quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Moral e Religião em Bergson

Valdemar Habitzreuter 

Resumo: A filosofia de Henri Bergson nos mostra que podemos encarar a vida de duas maneiras. Uma através da capacidade intelectiva donde desponta a ciência e a tecnologia que nos dá o prazer do bem-estar material, e outra pela faculdade intuitiva que nos mostra um modo de ser que nos insere na alegria da vida. Bergson nos leva ao entendimento de que a vida é uma verdadeira fonte de alegria quando nos deixamos guiar pelo conhecimento intuitivo que nos proporciona o desfrute de uma realidade que não captamos pelo entendimento intelectual. A apreensão dessa realidade é uma experiência da alma, do eu profundo. Os místicos, os detentores por excelência do conhecimento intuitivo, denominam essa realidade de realidade divina.

INTRODUÇÃO

Proponho-me, neste artigo, a examinar um aspecto da filosofia de Bergson concernente a sua proposta de direcionar o ser humano para uma vivência supra-intelectual.

A filosofia de Bergson situa-se na corrente espiritualista francesa e caracteriza-se por uma filosofia evolucionista no sentido de que há um impulso de vida – seu famoso élan vital -, que é movimento criador desenrolando-se num tempo real. A esse tempo real ele dá o nome de duração (durée)[1] como movimento dinâmico de ininterrupta criação do novo imprevisível e irrepetível. No ser humano, esse movimento criador significa deixar-se transportar pelo élan vital numa constante liberdade de evolução espiritual, atingindo a Supra Consciência donde se origina. Percebemos nessa duração de movimento dinâmico o eu real que se cria continuamente a si mesmo. No dizer de Bergson, “isto que ultrapassa o corpo por todos os lados e que cria atos ao se criar continuamente a si mesmo, é o eu, é a alma, é o espírito - o espírito sendo precisamente uma força que pode tirar de si mesma mais do que contém, devolver mais do que recebe, dar mais do que possui”[2]
           
No ser humano subjaz, pois, esse eu profundo, ou alma, que se caracteriza pela liberdade de ação num dinamismo de autocriacão. Diferentemente do animal irracional que vive à mercê do instinto imposto pela natureza para sua subsistência e organização repetitiva, o homem tem sua tônica na liberdade de ação e criação. Sua trajetória na vida é um avançar constante para o imprevisível e irrepetível, é querer ultrapassar-se qualitativamente.

MORAL FECHADA E RELIGIÃO ESTÁTICA

Concomitantemente ao eu profundo há o eu superficial da inteligência que está às voltas com a angústia e o medo, pois está desconcertado pelo que a vida lhe pode reservar: tragédias, doenças, velhice, morte... Este eu superficial fomenta estratégias para sobreviver, e percebe na vida associativa (em grupo) um elemento de sobrevida. Torna-se, assim, um ser sociável que lhe confere maior força, apoio e equilíbrio para o enfrentamento das vicissitudes. Mesmo assim, a vida em sociedade lhe é penosa por causa da pressão da inteligência em querer para si a totalidade do bem-estar (egoísmo), e o ‘outro’ ser um empecilho, uma ameaça frente ao desfrute dos bens que a vida lhe fornece. Daí a necessidade de leis e regulamentos para se viver em sociedade. Nos animais - no exemplo das formigas e abelhas -, a vida em sociedade é determinada pelo instinto em que cada indivíduo age e vive para o sucesso do todo da coletividade. Todos trabalham e se sacrificam pela sobrevivência do grupo para garantir a sua própria. Há aí uma obrigação instintiva pelo sucesso da coletividade sem opção para uma escolha individual. Chama-se a isso uma sociedade fechada onde não há outra opção que laborar de um modo autômato para a subsistência coletiva. Fechada, porque há uma circularidade de criação, não há inovação, tudo é repetitivo. Os homens ao se imporem inteligentemente deveres e obrigações também constituem uma sociedade fechada como condição para garantirem sua subsistência e para não autodestruírem-se; habituam-se aos deveres e obrigações e assim exercem uma rotina de hábitos sem se abrirem ao novo. Neste caso da sociedade fechada dos homens pratica-se uma moral de pressão que simplesmente visa à conservação da sociedade. Ocorre nessa sociedade fechada também um movimento circular em que as obrigações, quando cumpridas, fornecem um estado de bem-estar individual e social sem, no entanto, atingir um estado de ‘emoção’[3] de alegria pela vida, mas um simples prazer do funcionamento normal da vida. Vê-se que a inteligência, ao impor-se uma moral de pressão ou moral fechada, não atinge o ponto culminante em que o homem possa estar no pleno gozo da vida. Sente que algo está lhe faltando.

