades americanas. Isso é muito importante para as comunidades negras, pois nelas o crime começa por afectar sobretudo os membros da própria comunidade. É uma história que o Wall Street Journal recorda, numa conversa com Bill Bratton, o chefe da polícia de Nova Iorque.

Para ele, "the biggest mistake," was too much "focus on response to crime and not enough focus on trying to prevent it." A sua mensagem é a de George Kelling, o criminologista que ajudou a mudar as políticas públicas, iniciando um processo que permite que os níveis de criminalidade estejam hoje em níveis historicamente baixos na Big Apple:

“Disorder and crime are usually inextricably linked, in a kind of developmental sequence," Mr. Kelling observed in a seminal 1982 Atlantic article, co-written with the late James Q. Wilson. The mere appearance of disorder — graffiti, broken windows, an abandoned car, drug dealers or prostitutes openly plying their trades — creates a sense that nobody's looking, nobody cares, nobody is in charge. Bad guys respond to these environmental cues by acting badly. Good people stay off the street, bolt their doors, move out.

E por hoje é tudo, amanhã há mais, sobre um novo tema.
Boas leituras. 
Título, Imagem e Texto: José Manuel Fernandes, Observador, 19-08-2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-