segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Aula prática de globalização

Pedro Norton

Para facilitar chamemos-lhe Balram. A memória já não é o que era e, assim como assim, sempre serve de homenagem ao extraordinário Tigre Branco, de Aravind Adiga, vencedor do Man Booker Prize de 2008 que me viajava na mala. Para trás tinham já ficado Delhi, Jodhpur, Jaipur e Udaipur. Ainda faltavam Goa, Cochim, Kerala e todo o Tamil Nadu. E tanto que haveria para contar sobre os encantos perdidos do Tamil Nadu. Mas não há tempo nem espaço para mais divagações. Eu tinha chegado a Mumbai de manhã e o meu avião saía por volta da meia-noite. Tinha um longo e pastoso dia pela frente e nenhum hotel onde cair morto. "Todo vestido bonitinho e sem nenhum lugar para ir, todo vestido bonitinho e não tenho onde cair", diriam os Blitz. Adiante que divago outra vez e essa é outra história, esse é outro continente.

Convenhamos que não é todos os dias que se passa por Mumbai e eu não fazia qualquer tenção de passar 20 horas no aeroporto. A solução acabou por impor-se com toda a naturalidade. A solução acabou por ser Balram que contratei, entre dezenas de taxistas solícitos, para me guiar durante todo o dia. A cidade, sabem-no já, é gigantesca, caótica, fascinante de tão absurda. O trânsito, frenético. Há gralhas por todo o lado. Ou serão corvos? Ao fim de meia dúzia de horas, com as portas da Índia e os restos do tiroteio no Taj no bucho, Balram era já, para todos os efeitos, um amigo e um velho conhecido. Senhor de um sorriso afável, trato irrepreensível, 30 e poucos anos, casado, pai de uma criança de 6, vivia desde sempre em Mumbai, princípio e fim do seu universo. Não sei ao certo como é que a conversa foi ali parar. Devo ter-lhe perguntado pelo filho. Talvez tivesse já afogado em saudades do meu. Eram, afinal de contas, seis anos tão iguais e tão distantes. Deve ter-me respondido que não o via há seis meses. "Seis meses? Mas ele não vive consigo?". Viver, vivia. Mas durante a high season Balram não se dava ao luxo de atravessar a cidade para ir dormir a casa. Bem vê que eram duas ou três horas no trânsito. Bem vê que não podia perder uma corrida. Bem vê que o táxi fazia perfeitamente as vezes de lar. O sorriso, sempre o sorriso, não o deixava mentir. Seis meses. A guiar sem parar, passando de fugida pelas brasas, dormindo num ápice, entre um freguês e o próximo. Sem desfalecer. Sem queixumes. Seis meses.

Acho que foi naquele dia interminável e sufocante de Mumbai que percebi de vez que tudo isto não ia dar coisa boa. Qual Economist, qual carapuça. Não há nada como uma aula prática de globalização. Balram (sobre)vive a uma dúzia de horas de Lisboa. Dispensou metade da infância do filho para juntar mais umas rupias. Vá lá saber-se para que lhe servem. Nem por isso perde o sorriso, nem por isso deixa de respirar otimismo, nem por isso esconde o orgulho. "A vida é muito melhor agora."
Na minha cidade, tão longe e tão perto, trabalhamos 40 horas por semana e os sindicatos chamam "trabalho escravo" ao aumento de meia hora de trabalho diário proposto pelo Governo.
Título e Texto: Pedro Norton, Visão, 15-12-2011

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