Ao lado dessa moral fechada sobrevem também uma religião estática; isto é, pratica-se uma religião dogmática, elaborada pela inteligência humana. É certo que, através da inteligência, o ser humano libertou-se das amarras do automatismo de uma espécie, mas, ao mesmo tempo, sobreveio-lhe a angústia da incerteza da vida, pois a inteligência tornou-se um elemento especulativo e fator de preocupação quanto ao seu destino. É então que a inteligência utiliza-se da ‘função fabuladora’ para enfrentar os medos e aflições de seu mundo interior. A religião é obra da função fabuladora da inteligência. Através dessa função fabuladora, o ser humano cria o fenômeno da religião que seria sua salvaguarda perante os fenômenos incognoscíveis da vida que lhe incutem temor e perigo; concretiza representações imaginativas de seres superiores que se tornam uma necessidade vital e um instrumento para enfrentar as angústias de sua alma. Concebe então uma religião com dogmas e regras convencionais fixas no culto aos deuses que ele projeta. É uma religião de conveniência que tem sua utilidade para garantir ao ser humano a proteção desses deuses, na lida com o mundo. Não há uma dinâmica evolutiva espontânea da alma (alegria), mas dependência às convenções impostas pela inteligência humana.

MORAL ABERTA E RELIGIÃO DINÂMICA (misticismo)

Mas, distinta dessa moral de pressão e dessa religião estática, encontramos personalidades que se colocam fora da sociedade fechada e praticam uma moral de aspiração onde não há o sentido da circularidade de hábitos para a conservação da sociedade. Estes aspiram ao novo e colocam-se numa sociedade aberta. Há aí um sentimento de progresso, em que a emoção aflora como entusiasmo da marcha para a frente. (...) Progresso e marcha para a frente confundem-se aqui com o próprio entusiasmo. Há neles um sentimento de libertação[4]. Estas personalidades têm a plena compreensão da vida que o conhecimento intuitivo lhes proporciona, deixam-se guiar pelo eu real, profundo. E surge daí uma religião dinâmica, pois o ser humano não se realiza a contento pela observância da religião estática que é pura anuência aos dogmas fabricados pela inteligência. A característica da intuição na filosofia de Bergson é experimentar a interioridade das coisas, e quando se trata de experienciar o interior do ser divino, esta experiência se dá conta de uma dinamicidade: Deus é movimento, dinamismo, ação, criação.

Deus não é mais o motor imóvel, alheio à criação, mas é o motor móvel de pura motricidade criadora. O ser humano intuitivo ultrapassa então a inteligência fabuladora e fabricadora de meios para relacionar-se com Deus, e estabelece doravante um contato e uma união imediatos com ele, insere-se na sua dinamicidade. O homem já não mais pratica uma religião estática, mas pratica agora uma religião dinâmica; ultrapassa o relacionamento inteligente com Deus para viver a dinamicidade de Deus. Esta é a religião dinâmica à qual Bergson alude, praticada pelos místicos.  Resulta de um retorno na direção donde procede o élan vital, e nasce da pressentida captação do inacessível a que a vida aspira.

