Alexandre Homem Cristo
A novidade em Trump não é o alheamento
face aos factos, algo que a esquerda há muito adoptou e ele só pratica com
maior assertividade. A novidade é que a esquerda perdeu o monopólio da
pós-verdade.
Foi a palavra do ano para os
Dicionários Oxford. “Pós-verdade”: quando os factos têm menor influência na
opinião pública do que os apelos emocionais ou as convicções pessoais. Tudo
certo. Excepto a percepção errada de que o problema é novo, nasceu com Trump ou
se resume à agora chamada “direita trumpista” (“trumpista” é, depois de
“neoliberal”, o novo equivalente retórico a “fascista”). Sim, Trump é nocivo no
uso e abuso dos apelos emocionais, em completo alheamento das evidências
empíricas. Sim, há todo um amontoado de populismos (de direita mas também de
esquerda) entusiasmados com o potencial das redes sociais para disseminar as
suas mentiras. Mas não, nada disto é novo ou diferente do que a esquerda
europeia (e a portuguesa em destaque) anda a fazer há anos e, em particular,
nestes tempos de crise, quando o seu alheamento perante os factos foi a sua
característica identitária. E, ainda pior do que acontece hoje com Trump, com a
conivência da imprensa e da opinião publicada.
Acha que exagero? Olhe que
não. Ainda na semana passada, Joana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda
(BE), acusou o governo PSD/CDS (2011-2015), a propósito dos bons resultados no
PISA 2015 (a avaliação internacional da OCDE na Educação), de ter excluído os
piores alunos da amostra do estudo, atirando-os para o ensino vocacional. E que
isso explicaria os bons resultados que Portugal obteve na avaliação
internacional. A acusação é muito grave. Mas, como logo denunciei, é também completamente falsa – bastava consultar o
relatório em causa para verificar que a representatividade desses alunos até
aumentou.
Ora, a leviandade da mentira
diz tudo: Joana Mortágua não lançou a acusação recorrendo a evidências
empíricas e muito menos se preocupou, ao longo de toda a semana em que insistiu
no tema, em verificar a sua veracidade. Bastou-lhe a firme convicção pessoal de
que o ex-ministro Nuno Crato tinha uma visão elitista e discriminatória da
educação para se justificar. Foi tudo com tal à-vontade que até publicou sobre
isso um artigo de opinião no Público, em que expunha a acusação
mas (lá está) nenhuma prova da mesma. Felizmente, a coisa atingiu tal dimensão
que foi peremptoriamente desmentida por quem coordenou o PISA 2015 em Portugal. Mas se isto não
é pós-verdade, é o quê? E de que modo é isto diferente do que se ouve da boca
de Trump, que com semelhante leviandade afirma que milhões de votos ilegais
foram validados nas eleições presidenciais americanas?
Não há diferença. Sim, o
comportamento de Trump eleva a falta de vergonha a um novo nível, mas esse
nível está só um degrau acima do que Sócrates instituiu em Portugal e a
esquerda abraçou – o desprezo pelos factos, convenientemente substituídos por “narrativas”.
Para Joana Mortágua, Nuno Crato foi um elitista destruidor da escola pública e
não lhe interessa que os factos desmintam a sua convicção. De resto, nunca é
demais lembrar, a deputada do BE não está sozinha: o nosso ar político, entre
2011-2015, foi envenenado de alertas diários sobre a destruição do Serviço
Nacional de Saúde ou do sistema educativo. Acusações que, hoje, as avaliações
internacionais não só negaram como evidenciaram uma realidade precisamente
oposta: onde se alertou para o desastre houve, afinal, melhoria. Mas,
naturalmente, isso agora não importa nada.
O problema não é português,
entendamo-nos. É europeu e há muito que tomou conta do discurso da esquerda
pós-moderna (a começar nas universidades). Ora, agora que teremos de viver com
Trump, que pelo menos isso sirva para apontar os holofotes ao elefante que está
no meio da sala e poucos aceitam ver: optar por “narrativas”, em detrimento da
realidade, tem consequências. Sim, Trump representa bem esse perigo para a
qualidade do debate político e das nossas democracias. Mas o que há de novidade
em Trump não é a preferência discursiva pelas “narrativas” e pelo alheamento
face às evidências empíricas – esse perigo não é novo, pois é algo que a esquerda europeia há muito adoptou e que Trump apenas pratica de modo mais assertivo. O que
há de novidade em Trump é que ele não é de esquerda. Só isso. Pela primeira
vez, entre os principais actores da política ocidental, a esquerda perdeu o
monopólio da pós-verdade.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador,
19-12-2016
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-