João Marques de Almeida
A relação da aldeia lisboeta com o resto
do país é simples: esconder as más notícias, mesmo negando a realidade; fazer
das boas notícias – ou das menos negativas – um exercício de propaganda
política.
Em Lisboa, há uma pequena
“aldeia” com cerca de 1000 pessoas; mais ou menos, mas não é necessário ser
exacto. Vamos chamar-lhe a “aldeia dos 1000”. Esta aldeia é composta por
dirigentes partidários, altos funcionários do Estado, empresários, jornalistas,
financeiros e banqueiros. Conhecem-se bem e sabem o suficiente sobre as vidas
uns dos outros. Frequentam os mesmos restaurantes, vão às mesmas festas, e muitos
deles estudaram nas mesmas escolas e universidades. Os membros desta aldeia
decidem o que o resto do país deve saber e deve conhecer sobre a realidade. É
esse o seu grande poder e a linha condutora de quase tudo o que fazem. Em
privado falam sobre quase tudo e tudo combinam. Mas o que dizem em público é
filtrado. Os portugueses só devem saber o que os aldeões decidem que devem
dizer.
De certo modo esta aldeia
segue a velha tradição da corte lisboeta. A corte em Portugal resistiu a tudo.
À revolução liberal, a guerras civis, à revolução republicana, ao Estado Novo e
ao 25 de Abril. Os seus membros mudam, mas o seu papel de condutor da sociedade
portuguesa mantém-se. Um dos feitos geniais dos pais fundadores da democracia
portuguesa foi o modo como reconstruiram a corte lisboeta para continuar a
controlar a sociedade democrática. Um feito admirável. Muito mais difícil do
que numa monarquia ou numa ditadura.
A relação da aldeia lisboeta
com o resto do país é simples: esconder as más notícias, mesmo que isso exija
negar a realidade; e transformar as boas notícias – ou as menos negativas – num
exercício de propaganda política. A verdade é secundária e o que interessa é
criar uma narrativa, como se diz hoje em dia. Obviamente, uma narrativa que
seja popular. Para a corte, os portugueses não merecem a verdade. Devem ser
entretidos com ilusões. Curiosamente, a maioria dos portugueses espera e deseja
isso da corte, sobretudo depois dos duros anos entre 2011 e 2015. Por isso,
António Costa engana de um modo tão transparente. Costa dá-nos ilusões e os
portugueses pedem, António dá-nos mais. E se a verdade é o que Passos Coelho
disse nos quatro anos que esteve em São Bento, então preferimos as boas
mentiras. O governo socialista adoptou a velha máxima católica da mentira
piedosa. Mentem todos felizes.
2016 foi o ano em que a
“aldeia dos 1000”, ou a corte lisboeta, decidiu que “2011” nunca existiu. Se
não fosse a crise financeira criada por Wall Street, tudo continuaria a correr
muito bem no nosso país. Sócrates conduzia Portugal pelo melhor dos caminhos.
Mas a crise permitiu a “austeridade neoliberal” conduzida por Angela Merkel, no
exterior, e por Passos Coelho, em Portugal, com o apoio de Cavaco Silva.
Passada a crise, como decretou o governo socialista, poderemos regressar
gradualmente a 2010. Não passa de uma ilusão, mas a verdade é irrelevante. O
que conta é fazer acreditar que é possível. Um falso luxo permitido pelas
políticas monetárias do BCE. Frankfurt emite a moeda que permite adiar reformas
e acumular dívidas. De certo modo, é um regresso ao início do Euro. Políticas
viradas unicamente para o presente, sem pensar no futuro, com o objectivo de
preservar privilégios apenas sustentáveis com o aumento permanente da dívida.
As políticas do BCE e a
satisfação dos portugueses com a nova narrativa socialista reforçam as duas
convicções mais fortes da aldeia dos mil. Com mais ou menos dificuldades, a
‘Europa’ (ou a Alemanha) continuará a pagar, e os portugueses são pacíficos e
satisfazem-se com pouco. Isto não é terra para populismos radicais. Pode ser
que estejam certos. E se estiverem o país continuará nesta mediocridade
satisfeita, com monarcas republicanos felizes, sem grandes abalos, mas sem sair
de uma situação remediada. Mas estará Portugal preparado para o caso de estarem
errados? E o que fará a aldeia se os aldeões estiverem enganados?
Título e Texto: João Marques de Almeida, Observador,
19-12-2016
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