A religião dinâmica que Bergson concebe é a história de Deus no seu fluxo criador, inserindo o ser humano nessa história e privando-o da angústia da vida. O homem místico pratica essa religião e vive otimista e cheio de esperanças, já que é perpassado pela vida divina. 

A experiência mística é o empirismo superior de Bergson. Bergson se coloca a questão se há uma experiência que nos elucide sobre a existência e natureza de Deus. Numa carta endereçada ao seu discípulo Le Roy, ele diz: “A existência de Deus é dada numa intuição. A inteligência propriamente dita, a inteligência pura, iria parar no ateísmo. ... porque imagino a inteligência como uma faculdade voltada essencialmente para a matéria, articulada como a matéria”[5].        

Um objeto existente é um objeto que é percebido ou que pode ser percebido. É, portanto, dado numa experiência real ou possível. Bergson está consciente da dificuldade de provar que possa se dar tal experiência para uma experiência de Deus. Mas ele sugere que a reflexão sobre o misticismo pode servir como confirmação de uma posição já alcançada, ou seja o misticismo é essa experiência. Seu argumento é: se a verdade da evolução criadora foi estabelecida, e se podemos visualizar a possibilidade de uma experiência intuitiva do princípio de toda vida, a reflexão sobre os dados do misticismo pode provavelmente ajudar na tese de que há uma atividade criadora transcendente. Para Bergson, o misticismo, lança uma luz para a compreensão da natureza divina. “Deus é amor, e ele é objeto de amor”: isto é toda contribuição do misticismo. Deus é amor e objeto de amor, é tudo o que os místicos sabem dizer de Deus, porque têm essa experiência. As dificuldades lógicas da existência de Deus, Bergson não as procura resolver numa postura como a de muitos filósofos.  Sua posição é que, enquanto a reflexão sobre a evolução pode nos trazer a convicção de que há uma imanente energia criadora (élan vital) que opera no mundo, a reflexão sobre o misticismo dá mais luz sobre a natureza desse princípio de vida, revelando-o como amor.

A questão da existência e da natureza de Deus só pode ser abordada quando há uma abertura para um acesso direto, através de uma percepção direta, fornecida pela imanência, mesmo que parcial, da união mística. Porque Deus não é um Deus fora de nós, ele está no meio nós. Sua essência é poder entrar em contato com a alma que se eleva até ele. A experiência mística tem justamente o efeito de manifestar ao mundo as virtudes dessa união. Não sob sua forma descritiva, mas na ação efetiva, poderosa e amante. O que conta na experiência mística não é o que a linguagem nos proporciona, mas o que a ação proporciona. Esta experiência mística é possível, pois ela acontece, e os místicos o atestam, pois foram os grandes animadores da humanidade. Além do mais, reina um consenso entre eles pela coerência de suas ações, mesmo que esse consenso não esteja expresso em suas teologias escritas.

Em suma, este Deus imediatamente percebido traz consigo a prova de sua existência. Percebê-lo é dizer que ele existe. O misticismo nos fornece “o meio de abordar de certa maneira, experimentalmente, o problema da existência e da natureza de Deus”[6]. Ele é  acessível à experiência mística.

O misticismo é, por assim dizer o ápice, da filosofia evolutiva de Bergson, em que o impulso vital é a mola propulsora duma volição evolutiva que é um esforço misterioso, rompendo os obstáculos à manifestação da vida. Esse esforço é de Deus, se não for o próprio Deus. Diz ele:

Aos nossos olhos, o desabrochar do misticismo é uma tomada de contato, e por conseguinte uma coincidência parcial, com o esforço criador que a vida manifesta. Este esforço é de Deus, se não é Deus mesmo. O grande místico seria uma individualidade que transporia os limites designados à espécie por sua materialidade, que continuaria e prolongaria assim a ação divina[7].

