quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Macroscópio – O dia seguinte ao 7 de Janeiro do Charlie Hebdo

José Manuel Fernandes
Jonathan Swift é conhecido em Portugal por ser o autor de “As Viagens de Gulliver”, mas há outro livro dele que é porventura mais estudado nas universidades: A Modest Proposal, um panfleto escrito em 1929 cujo título completo é A Modest Proposal for Preventing the Children of Poor People From Being a Burthen to Their Parents or Country, and for Making Them Beneficial to the Publick. A “proposta modesta” era que os pobres vendessem os seus filhos aos ricos para estes se alimentassem, comendo-os. Tratava-se obviamente de uma alegoria, de uma sátira, de um texto por isso mesmo perturbador e capaz de ofender os espíritos mais sensíveis. No entanto, como se nota no site da Electronic Frontier Foundation, uma organização de defesa dos direitos digitais, mesmo os exageros da sátira do Charlie Hebdo podiam reivindicar uma tradição que recuava até textos como o de Swift – afinal uma tradição com “deep historical roots in prompting societal change and igniting discussions on controversial issues”.

Começo este Macroscópio com esta referência pois uma das discussões que já se iniciou foi sobre até que ponto o registo do Charlie Hebdo não seria excessivo. Um dos textos que abriu as hostilidades saiu no Financial Times, onde Tony Barber escreveu o seguinte:

This is not in the slightest to condone the murderers, who must be caught and punished, or to suggest that freedom of expression should not extend to satirical portrayals of religion. It is merely to say that some common sense would be useful at publications such as Charlie Hebdo, and Denmark’s Jyllands-Posten, which purport to strike a blow for freedom when they provoke Muslims.

Na verdade, uma primeira versão deste parágrafo, publicada ontem num blog do FT, acrescentava ainda seis palavras, passando o texto a terminar assim: “…which purport to strike a blow for freedom when they provoke Muslims, but are actually just being stupid.

Esta referência provocou reacções iradas como a de David Rothkopf na revista Foreign Policy, em The Front Line Within, que considerou que a coluna de Barber “really a disgrace to the journalistic values for which the FT has historically stood (and is inconsistent with theFT’s own editorial on the subject)”. Eis o seu argumento:

In free societies, there are no prohibitions based on the opinions of a few over whether something is smart or stupid, tasteful or repugnant. Indeed, it is the freedom to cross those lines or openly flaunt them that marks societies as truly open and encourages the kind of intellectual and artistic vibrancy that, whenever it has been fostered, has driven civilization forward.

Desta vez a dimensão do horror de Paris não deu muito espaço a críticas do estilo ácido do Charlie Hebdo, mas é bom recordar que, em 2006, aquando da polémica em torno das caricaturas de Maomé encomendadas por um diário dinamarquês, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, (do governo socialista de José SócratesFreitas do Amaral, emitiu um comunicado oficial onde escreveu que “Portugal lamenta e discorda da publicação de desenhos e/ou caricaturas que ofendem as crenças ou a sensibilidade religiosa dos povos muçulmanos” e que “o que se passou recentemente nesta matéria em alguns países europeus é lamentável porque incita a uma inaceitável 'guerra de religiões'”.

Mesmo assim não deixou de haver temas que suscitaram discussão entre nós, sendo um deles o tweet da eurodeputada socialista Ana Gomes onde esta defendeu que o que aconteceu no Charlie Hebdo é também resultado das “políticas de austeridade anti-europeias”. Foi uma consideração que não passou despercebida ao colunista do Observador João Marques de Almeida que, em Três pontos sobre o Charlie Hebdo, considerou que “Os únicos culpados são os autores, os que pensam como eles e os que estão dispostos a fazer o mesmo. Em particular, atacar as “políticas de austeridade europeias”, como fez Ana Gomes, é um disparate incompreensível. Quando se viola um princípio fundamental das nossas sociedades, como a liberdade de expressão, seria o momento para a direita e a esquerda estarem unidas.

