terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Quem é que, afinal, não é populista?

Rui Ramos

A polarização, a demagogia, e a irresponsabilidade atribuídas ao "populismo" não são, como agora nos querem fazer crer, exteriores ao actuais sistemas políticos. São parte desses sistemas.

Um livro vale às vezes por uma frase. É o caso do ensaio de Jan-Werner Muller sobre o populismo (na edição francesa, Qu’est-ce que le populisme?). Muller começa com a pergunta certa: “quem é que, afinal, não é populista?” Exactamente.

É costume dizer: o populismo não é uma doutrina, mas um estilo. O que o define? Antes de mais, a noção de que a política consiste no combate que “nós” travamos contra “eles”. Nós somos a maioria, eles são uma minoria. Nós temos sido prejudicados, eles têm sido privilegiados. Nós estamos do lado de fora, eles estão do lado de dentro. Nós somos virtuosos, eles são corruptos.

Em nome do “nós”, fala geralmente alguém que os jornalistas, à falta de melhor vocabulário, chamam “carismático”. O que esse líder carismático se propõe oferecer é invariavelmente contraditório: por exemplo, mais despesa social e menos receita fiscal. O resultado é défice, inflação, às vezes bancarrota. Entretanto, o líder descobrirá as necessárias conspirações para explicar as dificuldades.

Ora bem, se isto é o populismo, poderemos dizer que as elites das actuais democracias ocidentais nunca fazem política assim? Quantos dos políticos que habitualmente elegemos atacam os “ricos”, ou prometem acabar com a “corrupção”? Quantos encomendam “carisma” às agências de comunicação? Quantos prometeram – e até deram – o que não podiam prometer e dar? Donde é que, de outra maneira, viriam os défices e as dívidas públicas em tempo de paz?

A polarização, a demagogia, e a irresponsabilidade atribuídas ao “populismo” não são, como agora nos querem fazer crer, exteriores ao actuais sistemas políticos. São parte desses sistemas, são a sua tentação constante. Dir-me-ão: e o proteccionismo?, e o nacionalismo? Não são exclusivos dos “populistas”? De facto, a globalização e o europeísmo foram grandes palavras das elites políticas na década de 1990. Era a moda. Mas já não é. Nos EUA, Hillary Clinton fez campanha contra os tratados de comércio. Na Europa, não há líder social democrata que não rosne contra a integração europeia. O sistema só é susceptível ao populismo, porque já tem os ingredientes do populismo dentro de si.

Mas não vêm os líderes “populistas” de fora do sistema? As elites instaladas insistem muito nisso. Recorrem até a uma sociologia imaginária, que faz do “populista” o representante de um “povo selvagem”, como seriam os trabalhadores brancos que votaram Trump. Mas Trump já fez parte do sistema — e muitos esperam que volte a fazer –, e os trabalhadores brancos que votaram nele, longe de serem racistas à margem da sociedade, tinham votado em Obama em 2012. No Ocidente, não há, ao contrário do que se diz, nem duas sociedades, nem duas elites.

Estou então a dizer que não há motivo para preocupação? Que os bárbaros, afinal, não vêm, como nos versos de Cavafy? Pelo contrário, estou a dizer que os perigos são maiores do que podemos imaginar. O maior problema não é, como nos querem fazer crer, o da “revolta das massas”, mas o da “conversão das elites”. O chamado “modelo social” já não é sustentado pela economia. O estilo “populista” é um meio fácil de as elites políticas escaparem às responsabilidades. Até agora, estiveram organizadas em turnos de alternância, uns à direita e outros à esquerda. Não é impossível que, perante as aflições, evoluam para um sistema de polarização à volta de homens fortes, capazes de apelar transversalmente ao eleitorado em nome da nação. Foi assim com De Gaulle em França em 1958. Só que nem todos esses homens fortes serão como De Gaulle. Alguns serão como Viktor Orban é na Hungria, e outros como José Sócrates teria gostado de ser em Portugal. Os piores bárbaros são aqueles que já estão entre nós.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 13-12-2016

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