Este esforço criador é algo indefinível, mas é um imenso impulso de amor que perpassa a alma mística impulsionando-a cada vez mais alto para o ato supremo de amor por excelência que é Deus. Amor, assim, é uma superabundância de vida e o místico vive-a intensamente. Essa vivência traduz-se em ação, porque o amor não se realiza passivamente, mas em movimento contínuo e transformador. O místico faz-se canal desse poderoso impulso de amor que flui em benefício de todos os homens.

Digamos que é de agora em diante, para a alma uma superabundância de vida. É um impulso imenso. É um empurrão irresistível que a arremessa às mais vastas iniciativas. Uma exaltação calma de todas as suas faculdades faz com que ela veja grande, e por mais frágil que seja, ela realiza poderosamente[8].


O que proporciona essa vivência mística, essa realidade que é o amor de Deus, e que arremessa as almas às mais vastas iniciativas na ânsia de coincidir com esse amor, é “a intuição mística que seria uma participação na essência divina”[9].

O misticismo, pois, é a própria vivência da intuição, ou seja, da realidade intuída que é Deus, objeto de amor; e por isso, diz Bergson:

O filósofo teria imediatamente de definir essa natureza (de Deus) se quisesse exprimir o misticismo em fórmula. Deus é amor, e é objeto de amor: tudo o que o misticismo tem a dizer e a fazer consiste nisso. Desse duplo amor o místico jamais acabará de falar. Sua descrição é interminável porque a coisa a descrever é inexprimível. Mas o que ela diz claramente é que o amor divino não é alguma coisa de Deus: é o próprio Deus[10] .

Essa união mística com Deus, que é vivência de amor, não se resume simplesmente no êxtase ou em contemplar a realidade de Deus como se fosse o término de uma viagem ou uma merecida aposentadoria in regno Dei, pelo esforço despendido. O misticismo completo, segundo Bergson, não se detém nesse estágio. Ele é muito mais que isso: ele é ação. Ação no sentido de que Deus não seria apenas um objeto a ser contemplado e extasiar-se nele, mas no sentido de participar de sua realidade dinâmica que é vida incessante, ação e liberdade criadoras.

A mística, com essa característica de desenvolver-se no agir do amor divino, deixa Bergson à vontade para declarar que “o misticismo completo é, com efeito, o dos grandes místicos cristãos”[11]. Diferentemente do misticismo oriental, o misticismo cristão não procura evadir-se da vida para escapar dos sofrimentos advindos pelo agir no mundo. Não renuncia à vida de ação que é o componente para “atingir o ponto em que a vontade humana se confunde com a vontade divina”[12].

A INCOMPLETUDE DO MISTICISMO ORIENTAL

O místico oriental, segundo Bergson, não soube prosseguir viagem, contentando-se em estacionar extasiado no cume da montanha e contemplar a terra prometida sem vontade de nela penetrar e dar asas ao impulso místico de agir no mundo com amor e contagiar a tudo e a todos para a marcha evolutiva. “A alma do grande místico não se detém no êxtase como no final de uma viagem. É isso sim, o repouso, se quisermos, mas como numa parada em que a máquina ficasse sob pressão, com o movimento continuando no mesmo lugar em abalo, até novo salto à frente”[13].

No misticismo oriental executa-se uma mística de chegada que estaciona na realidade estática do Ser e contenta-se com o êxtase e contemplação, não desejando ultrapassar esse estágio que implicaria agir no mundo e divulgar o amor desse Ser. É diferente no misticismo cristão em que “a alma mística, ao ultrapassar o êxtase ou pura contemplação, quer ser um instrumento em que Deus age por ela e nela: a união é total, e por conseguinte, definitiva”[14]. E Bergson exemplifica bem essa mística de êxtase, ou pura contemplação do misticismo oriental, ao referir-se a Plotino:

No que se refere a Plotino, foi-lhe dado ver a Terra Prometida, mas não o tocar-lhe o solo. Ele foi até ao êxtase, estado de alma em que se sente ou se crê sentir-se na presença de Deus, estando-se iluminado por sua luz; ele não ultrapassou este último estágio para atingir o ponto em que a vontade humana se confunde com a vontade divina, prejudicada que fica a contemplação ao transformar-se em ação[15].

