terça-feira, 12 de maio de 2020

Os militantes da corte

O STF não apenas desafia os limites de suas atribuições, mas fere a Constituição e, consequentemente, todos nós



Ana Paula Henkel

No famoso dicionário americano Webster, o termo “ativismo judicial” aparece da seguinte maneira: “Prática no Judiciário de proteger ou expandir direitos individuais por meio de decisões que se afastam de precedentes estabelecidos ou são independentes ou opõem-se a supostas intenções constitucionais ou legislativas”.

O termo “ativismo” é usado tanto na retórica política quanto na pesquisa acadêmica. No uso acadêmico, ativismo geralmente significa apenas a disposição de um juiz para derrubar a ação de um governo com o qual não se identifique, porém com base em precedente judicial. Assim, o juiz reforça as próprias opiniões recorrendo a preceitos constitucionais ou a decisões anteriores impetradas por tribunais. Por essa ótica, o ativismo pode não ser considerado pejorativo, e estudos sugerem que não tem uma valência política consistente.

Na retórica política, no entanto, o ativismo judicial não é apenas um termo ruim, é uma ação nociva. Descrever os juízes como ativistas nesse sentido é argumentar que eles decidem casos com base nas próprias preferências políticas, em vez de seguir uma interpretação fiel da lei. Abandonam o papel judicial imparcial e acabam “legislando da bancada”. As decisões podem ser rotuladas de ativistas por derrubar uma ação legislativa ou executiva ou por permitir que uma medida anticonstitucional se estabeleça. Eu sei, essa descrição soa familiar demais.

Nos Estados Unidos, um dos casos mais conhecidos e polêmicos sobre o ativismo do Judiciário, até hoje centro de intermináveis batalhas políticas e protestos pelo país, é a decisão da Suprema Corte norte-americana no processo Roe versus Wade. Em 1969, Norma McCorvey ficou grávida de seu terceiro filho, mas decidiu não ter o bebê. Na época, a lei do Texas só permitia o aborto em casos de estupro, incesto ou para salvar a vida da mãe. Ela chegou a ser aconselhada por suas amigas a afirmar falsamente que havia sido estuprada, mas não existia nenhum relatório da polícia para apoiar essa alegação. Então McCorvey tentou fazer um aborto ilegal, mas logo descobriu que as autoridades tinham fechado a clínica.

Depois de visitar um advogado, “Jane Roe” (nome fictício usado para proteger a identidade da requerente, Norma McCorvey) decidiu entrar com uma ação federal contra o distrito de Dallas, Texas, pela impossibilidade de realizar o aborto. O caso foi parar na Suprema Corte e, numa decisão histórica, os magistrados esticaram e usaram a Décima Quarta Emenda Americana, que protege, entre outros pontos, o direito à privacidade.

A corte entendeu que ali caberia uma “interpretação” de que a emenda também protegia a liberdade e a privacidade de uma mulher grávida de optar por um aborto sem a restrição do governo.

Antonin Scalia, um dos mais respeitados juízes da Suprema Corte dos EUA, falecido em 2016, era categórico quanto ao papel das cortes e tribunais para a manutenção de democracias saudáveis e dos pilares do império da lei e da ordem. “Enquanto juízes mexerem na Constituição para ‘fazer o que as pessoas querem’ em vez do que o documento realmente comanda, os políticos que escolherem e confirmarem os novos juízes, naturalmente, quererão apenas aqueles que concordam com eles politicamente. A Constituição não é um documento vivo, é um documento legal”, dizia Scalia, certamente um norte na América até hoje no que diz respeito a prerrogativas e limites de cada poder.

Os tempos andam meio estranhos no Brasil quando o assunto é esse tal de ativismo judicial.

