Artigo de Helena Matos no Diário Económico:
O discurso que Cavaco Silva
devia fazer a 25 de abril
Em primeiro ligar quero pedir desculpa aos portugueses por ter sido eleito.
Não é possível que milhares e milhares de portugueses me tenham dado o seu voto quando há tanto poeta, sociólogo, jornalista, actor, militar e arquitecto de esquerda a dizer que eu não os represento.
Na verdade eu represento um
País que a esquerda magnanimamente tolera. Um País que faz falta para que a
esquerda possa governar em democracia. Pois apesar da imensa superioridade das
teses revolucionárias, solidárias e resistentes da esquerda, este regime de
partidos em que vivemos implica a existência de oposição. Mas uma oposição que
saiba ser oposição. Ou seja que se adeque ao seu papel de oposição e assim
sirva para confirmar a superioridade moral e intelectual da esquerda que é quem
natural e constitucionalmente deve governar.
Inadvertidamente às vezes os
líderes da não esquerda têm o topete de ir além desse seu papel histórico - eu
mesmo padeci dessa ousadia - e ganham as eleições. Ou, igualmente contra
natura, ocupam altos cargos em instâncias internacionais. Ora, senhores, como
bem se tem visto, quando tal acontece perdemos todos: os líderes da oposição
tolerada perdem aquele ambiente de simpática condescendência com que os
brindais. Vossas Excelências perdem por momentos os lugares que são Vossos por
direito natural - como esquecer que tantos dos Vossos irmãos já andaram ao lado
do dr. Afonso Costa a explicar por métodos directos aos ultramontanos, aos
reaccionários, aos monárquicos e aos jesuítas (os jesuítas daquele tempo não eram
como os de agora que em hora bendita Vós já haveis apadrinhado!) esta ordem
natural dos factos e sobretudo esta ordem natural de Portugal.
Porque a primeira regra a
saber sobre Portugal é que aqui não se distingue o País de quem o governa e por
isso os factos ora são valorizados ora depreciados consoante a cor do regime. E
em boa verdade só nos podemos orgulhar quando a esquerda governa e do que a
esquerda aprova: do fado à recuperação económica, do cozido ao futebol, o País
só é motivo de orgulho quando a esquerda lhe põe o visto "Aprovado".
Até lá não existe e se existe é fascista. Ou, numa versão mais benemérita,
atávico e ignorante.
Quarenta anos depois do 25 de
Abril a não esquerda deve aceitar com alegria o seu papel de legitimadora do
poder. E sobretudo as almas conservadoras como a minha vêem-se obrigadas a
pedir à esquerda que governe, que governe mesmo quando perder e, acrescento eu,
após anos de experiência, sobretudo quando perder. Porquê? Porque só assim se
podem salvar as instituições. Veja-se a transformação desta mesma Assembleia da
República de centro da democracia em espaço cercado, depreciado e onde entre
correrias de polícias e sindicalistas, cantorias e gritos, todos os dias somos
confrontados com este dilema: ou a esquerda volta rapidamente ao poder ou este
parlamento acabará completamente desprestigiado.
Não duvido que mal volte ao
poder "quem de lá nunca deveria ter saído" não mais haverá qualquer
tolerância para aqueles que ousarem tais performances. O mesmo se passará com
tantos outros problemas - o flagelo da emigração voltará a ser a mais-valia da
diáspora; os escritores voltarão a fazer discursos redondos quando receberem os
respectivos prémios; as confederações falarão baixinho que o respeitinho é
muito bonito; a fome tornar-se-á um desajustamento alimentar resultante das
assimetrias induzidas no lar pelas questões de género e acentuadas pela
proliferação do ‘fast-food'. E sobretudo, senhores, a Presidência da República,
que me obstino em ocupar, apesar de tantos de vós tão oportunamente me dizerem
que a devo deixar, voltará a ser tratada com o respeito republicano que lhe é
devido.
Caros senhores, quarenta anos
depois do 25 de Abril estamos politicamente no Verão de 1975: a legitimidade
das urnas é inferior à da rua e à dos estúdios de televisão?
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 15-04-2014
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