O STF não apenas desafia os limites de suas
atribuições, mas fere a Constituição e, consequentemente, todos nós
Ana Paula Henkel
No famoso dicionário americano
Webster, o termo “ativismo judicial” aparece da seguinte maneira: “Prática no
Judiciário de proteger ou expandir direitos individuais por meio de decisões
que se afastam de precedentes estabelecidos ou são independentes ou opõem-se a
supostas intenções constitucionais ou legislativas”.
O termo “ativismo” é usado
tanto na retórica política quanto na pesquisa acadêmica. No uso acadêmico,
ativismo geralmente significa apenas a disposição de um juiz para derrubar a
ação de um governo com o qual não se identifique, porém com base em precedente
judicial. Assim, o juiz reforça as próprias opiniões recorrendo a preceitos
constitucionais ou a decisões anteriores impetradas por tribunais. Por essa
ótica, o ativismo pode não ser considerado pejorativo, e estudos sugerem que
não tem uma valência política consistente.
Na retórica política, no
entanto, o ativismo judicial não é apenas um termo ruim, é uma ação nociva.
Descrever os juízes como ativistas nesse sentido é argumentar que eles decidem
casos com base nas próprias preferências políticas, em vez de seguir uma
interpretação fiel da lei. Abandonam o papel judicial imparcial e acabam
“legislando da bancada”. As decisões podem ser rotuladas de ativistas por
derrubar uma ação legislativa ou executiva ou por permitir que uma medida
anticonstitucional se estabeleça. Eu sei, essa descrição soa familiar demais.
Nos Estados Unidos, um dos
casos mais conhecidos e polêmicos sobre o ativismo do Judiciário, até hoje
centro de intermináveis batalhas políticas e protestos pelo país, é a decisão
da Suprema Corte norte-americana no processo Roe versus Wade. Em 1969, Norma
McCorvey ficou grávida de seu terceiro filho, mas decidiu não ter o bebê. Na
época, a lei do Texas só permitia o aborto em casos de estupro, incesto ou para
salvar a vida da mãe. Ela chegou a ser aconselhada por suas amigas a afirmar falsamente
que havia sido estuprada, mas não existia nenhum relatório da polícia para
apoiar essa alegação. Então McCorvey tentou fazer um aborto ilegal, mas logo
descobriu que as autoridades tinham fechado a clínica.
Depois de visitar um advogado,
“Jane Roe” (nome fictício usado para proteger a identidade da requerente, Norma
McCorvey) decidiu entrar com uma ação federal contra o distrito de Dallas,
Texas, pela impossibilidade de realizar o aborto. O caso foi parar na Suprema
Corte e, numa decisão histórica, os magistrados esticaram e usaram a Décima
Quarta Emenda Americana, que protege, entre outros pontos, o direito à
privacidade.
A corte entendeu que
ali caberia uma “interpretação” de que a emenda também protegia a liberdade e a
privacidade de uma mulher grávida de optar por um aborto sem a restrição do
governo.
Antonin Scalia, um dos mais
respeitados juízes da Suprema Corte dos EUA, falecido em 2016, era categórico
quanto ao papel das cortes e tribunais para a manutenção de democracias
saudáveis e dos pilares do império da lei e da ordem. “Enquanto juízes mexerem
na Constituição para ‘fazer o que as pessoas querem’ em vez do que o documento
realmente comanda, os políticos que escolherem e confirmarem os novos juízes,
naturalmente, quererão apenas aqueles que concordam com eles politicamente. A
Constituição não é um documento vivo, é um documento legal”, dizia Scalia,
certamente um norte na América até hoje no que diz respeito a prerrogativas e
limites de cada poder.
Os tempos andam meio
estranhos no Brasil quando o assunto é esse tal de ativismo judicial.