Houve estilhaços menores destas controvérsias, mas passo por hoje a algumas outras recomendações de leitura que, continuando a ser sobre o caso do Charlie Hebdo, abrem várias pistas de reflexão interessantes. Vamos a elas:

·  Ayaan Hirsi Ali, a activista somali a que já aqui me referi ontem, escreve no Wall Street Journal - How to Answer the Paris Terror Attack – um texto onde defende a ideia de que é necessário perceber que existe uma ligação entre a ideologia políticas dos islamistas radicais e as suas crenças religiosas. Eis uma passagem do seu argumento: 

This would be a departure for the West, which too often has responded to jihadist violence with appeasement. We appease the Muslim heads of government who lobby us to censor our press, our universities, our history books, our school curricula. They appeal and we oblige. We appease leaders of Muslim organizations in our societies. They ask us not to link acts of violence to the religion of Islam because they tell us that theirs is a religion of peace, and we oblige. What do we get in return? Kalashnikovs in the heart of Paris. The more we oblige, the more we self-censor, the more we appease, the bolder the enemy gets.

·  Paulo Tunhas, que em 2003 escreveu com Fernando Gil Impasses, sobre a reacção do Ocidente ao 11 de Setembro, escreve no Observador sobre O retorno dos canibais islamistas. A sua conclusão é a seguinte: “Como os combater? Pela força, sem dúvida, e da forma mais eficaz possível. Mas também com a ajuda dos muçulmanos que não partilham a tal vontade de morte. Infelizmente, a possibilidade de uma boa solução no capítulo é algo que deve ser encarado com muito cepticismo. A guerra – é mesmo uma guerra – vai continuar por muito tempo.

· Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto estiveram hoje para mais um Conversas à Quinta que se debruçou, como não podia deixar de ser, sobre os acontecimentos de Paris e o seu significado numa Europa com muitas sinais de mal-estar. De facto, se na realidade o terrorismo islâmico faz sobretudo vítimas entre os próprios muçulmanos, a verdade é que as sociedades (e as cidades) europeias são palco de tensões que não têm hoje solução fácil.

· A revista conservadora norte-americana National Review fez questão de, em The Charlie Hebdo Massacre, separar o extremismo religioso do verdadeiro sentido de uma fé: “Someone who kills another human being for blasphemy grievously offends his own God. God will respond to insults in His own good time and in His own ways, which may sometimes surprise us when we know them. But people of faith can be reasonably sure that He will be harsher toward those who murder in His Name than toward those who insult Him.

· Dos textos da imprensa francesa, destaco um, de Abdennour Bidar, um filósofo da religião e do islão que, no Le Monde, em Résistons collectivement à la haine, reflecte sobre os desafios que este ataca criou. Eis o que o inquieta: 

Nous voilà tous exposés dès maintenant au risque gravissime que cet islam devienne définitivement le casus belli qui ruine notre société, au risque radical que celle-ci se déchire totalement en tombant dans le piège de confondre islam et barbarie, et d’accuser tous les musulmans de cette barbarie. Saurons-nous garder la tête assez froide pour éviter cela? Serons-nous assez nombreux à garder un discernement lucide pour éviter que cet amalgame se produise? Pour éviter que les musulmans fassent – à cause de quelques fous – l’objet d’un rejet massif, d’une hostilité et d’un racisme généralisés?

· Concluo este apanhado com um editorial colectivo de seis jornais europeus – o francês Le Monde, o britânico The Guardian, o alemão Süddeutsche Zeitung, o italiano La Stampa, o polaco Gazeta Wyborcza e o espanhol El Pais. Intitulado (na sua versão em castelhano) Seguiremos publicando, é uma poderosa declaração de intenções: “Seguiremos dando vida a los valores de libertad e independencia que son el fundamento de nuestra identidad y que todos compartimos. Continuaremos informando, investigando, entrevistando, editorializando, publicando y dibujando sobre todos los temas que nos parezcan legítimos, en un espíritu de apertura, enriquecimiento intelectual y debate democrático.”

A terminar gostava de chamar a atenção para as declarações muito fortes do Xeique Munir, quer as que prestou ao Observador - "Espero que as pessoas que praticaram este ato sejam apanhadas, julgadas e punidas" -, quer à Rádio Renascença. Destas últimas destaco uma frase de que gosto particularmente: "Se não estão satisfeitos em viver num país liberal, podem emigrar".

Bom descanso e boas leituras.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, 8-1-2015

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