Se os larápios do Covidão não forem
castigados, voltaremos aos tempos em que aqui se roubava até a Taça Jules Rimet
Augusto Nunes
Calamidade pública é uma
expressão que impõe aos cavalgados um pavor tão intenso quanto o entusiasmo que
desperta entre cavalcantis. É sinônimo de pesadelo para governados que a
catástrofe reduz a flagelados. Para governantes, as duas palavras são a senha
para o ingresso no sonho da gastança sem limites nem restrições, sem
contrapartidas nem cobranças, sem vigilâncias nem barreiras que obstruam outro
surto de ladroagem impune. Ao saber que um pedaço do município foi castigado
por uma desgraça de bom tamanho, o prefeito decreta o estado de calamidade
pública, requisita o dinheiro que nunca falta nem demora a chegar quando se
trata de urgência urgentíssima e entra na farra dos contratos sem licitação. No
Rio de Janeiro, por exemplo, prefeitos da Região Serrana aguardam as chuvas de
verão com a mesma ansiedade otimista demonstrada por prefeitos nordestinos à
espera do aviso de que a seca não acabará tão cedo. Encostas inundadas ou
sertões ferventes são calamidade garantida. E toda calamidade é muito
lucrativa.
Se um temporal de cinco horas
rende verbas suficientes para que o município espere o próximo verão com
dinheiro em caixa, se uma estiagem com alguns meses de prorrogação mantém
equilibrado o orçamento da cidade que arde sob o sol, é compreensível a
escancarada excitação dos governantes municipais com um desastre sanitário de
dimensões planetárias. É tarde para lastimar o que se gastou e é cedo para
calcular quanto se gastará no combate à pandemia de coronavírus. Mas não é
preciso esperar pelos números finais para prever o espanto do mundo com a
pujança da indústria da calamidade pública. Essa indecente brasileirice vem
engolindo milhões de reais enquanto os demais setores da economia caçam migalhas
para escapar da falência.
As primeiras
esquadrilhas de vírus chineses haviam acabado de pousar em solo brasileiro
quando começou a funcionar em tempo integral a fábrica de decretos de
calamidade pública.
A medida foi encomendada por
governadores e prefeitos. A primeira morte decorrente da pandemia precipitou o
parto de um “orçamento de guerra” no Congresso, que liberou o governo federal
para torrar sem insônia nem remorso o dinheiro que não tem. Foram revogados o
bom senso, a lógica, as advertências dos ajuizados — e também a Lei de
Responsabilidade Fiscal, o teto de gastos, o controle da dívida fiscal e alguns
pilares da política econômica do ministro Paulo Guedes. Nesta semana, o
carnaval dos perdulários sem lastro foi anabolizado pelo Congresso com mais um
socorro financeiro que vai financiar o combate à pandemia em todos os Estados e
municípios. Isso mesmo: todos.
A mais abrangente distribuição
de dinheiro concebida desde a chegada das primeiras caravelas exibe marcas de
nascença suspeitíssimas. Parte dos R$ 125 bilhões, por exemplo, será usada
pelos governadores “para manter a máquina administrativa funcionando”, seja lá
o que isso significa, e sem que os governos estaduais ofereçam algo em troca. A
fortuna reservada ao duelo com o vírus chinês vai beneficiar tanto municípios
assolados pela pandemia quanto os que não contabilizam um só caso confirmado.
Resultantes de um confuso cruzamento de estatísticas, as doações feitas a cada
município não descartam sequer centavos. Moedas que até mendigos menosprezam
não são coisa de gente séria. São truques de vigarista que, fantasiado de
diretor de departamento financeiro, tenta conferir respeitabilidade a cifras
que não fazem sentido.
Tome-se como exemplo a
disparidade das quantias orçadas para o combate à pandemia nos dois menores
municípios de São Paulo e Mato Grosso. A paulista Borá tem 837 moradores. A
mato-grossense Araguainha tem 935, apenas 98 a mais. Mas Borá receberá R$
93.619,92 e Araguainha será contemplada com R$ 257.944,36. Esse tratamento desigual
decerto prejudicaria o desempenho do município paulista na guerra que não houve
porque o inimigo nunca deu as caras nos campos de batalha: até agora, em
nenhuma das cidades foi registrado um único e escasso caso de coronavírus. Como
o texto do projeto aprovado pelo Congresso não permite a devolução do dinheiro,
Borá e Araguainha terão de usar a imaginação para aplicar a verba em problemas
reais. A imaginação ou as infinitas saídas de emergência oferecidas pela
dispensa de licitação.
Convém ressalvar que
a exigência de licitação não evitou o grande assalto à Petrobras, consumado
pelo maior esquema corrupto de todos os tempos.
Mas a documentação exigida por
lei, repleta de impressões digitais, evidências de superfaturamento e outras
evidências criminosas, abreviou a desmontagem da quadrilha do Petrolão — e
contribuiu para que a Lava Jato se transformasse na mais bem-sucedida operação
anticorrupção da história. A identificação e a captura dos larápios da classe
executiva seriam mais complicadas se os bandidos tivessem avançado pelo atalho
dos contratos sem licitação. As bandalheiras agrupadas na reportagem de capa
desta edição da Oeste informam que o Covidão, ainda uma obra em andamento, tem
tudo para garantir no Museu da Corrupção no Brasil uma sala mais espaçosa que
as que abrigam a Copa da Roubalheira e a Olimpíada da Ladroagem.
Embora mereça uma Lava Jato
customizada, por enquanto o Covidão não tem recebido a devida atenção do
Ministério Público, do Judiciário e da Polícia Federal. Os delegados parecem
imobilizados pela recente troca de comando. Promotores e juízes andam vestindo
jalecos imaginários para bloquearem a ressurreição gradual de atividades
econômicas sepultadas pelos sacerdotes do confinamento para todos. O Brasil
decente aprendeu com a Lava Jato que todos são iguais perante a lei e que há
vagas na cadeia para quem se achava condenado à perpétua impunidade, começando
pelo ex-presidente da República que saiu da História para cair na vida.
Se os meliantes envolvidos no
Covidão não forem castigados, o Brasil será conhecido como o país em que os
ladrões não permanecem em quarentena mesmo durante uma ofensiva de vírus
chineses. Nessa hipótese, voltaremos aos tempos em que aqui se roubava até a
Taça Jules Rimet.
Título e Texto: Augusto
Nunes, Revista Oeste, nº 7, 8-5-2020
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