Nosso sistema de freios e
contrapesos parece sempre capengar às exaustivas tentativas e ações das garras
de membros do Judiciário, que já há algum tempo insistem em estender suas
funções às mesas do Executivo e do Legislativo. Nosso Supremo Tribunal Federal,
a casa que deveria salvaguardar as linhas da Constituição, sempre flerta com
temas de interesse político que são configurados para debates nas casas
legislativas e vem interferindo em decisões constitucionalmente salvaguardadas
ao Executivo. Nesse perigoso ativismo judicial, a Suprema Corte não apenas
desafia os limites das atribuições expressas pela Carta Magna, mas fere a
Constituição e, consequentemente, todos nós.
No espetacular livro Os
Intelectuais e a Sociedade, Thomas Sowell, um dos maiores pensadores
contemporâneos, escreve como as consideradas “elites intelectuais” se
relacionam com a sociedade e como suas ideias e conceitos podem ser totalmente
desconectados da realidade prática das pessoas. No capítulo “Os intelectuais e
a Justiça”, Sowell discorre sobre esse perigoso ativismo judicial e os
“ungidos”, como ele mesmo descreve, magistrados que por meio de palavras
complicadas extrapolam os limites de sua jurisdição e tentam inocular ideias
erradas. De acordo com Sowell, os julgadores ungidos são pessoas que se
consideram intelectuais no campo jurídico.
Eles se acham no
direito de ditar o que é melhor para a sociedade mesmo não tendo sido eleitos
para isso.
Vivemos tempos de pura
animosidade no campo político no Brasil. Certamente os anos (e frutos!) da
operação Lava Jato seguidos da última eleição presidencial colaboraram para
isso, mexendo em engrenagens em Brasília acostumadas com o silêncio da
sociedade brasileira. O ativismo de cortes como o STF, que vem tentando
legislar sobre o aborto, que censura veículos da imprensa, que age em
prerrogativas do Executivo e do Legislativo, que se ocupa de discussões
acaloradas e muito “importantes” para o Brasil sobre cigarros com sabor e
sacolas de plástico em supermercados, tem de ser extirpado e a corte cobrada,
diariamente, sobre os limites de suas atribuições.
Na última terça-feira, Chad
Bianco, um xerife da cidade de Riverside, aqui na Califórnia, anunciou que não
aplicará a ordem de “permanência em casa” dada pelo governador Gavin Newson,
que, entre outras ordens executivas, mandou multar e prender quem infringisse a
determinação.
Nada de
desobediência civil por parte de um policial, apenas a reafirmação de direitos
salvaguardados pela Constituição.
Bianco, em uma reunião com o
conselho de seu condado, reconheceu que qualquer perda de vidas é trágica e,
mostrando os baixíssimos números de infectados e mortes na região, disse que a
ordem do Estado forçou moradores a entrar em casa, fechou seus negócios. Ele
declarou que se recusaria a algemar ou tornar criminosos proprietários de
empresas, mães solteiras e indivíduos saudáveis por exercer seus direitos
individuais: “Não pode haver um novo normal. Em nome de uma crise de saúde
pública, nossas liberdades civis e proteções constitucionais foram suspensas.
Qualquer nova normalidade imposta sem leis é um ataque direto aos direitos
básicos de um país que foi formado pelas liberdades fundamentais da vida,
liberdade e busca da felicidade”.
Tristeza maior é ver, em
contraste com atos heroicos da proteção de direitos civis como o do xerife, as
lamentáveis cenas de trabalhadores no Brasil sendo algemados pelo crime de
tentar trabalhar, já que o ganha-pão da manhã de muitos é que paga o jantar da
família à noite.
Se há algo que une democratas
e republicanos nos Estados Unidos é o respeito quase religioso à Constituição e
aos limites dos poderes. A transformação do STF nos últimos anos é preocupante.
Quanto mais interpretação livre do texto constitucional pela última instância,
quanto mais liberdade para atuar fora de sua esfera e quanto maior o silêncio
da mais alta corte do país quando leis são criadas por prefeitos e
governadores, cerceando nossos direitos fundamentais, mais risco corremos.
Contra o ativismo ou o silêncio judicial, a letra fria da lei e nossa vigília
diária. É a última garantia para nossas liberdades.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, Revista Oeste, nº 7, 8-5-2020
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