Roberto Romano
Jean-Pierre Faye, lingüista e
autor de fina análise do discurso totalitário, mostra a troca e a circulação
das palavras nas formas ideológicas. Termos gerados no uso social da direita no
espectro político não raro integram falas e textos da esquerda.
O contrário também ocorre com
freqüência. Ao trânsito de vocábulos ou slogans Faye chama "ferradura
ideológica", a qual prende as falas no itinerário sinistro cujo fim é a
perda de sentido lógico ou ético. A expressão "nacional-bolchevismo",
cunhada para acolher um movimento que pretendia unir elementos do fascismo e do
comunismo, mostra à saciedade a pertinência da proposta elaborada por Faye (no
livro Linguagens Totalitárias).
As expressões verbais enunciam
sentimentos, raciocínios, verdades ou mentiras. A dissimulação dos corpos se
amplia nos artifícios retóricos e surgem os que ludibriam e os enganados. O
realismo político define-se como arte de tratar com má-fé a própria mente para
depois iludir os tolos com mágica oracular. Instalados no poder, os truculentos
costumam ser francos entre seus pares, camaleões ou raposas diante da massa
humana que os aplaude ou apupa. Na praça eles defendem nobres ideais, mas nos
palácios empregam a tortuosa razão de Estado.
Nuclear na ética, a
consciência nos conduz acima das feras, orienta a razão, que sem ela ignora a
diferença entre o bem e o mal (Rousseau). A sua expulsão da ordem política
deveria prevenir os que hoje se alimentam do poder concedido pelas urnas.
Recordemos: "Às favas, sr. presidente, neste momento, todos os escrúpulos
de consciência". Assim falou o ministro do Trabalho e da Previdência
Social na edição do AI-5, em 1968. Comprovando o itinerário proposto por Faye,
parte da esquerda brasileira assume atitude idêntica e joga hoje no lixo a
consciência. Ela trairia um falso moralismo. Nos extremos ideológicos a recusa
da consciência se arrima na saluspopuli, outro item da ardilosa razão de
Estado.
Como agem os que, no poder,
ironizam quem ainda sente o que os gregos chamavam aidós, ou seja, vergonha de
praticar coisas erradas? Eles começam desacreditando a consciência ética. Como
não sentem rubor, dizem que a política não se faz sem colocar as mãos na
torpeza (uso ignaro das teses enunciadas por Sartre, o autor de As Mãos Sujas).
Cena feita, em réplica à luta pela moralidade no Brasil, um realista afirmou
que apelar para a noção de consciência era algo irrelevante e ridículo.
Mengele, escreveu ele, também possuía consciência. A mesma pessoa afirmou rir
às escancaras quando escuta alguém invocando a consciência como critério de
ação e juízo. As vítimas de Mengele não riram, com certeza, diante de seus atos
e palavras. Nem as vítimas das ditaduras que amestraram o Brasil no século 20.
Com a zombaria os realistas
(no poder ou na sarjeta, não raro os dois lugares se confundem) sempre usam
aspas para desqualificar quem ainda não se deixou prender pelo cinismo ou pela
tibieza. Aspas foram inflacionadas na propaganda fascista, nazista e comunista.
É preciso arrancar um indivíduo da vida pública? Aspas no seu nome, em seus
títulos, nacionalidade, condição humana!
Victor Klemperer, outro
estudioso que observou técnicas fascistas da fala, nota o uso das aspas no
extermínio dos que desafiam oficialismos. "A língua do Terceiro Reich tem
horror da neutralidade, porque ela sempre precisa de um adversário e sempre
precisa derrubar este adversário." Se os revolucionários espanhóis têm uma
vitória, se possuem oficiais ou um quartel-general, eles são ditos "vitoriosos"
ou "oficiais". A mesma regra foi usada contra os russos que teriam
uma "estratégia". A Iugoslávia teria um "marechal", Tito.
Chamberlain, Churchill, Roosevelt eram "estadistas"; Einstein, um
"pesquisador científico"; Rathenau, "um alemão"; e Heine,
escritor "alemão".
O uso das aspas, para expor os
inimigos ao ridículo, generalizou-se no fascismo de tal modo, diz Klemperer,
"que nenhum artigo de jornal ou discurso impresso deixava de estar delas
apinhado (...). As aspas pertencem tanto à língua impressa do Terceiro Reich
quanto à entoação de Hitler e Goebbels, elas são intrínsecas às duas"
(LTI: Lingua Tertii Imperii). É bom recordar tais frases quando militantes e
teóricos do poder usam aspas para desqualificar seus críticos. O mais comum na
língua do governismo brasileiro é escrever que a corrupção imaculada não é
aceita pelos "ditos intelectuais". Semelhante tática eivada de
misologia mostra que de libertário e democrático o discurso e a prática nada
têm.
Outro vezo fascista era negar
aos intelectuais de certa origem (racial, política, ideológica, religiosa) os
títulos acadêmicos. Quando as aspas se mostravam insuficientes, era proibido
nomear alguém (professores, médicos, advogados juízes em desgraça) segundo os
seus diplomas universitários. Os judeus foram os mais humilhados. Mas a técnica
foi aplicada a outros inimigos do Reich (Bruno Bettelheim, The Informed Heart: the Human Condition in Modem Mass Society). O
método não vicejou apenas entre os fascistas de direita. Os da esquerda também
usaram aspas para desacreditar inimigos. As formas de governo liberais eram
ditas "democráticas", os professores não ortodoxos em termos de
stalinismo eram "intelectuais", etc. Comunhão negra dos nada santos
militantes, diria Merleau- Ponty. A técnica da desqualificação é a mesma,
porque é o mesmo estilo de fazer política: aniquilar quem pensa diferente. Tal
é a regra dos que agora ovacionam os palácios brasilienses.
Quando Stalin discursava, era
proibido interromper os aplausos. Quem parasse primeiro era julgado inimigo do
povo. As mãos dos companheiros ficavam inchadas, quentes e doloridas. O
problema resolveu-se com funcionários no fim da sala carregando baldes de água
fria. Haja gelo para acalmar a fúria bajulatória dos que seguem os poderosos de
plantão!
Título e Texto: Roberto Romano, Defesanet,
10-03-2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-