Para facilitar chamemos-lhe
Balram. A memória já não é o que era e, assim como assim, sempre serve de
homenagem ao extraordinário Tigre Branco, de Aravind Adiga, vencedor do Man
Booker Prize de 2008 que me viajava na mala. Para trás tinham já ficado Delhi,
Jodhpur, Jaipur e Udaipur. Ainda faltavam Goa, Cochim, Kerala e todo o Tamil
Nadu. E tanto que haveria para contar sobre os encantos perdidos do Tamil Nadu.
Mas não há tempo nem espaço para mais divagações. Eu tinha chegado a Mumbai de
manhã e o meu avião saía por volta da meia-noite. Tinha um longo e pastoso dia
pela frente e nenhum hotel onde cair morto. "Todo vestido bonitinho e sem
nenhum lugar para ir, todo vestido bonitinho e não tenho onde cair",
diriam os Blitz. Adiante que divago outra vez e essa é outra história, esse é
outro continente.
Convenhamos que não é todos os
dias que se passa por Mumbai e eu não fazia qualquer tenção de passar 20 horas
no aeroporto. A solução acabou por impor-se com toda a naturalidade. A solução
acabou por ser Balram que contratei, entre dezenas de taxistas solícitos, para
me guiar durante todo o dia. A cidade, sabem-no já, é gigantesca, caótica,
fascinante de tão absurda. O trânsito, frenético. Há gralhas por todo o lado.
Ou serão corvos? Ao fim de meia dúzia de horas, com as portas da Índia e os
restos do tiroteio no Taj no bucho, Balram era já, para todos os efeitos, um
amigo e um velho conhecido. Senhor de um sorriso afável, trato irrepreensível,
30 e poucos anos, casado, pai de uma criança de 6, vivia desde sempre em
Mumbai, princípio e fim do seu universo. Não sei ao certo como é que a conversa
foi ali parar. Devo ter-lhe perguntado pelo filho. Talvez tivesse já afogado em
saudades do meu. Eram, afinal de contas, seis anos tão iguais e tão distantes.
Deve ter-me respondido que não o via há seis meses. "Seis meses? Mas ele
não vive consigo?". Viver, vivia. Mas durante a high season Balram não se
dava ao luxo de atravessar a cidade para ir dormir a casa. Bem vê que eram duas
ou três horas no trânsito. Bem vê que não podia perder uma corrida. Bem vê que
o táxi fazia perfeitamente as vezes de lar. O sorriso, sempre o sorriso, não o
deixava mentir. Seis meses. A guiar sem parar, passando de fugida pelas brasas,
dormindo num ápice, entre um freguês e o próximo. Sem desfalecer. Sem
queixumes. Seis meses.
Acho que foi naquele dia
interminável e sufocante de Mumbai que percebi de vez que tudo isto não ia dar
coisa boa. Qual Economist, qual carapuça. Não há nada como uma aula prática de
globalização. Balram (sobre)vive a uma dúzia de horas de Lisboa. Dispensou
metade da infância do filho para juntar mais umas rupias. Vá lá saber-se para
que lhe servem. Nem por isso perde o sorriso, nem por isso deixa de respirar
otimismo, nem por isso esconde o orgulho. "A vida é muito melhor
agora."
Na minha cidade, tão longe e
tão perto, trabalhamos 40 horas por semana e os sindicatos chamam
"trabalho escravo" ao aumento de meia hora de trabalho diário
proposto pelo Governo.
Título e Texto: Pedro Norton, Visão, 15-12-2011
Título e Texto: Pedro Norton, Visão, 15-12-2011
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