José Manuel Fernandes
Ferro Rodrigues, o socialista
que António Costa escolheu para colocar à frente do grupo parlamentar, teve
ontem uma daquelas prestações que simbolizam todo a arrogância e imobilismo de
uma esquerda que se julga moralmente superior aos restantes mortais. De facto,
como classificar a sua sugestão de que o Presidente da República só poderia
falar de reformas do sistema político se antes fizesse a sua autocrítica? E
como avaliar a sua sentença de que em Portugal nunca houve problemas de
governabilidade, ele que chegou a líder do PS porque o anterior líder se
demitiu por causa do “pântano”? E que dizer de alguém que acha que a
crise actual é só uma “crise de confiança” provocada pela
situação internacional?
A reacção do novo líder
parlamentar do PS ao discurso presidencial no 5 de Outubro é bem o símbolo do
que nunca acontecerá: enquanto esta geração de dirigentes socialistas, que se
sente dona do regime e a sua única referência, continuar a ter a influência que
tem, não haverá em Portugal compromissos. Eles só aceitam rendições. E só
aceitam a rendição de quem eles mesmos aprovam, pois não devemos esquecer que
António Costa até já se deu ao luxo de dizer que líder queria para o PSD,
quando o PSD regressar à oposição.
É preciso entender esta
mentalidade para perceber por que razão é e continuará ser muito difícil fazer
compromissos em Portugal. Não é o único motivo (já irei aos outros), mas
continua a ser um motivo determinante.
Há nesta atitude algo de
cultural e algo de herança política. O lado cultural é comum à maior parte da
esquerda e radica na ideia de que esta democracia não é a democracia de todos,
mas a democracia do seu “25 de Abril” e da sua Constituição. O nosso regime não
é visto como um regime aberto onde ideias diferentes disputam a preferência dos
eleitores, mas como um regime apenas aberto a quem aceitar um determinado
modelo de estado social, inquestionável mesmo quando evidentemente
insustentável. E a quem aceitar igualmente que há árbitros do que se pode ou
não fazer, a que chamam carinhosamente “pais” – há os “pais” da Constituição, o
“pai” do SNS, só não há “pai” da escola pública porque a mais importante lei de
bases foi aprovada (por unanimidade) na época de um governo de Cavaco.
O lado da herança política
podemos radicá-lo na I República e nas práticas do partido de Afonso Costa, na
forma como ele impôs a sua hegemonia ao definir linhas “intangíveis” que não
podiam ser cruzadas – quem duvide que leia, ou releia, “A República Velha”, de
Vasco Pulido Valente, e recorde como a lei da Separação do Estado e das Igrejas
se transformou na intangível. O consulado de José Sócrates levou
estas táticas aos limites, e há no PS muita saudade, assumida ou envergonhada,
desses tempos e dessa agressividade do “ou estão comigo, ou estão contra a
democracia”.
Mas há mais dois motivos
políticos para um compromisso entre os maiores partidos ser tão difícil em
Portugal. O primeiro desses motivos é os nossos partidos não terem programas
que, de alguma forma, representem sectores diferenciados da sociedade. Querem
todos ser partidos das classes médias, dos funcionários públicos, dos
pensionistas, dos jovens. Se às vezes dizem que são partidos de trabalhadores,
logo a seguir reclamam as suas credenciais como promotores do investimento
privado e dos empresários “inovadores”.
O resultado é fácil de
verificar: estes partidos vivem de promessas, não vivem de programas. No dia em
que fazem compromissos com quem está no poder, deixam de poder fazer promessas.
Isso já aconteceu com o PSD, isso acontece sempre com o PS. O facto de, depois
de conquistado o poder, fazerem muitas das coisas que antes vilipendiaram
parece não os incomodar demasiado, pois contam sempre com a benevolência dos
incautos.
Em países como a Alemanha, a
Dinamarca ou a Holanda, para citar apenas três exemplos, as diferenças
ideológicas entre os partidos de centro-esquerda e os de centro-direita são por
vezes mais marcadas do que as existentes entre o nosso PSD e o nosso PS (e
poupam-me, por favor, à lengalenga do neoliberalismo do actual PSD, pois só
espero para me rir do neoliberalismo de Costa e recordo-me bem de como
criticaram o neoliberal Sócrates…). No entanto nesses países é possível fazer
compromissos e coligações, com cedências de parte a parte. É isso que em
Portugal parece ser impossível de alcançar.
Mas há mais, e esse mais tem a
ver com os dilemas que dilaceram a esquerda. Quando António Costa apareceu no I
Congresso do Livre, repetiu a ladainha do costume – “A direita facilmente se junta, a esquerda facilmente se divide” – não está a
dizer nada de substancial, pois os dilemas da esquerda actual não têm apenas a
ver com as heranças da radical separação entre os que lutaram pela democracia e
os que lutaram por uma nova ditadura há 40 anos. Têm antes a ver com os que,
mesmo a contragosto, aceitam governar em tempos sem sonhos e os que se recusam
a gerir sociedades que não são como as que eles idealizaram.
Toda a esquerda tem hoje um
mesmo problema: não tem programa para um tempo em que o crescimento económico é
baixo, a demografia é um pesadelo e o dinheiro deixou de estar onde costumava
estar. Enquanto foi possível ir subindo os impostos, havia dinheiro para o
voluntarismo social-democrata. Quando deixou de ser possível aumentar mais os
impostos, os empréstimos e a dívida permitiram manter esse voluntarismo, mas
sem o entusiasmo de outrora. Quando também esse dinheiro acabou, a esquerda
ficou sem forma de aplicar os seus programas, e por toda a Europa a única
alternativa que encontrou foram as causas marginais, o que também ajudou a que
em muitos países se desligasse das suas bases populares.
Nada disto comove os utópicos
de todas as gerações, nem gerações de revolucionários aburguesados no dia-a-dia
mas radicalizados no discurso e nas frustrações. É por isso que o problema do
PS não é um Livre, ou um Fórum Manifesto, pois o que lá não falta é gente com
vontade de se juntar ao PS, como já sucedeu tantas vezes no passado. O seu
problema também não são os irredutíveis da extrema-esquerda. O seu problema é
que essa esquerda utópica e lunática sempre esteve dentro do PS, sempre
complicou a vida ao PS, sempre limitou o pragmatismo dos seus líderes e sempre
assustou os seus estrategas, receosos de que esse corpo indistinto de gente
“autenticamente de esquerda” se movesse para fora do espaço e do eleitorado do
partido, como de resto sucedeu quando Bloco conseguiu atrair uma parte desse
eleitorado.
É de tudo isto que se faz a
dificuldade de em Portugal se chegar a compromissos que envolvam o PS – até
porque o PS nem certos compromissos assume, como nunca assumiu o memorando de
entendimento com a troika. É por tudo isso que Cavaco Silva, mesmo estando a
discursar na Praça do Município, no fundo esteve a pregar num deserto.
Vamos precisar de um desastre
ainda maior do que aquele que vivemos com a quase-bancarrota para alguma coisa
mudar. E isto é ser optimista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-