Bergson viu nos grandes místicos cristãos a realização desse impulso vital criador que é ação e não pausa. Neste sentido, ele diz: “a direção do amor místico é a mesma direção do impulso de vida; ela é esse próprio impulso, comunicado integralmente a homens privilegiados que queiram depois imprimi-lo à humanidade inteira[16].

O amor místico “coincidindo com o amor de Deus por sua obra, amor que tudo fez, ele revelaria, a quem soubesse interrogar, o segredo da criação”[17]. Esse impulso de amor do qual o místico é detentor faz dele um criador, pois inserido no amor divino, sua tendência é agir para inserir toda humanidade na dinamicidade divina. “Na realidade, para os grandes místicos trata-se de transformar radicalmente a humanidade, começando por dar o exemplo. O objetivo só seria atingido se houvesse finalmente o que deveria ter existido teoricamente na origem: uma humanidade divina”[18].

O ABSOLUTO MÍSTICO

Dessa maneira, Bergson, ao entender que o misticismo completo é o misticismo que se encontra no cristianismo, chega ao Cristo do Evangelho. E aqui ele fala como filósofo, não colocando o problema teológico se Cristo é a encarnação de Deus. Sua filosofia evolucionista desembocou naturalmente num Homem-Deus. Diz ele que “de fato na origem do cristianismo há o Cristo. Do ponto de vista em que nos colocamos, e de onde aparece a divindade de todos os homens, pouco importa que Cristo se diga ou não um homem”[19]

Em Cristo surgiu o Homem-Deus através do impulso vital criador, ou melhor, a metafísica bergsoniana da evolução criadora desembocou em um Homem-Deus sem se ter colocado o problema teológico do Deus-homem. E no dizer de Henri Gouhier: “Não se trairia o pensamento de Bergson dizendo: a humanidade de Cristo é de tal maneira perfeita que é preciso agora escrever Deus, e sua divindade de tal maneira real que é preciso também escrever Homem[20]”.

Não importa o nome que se dê a esse Homem-Deus, ele é o reflexo da ação do impulso criador. Que se dê o nome de Cristo ou não, a verdade é que a mensagem de amor deixada no sermão da montanha teria por força algum autor. Bergson, dessa maneira, encontra o Cristo no interior de sua filosofia. Como diz Henri Gouhier: “O Cristo dos Evangelhos é filosoficamente o Absoluto místico; para reconhecê-lo como tal não se requer nenhum ato de fé, basta ser bergsoniano; reconhecê-lo como tal não implica adesão a alguma religião constituída”[21].

É nessa perspectiva que Bergson vê no cristianismo um misticismo completo, pois, o impulso da vida atingiu o Absoluto místico numa dinâmica evolutiva de criação que se traduz em amor de Deus.

O verdadeiro místico não se propõe a fugir da realidade mundana. Ele não sente orgulho pelo privilégio da elevação mística. Ele antes quer ser servo e ajudante de Deus na empreitada de elevar todos os homens à realidade dinâmica divina. “Ela (a pessoa mística) sozinha se apercebe de uma transformação que a eleva à categoria dos adjutores Dei, pacientes em relação a Deus, agentes em relação aos homens. E nem mesmo sente orgulho dessa elevação. Pelo contrário, grande é sua humildade”[22]. O místico propõe-se a cumprir a tarefa de sensibilizar a todos os homens e levá-los à novidade absoluta da realidade divina aonde eles agem e se movem.

