Não é difícil imaginar a
configuração que poderia protagonizar o contrato de estagnação: um PS sem as
arestas socráticas, para agrado da direita; um PSD “social democrata”, para
conforto da esquerda
Rui Ramos
Durante anos, quase só o Presidente
da República falou de compromissos. Fê-lo novamente no domingo passado. Desta vez, porém, o acolhimento foi menos ácido.
Subitamente, a mesma gente que só via causas de polarização e guerra civil
parece disposta a descobrir razões de conciliação e diálogo. Devemos
desconfiar? Certamente.
Nos últimos tempos, a
oligarquia política pouco mais tem feito do que cultivar abismos ideológicos,
rancores clubísticos e incompatibilidades pessoais. Dia sim, dia não, as
oposições “rompiam” com o governo. Não havia quem não andasse agarrado a
princípios que não admitiam concessões. No fundo, a conflitualidade deu um
grande jeito: serviu à oligarquia para adiar ou inviabilizar mudanças. A lista
oficial das “reformas” por fazer prova que a discórdia resultou muito bem.
Para os bem-intencionados, o
compromisso passou naturalmente a simbolizar o contrário desta política de
desistência e sabotagem: se eles se entendessem, enfrentaríamos os “grandes
problemas”; se houvesse consenso, teríamos “reformas”. Ora, a ilusão é pensar
que, com esta oligarquia política, os motivos e resultados do compromisso
seriam necessariamente diferentes dos motivos e resultados da litigância.
É que tal como há bancos bons
e bancos maus, também há compromissos bons e compromissos maus. Bom seria um
acordo entre os partidos que definisse as funções do Estado no perímetro do que
é sustentável, e concentrasse a força política necessária para resistir aos
interesses de toda a espécie – sindicais, corporativos, empresariais, etc. —
que capturaram o Estado e impedem qualquer ajustamento que vá além do imposto e
do corte temporário.
Mas há outra opção: um arranjo
entre os oligarcas para conservar tudo como está. O seu programa seria simples:
não aumentariam as pensões, mas também não baixariam os impostos. Deixariam ao
Estado o peso adquirido, de modo a não incomodar os instalados. Quanto ao mais,
contariam com os fundos do QREN e o efeito de arrasto de algum crescimento
económico europeu.
Infelizmente, este segundo
tipo de consenso é muito mais provável. Para lá chegar, não seriam precisos os
grandes debates das “reformas”: bastariam cumplicidades pessoais e
convergências de interesses. Tudo se passaria no recato dos bastidores, que é
onde a oligarquia está à vontade. Teria o apoio dos grupos de interesse
organizados, que são quem fala na televisão e se manifesta na rua. O seu
resultado seria a estagnação, mas poderiam chamar-lhe “acalmação”. A dúvida, no
tempo da troika, foi: mas é isto possível? É, desde que a UE, embora com
condições, restabeleceu de facto, através do BCE, a circulação de capitais
entre o norte e o sul da Europa. O dinheiro não há, mas anda por aí.
Não é difícil imaginar a
configuração partidária que poderia protagonizar este grande contrato de
estagnação nacional: um PS sem as arestas socráticas, para agrado da direita;
um PSD regressado à “social democracia”, para conforto da esquerda; umas
relíquias do defunto BE, para conceder a bênção do “intelectual de esquerda” a
quem precisar; e um católico socialista na Presidência da República, para
consolo ecuménico de crentes, ateus e agnósticos. Extinto o conflito,
poderíamos ficar consensualmente prostrados na praia, à espera que a Alemanha e
a França enviassem algum barco salvador.
É verdade que, como lembrou Ricardo Reis esta semana, um agravamento dos juros da dívida, na sequência de
uma qualquer reviravolta mundial, impor-nos-ia imediatamente um segundo
resgate. Mas isso é ideia de pessimistas. O compromisso dos interesses é só
para os optimistas.
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