Nosso sistema de freios e contrapesos parece sempre capengar às exaustivas tentativas e ações das garras de membros do Judiciário, que já há algum tempo insistem em estender suas funções às mesas do Executivo e do Legislativo. Nosso Supremo Tribunal Federal, a casa que deveria salvaguardar as linhas da Constituição, sempre flerta com temas de interesse político que são configurados para debates nas casas legislativas e vem interferindo em decisões constitucionalmente salvaguardadas ao Executivo. Nesse perigoso ativismo judicial, a Suprema Corte não apenas desafia os limites das atribuições expressas pela Carta Magna, mas fere a Constituição e, consequentemente, todos nós.

No espetacular livro Os Intelectuais e a Sociedade, Thomas Sowell, um dos maiores pensadores contemporâneos, escreve como as consideradas “elites intelectuais” se relacionam com a sociedade e como suas ideias e conceitos podem ser totalmente desconectados da realidade prática das pessoas. No capítulo “Os intelectuais e a Justiça”, Sowell discorre sobre esse perigoso ativismo judicial e os “ungidos”, como ele mesmo descreve, magistrados que por meio de palavras complicadas extrapolam os limites de sua jurisdição e tentam inocular ideias erradas. De acordo com Sowell, os julgadores ungidos são pessoas que se consideram intelectuais no campo jurídico.

Eles se acham no direito de ditar o que é melhor para a sociedade mesmo não tendo sido eleitos para isso.

Vivemos tempos de pura animosidade no campo político no Brasil. Certamente os anos (e frutos!) da operação Lava Jato seguidos da última eleição presidencial colaboraram para isso, mexendo em engrenagens em Brasília acostumadas com o silêncio da sociedade brasileira. O ativismo de cortes como o STF, que vem tentando legislar sobre o aborto, que censura veículos da imprensa, que age em prerrogativas do Executivo e do Legislativo, que se ocupa de discussões acaloradas e muito “importantes” para o Brasil sobre cigarros com sabor e sacolas de plástico em supermercados, tem de ser extirpado e a corte cobrada, diariamente, sobre os limites de suas atribuições.

Na última terça-feira, Chad Bianco, um xerife da cidade de Riverside, aqui na Califórnia, anunciou que não aplicará a ordem de “permanência em casa” dada pelo governador Gavin Newson, que, entre outras ordens executivas, mandou multar e prender quem infringisse a determinação.

Nada de desobediência civil por parte de um policial, apenas a reafirmação de direitos salvaguardados pela Constituição.

Bianco, em uma reunião com o conselho de seu condado, reconheceu que qualquer perda de vidas é trágica e, mostrando os baixíssimos números de infectados e mortes na região, disse que a ordem do Estado forçou moradores a entrar em casa, fechou seus negócios. Ele declarou que se recusaria a algemar ou tornar criminosos proprietários de empresas, mães solteiras e indivíduos saudáveis por exercer seus direitos individuais: “Não pode haver um novo normal. Em nome de uma crise de saúde pública, nossas liberdades civis e proteções constitucionais foram suspensas. Qualquer nova normalidade imposta sem leis é um ataque direto aos direitos básicos de um país que foi formado pelas liberdades fundamentais da vida, liberdade e busca da felicidade”.

Tristeza maior é ver, em contraste com atos heroicos da proteção de direitos civis como o do xerife, as lamentáveis cenas de trabalhadores no Brasil sendo algemados pelo crime de tentar trabalhar, já que o ganha-pão da manhã de muitos é que paga o jantar da família à noite.

Se há algo que une democratas e republicanos nos Estados Unidos é o respeito quase religioso à Constituição e aos limites dos poderes. A transformação do STF nos últimos anos é preocupante. Quanto mais interpretação livre do texto constitucional pela última instância, quanto mais liberdade para atuar fora de sua esfera e quanto maior o silêncio da mais alta corte do país quando leis são criadas por prefeitos e governadores, cerceando nossos direitos fundamentais, mais risco corremos. Contra o ativismo ou o silêncio judicial, a letra fria da lei e nossa vigília diária. É a última garantia para nossas liberdades.
Título e Texto: Ana Paula Henkel, Revista Oeste, nº 7, 8-5-2020

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