A metafísica positivista de Bergson culmina, pois, na experiência mística como grandeza intuitiva da consciência humana em que seres privilegiados esperienciam, ou intuem, uma força criadora que se define pelo amor, e essa força é o próprio Deus que em ultima instância é a realidade da duração (durée), um dinamismo criador. Segundo Franklin Leopoldo e Silva,

Este dinamismo criador que supera os limites da humanidade atualizada numa sociabilidade determinada, sendo direção, é de certa forma guiado por algo cuja intuição ultrapassa largamente a capacidade de entendimento daquele mesmo que intui. São ocasiões em que, no homem, algo de maior do que ele mesmo age, como que por ele: uma coincidência que não pode ser expressa, já que é a identificação entre o individuo e algo que o ultrapassa infinitamente e que no entanto  ele encontra no mais profundo de si mesmo, no cerne de sua própria interioridade. Uma mensagem que não saberia expressar, e que por isso tenta viver. Uma visão que não pode transmitir, e que por isso tenta dar a ver. Essa união espiritual é, no entanto, a definição possível do misticismo: na intuição mística devemos, portanto procurar os indícios da identificação entre o homem e o absoluto[23].


CONCLUSÃO

Bergson dá-nos a entender que a experiência mística – conhecimento intuitivo - transporta o ser humano ao interior da dinamicidade da vida, elevando-o a uma realidade supra-humana, ou melhor, acima do que lhe proporciona a inteligência. Esse conhecimento coloca o ser humano em contato com a força criadora divina em que ele experiencia a VIDA em plenitude. Essa vida em plenitude é uma paz dinâmica, de ação, que se expande e se propaga a toda humanidade num processo evolutivo, sendo o inverso da pseudo paz que supomos termos atingido quando nos encontramos satisfeitos pela prática de nossas obrigações e deveres que geram o bem-estar ou paz social. A paz dinâmica não sossega, é sempre ativa e dinâmica para envolver a todos na harmonia e alegria da vida. Essa paz dinâmica vem à tona pela prática da religião dinâmica, através da união mística com Deus.

Título e Texto: Valdemar Habitzreuter – mestre em Filosofia (UFSC), 1-10-2014

BIBLIOGRAFIA:

BERGSON, Henri A Evolução Criadora. Rio de Janeiro, ed. Ópera Mundi, 1971.

As Duas Fontes da Moral e da Religião. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

Cartas, Conferências e outros Escritos. São Paulo, E. Victor Civita, 1984.

Oeuvres. Paris, PUF, 2001.

GOUHIER, H. Bergson et Le Christ des Évangiles. Paris, J. Vrin, 1999.

MARTINS, D. Bergson A intuicão como Método na Metafísica. Porto: Liv. Tavares Martins, 1957.

MEYER, F. La Pensée de Bergson. Paris-Montréal, Bordas, 1964.

SILVA, Franklin, Leopoldo e, BERGSON – Intuição e Discurso Filosófico, São Paulo,1994.





[1]Para Bergson, a realidade é durée (duração), ou tempo real, é uma passagem, um fluxo criador, um devir em que nada é estático, em que não há permanência, mas tudo está em constante transformação. Portanto, duração é movimento indivisível, é ação criadora que engendra o novo imprevisível e irrepetível, não é aplicável, pois, ao espaço que é estático. As coisas estáticas, como nós as vemos no espaço, são um recorte desse movimento criador; a essência da coisa é ser movimento, um ato de passagem de um estado a outro, sem delimitações. Como diz Bergson: “tudo é obscuro na idéia de criação se pensarmos em coisas que seriam criadas. (...) Não há coisas, há apenas ações” (BERGSON, em A Evolução Criadora, 1971, p. 248).

[2]BERGSON, 1984, p. 84.

[3]Emoção’, para Bergson, é a alegria da alma que se cria continuamente a si mesma ao participar do movimento criativo da vida. Pode-se fazer uma analogia com o artista quando cria sua obra de arte e coloca nela sua emoção que é o ato de criar algo novo, e não uma simples repetição ou cópia do já existente. Essa emoção do artista é a alegria da alma ao criar, diferente do prazer pelo desfrute de um bem material. Daí a distinção que Bergson faz entre alegria e prazer.

[4]Cf. BERGSON, 1978, p.43.

[5]Cf. MARTINS, 1957, p. 6.

[6]“il doit fournir le moyen d’aborder en quelque sorte expérimentalement le problème de l’existence et de la nature de Dieu” (BERGSON, Oeuvres, 2001, DS, p. 1179).

[7]“A nos yeux, l’aboutissement du mysticisme est une prise de contact, et par conséquent une coïncidence partielle, avec l’effort créateur que manifeste la vie. Cet effort est de Dieu, si ce n’est pas Dieu lui-même. Le grand mystique serait une individualité qui franchirait les limites assignées à l’espèce par sa matérialité, qui continuerait et prolongerait ainsi l’action divine. Telle est notre definition” (BERGSON, Oeuvres, 2001, DS, p. 1162).

[8] BERGSON, 1978, p. 191.

[9]Ibidem, p. 218.

[10]Ibidem, p. 208.

[11]Ibidem, p. 187.

[12]Ibidem, p. 185

[13]Ibidem, p.190.

[14]Ibidem, p.191.

[15]Ibidem, p.182.

[16]Ibidem, p.194.


[17]Ibidem, p.193.

[18]Ibidem, p.197.

[19] Ibidem, p. 198

[20] GOUHIER, p. 118.

[21] Ibidem, p. 118-119.

[22] Ibidem, p. 192.

[23] SILVA, Franklin, Leopoldo e,1994, p. 296.

4 comentários:

  1. Parabéns, Habtzreuter! Belíssimo artigo, sobre o pensador da duração. Forte abraço!!

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  2. Há muitas formas de ateísmo como há de religiões.
    Até Bergson concorda.
    A religião é um fenômeno humano sem lógica nenhuma.
    Não existe uma única prova e resposta da filosofia que de explicações para a sua realidade.
    Não subsiste a sua essência.
    Sua natureza é vulnerável à eventos antes desconhecidos.
    Parece mais disfunção congênita do que conhecimento na busca de encontrar as causas mais banais para explicar realidades realmente difíceis.
    Ser ateu é uma posição filosófica muito mais disciplinada do que todos os contextos religiosos.
    Garanto que 100% do mundo nasce dentro de uma religião, se 1 % são ateus, a 99% da criminalidade é dos 99% dos religiosos que restam.
    Não crer em deus é ter crença em outras explicações, se fosse simplesmente o fato do tal deus, aí até eu acreditaria em conflitos.
    Para mim não há esse conflito.
    Viver de forma ideológica é ficar distante da realidade e ter visão platônica do mundo.
    A vida não precisa ter sentido, é simples, VIVA!
    Todos somos niilistas, basta pisar no nosso calo e viramos socialistas.
    No fundo eu ainda acho que o chefe não é escolhido por sua capacidade, mas por sua força, infelizmente não é mais muscular é apaniguada e seguidores e dinheiro.
    bom dia

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  3. Sr editor, eu havia lhe comunicado sobre o nosso capital intelectual, que é dos melhores
    O texto do Habitz, vem a confirmar a minha afirmação
    Mesmo assim e eu não compreendo , estamos patinando quando deveríamos estar ganhando de 7 a1.
    Alguma dúvida ?
    José Manuel

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    1. Prezado José Manuel;
      Muitas razões explicarão a nossa "patinagem". Uma delas foi a de ter ficado preso umbilicalmente à malta do PT/CUT... e muitos censurando e patrulhando a diferença e a oposição.
      Foi a era do pensamento único que, espero sinceramente, tenha acabado.

      Quanto ao texto de Valdemar Habitzreuter só vem valorizar e prestigiar a nossa revista.
      Obrigado.
      Abraços./-
      Jim


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