Helena Matos
Um comerciante português, para mais
emigrado na Venezuela (ainda se fosse na Inglaterra pós-brexit) não tem perfil
para vítima. Pode ser assassinado e decapitado. Ninguém se indigna ou comove.
Decapitado. Com as mãos
cortadas. Antes estivera sequestrado. Mas não, ninguém se sentiu Carlos
Gouveia, era assim que se chamava este português de 42 anos, assassinado e
mutilado pelos seus sequestradores. Ninguém escreveu no facebook “Je suis
Carlos Gouveia”. Nem sequer o facto de as autoridades da Venezuela, país onde
Carlos Gouveia estava emigrado, terem enterrado secretamente o seu cadáver
suscitou qualquer indignação ou solidariedade com a sua família. Não houve velas
na porta da embaixada da Venezuela, não houve petições, não houve praticamente
notícias.
E contudo, nos dias em que
acontecia o calvário de Carlos Gouveia, não faltaram indignações e comoções em
Portugal. Com gatinhos abandonados. Com o facto de existirem matadouros,
touradas e pais que mostram os filhos no Facebook. Ou que não mostram os
filhos. Com o machismo, o micromachismo, o problema das casas de banho para os
transgender e as máquinas de venda automática de comida. Sem esquecer a
urgência em regulamentar os direitos dos robots e a denúncia das pressões para que as actrizes usem sapatos de
salto alto nas galas e festivais de cinema. Curiosamente as actrizes que agora
atiram com os sapatinhos ao ar como forma de protesto são as mesmas que durante
anos apareceram em todos os eventos (ou simplesmente na rua delas) em cima de
saltos vertiginosos. Mais contraditório ainda, ao mesmo tempo que decorria a
cruzada contra os sapatos de salto alto, quando usados por mulheres, também se
batiam palmas à corrida em saltos altos que tem lugar na marcha do Orgulho Gay
de Madrid. Porque nesse caso os saltos altos, a saber nos pés dos gays, são uma
forma de luta contra a homofobia. Fácil de entender, não é?
A isto juntou-se a indignação
contra os velhos porque estes terão votado a favor do Brexit em Inglaterra e
contra o Podemos em Espanha. (Mais uma votação assim e os velhos ainda acabam a
ver limitado o direito de voto!) E até um inócuo cartaz da Cruz Vermelha norte-americana a apelar a um comportamento cívico das crianças nas piscinas se tornou num caso de
racismo, com o cartaz a ser retirado, seguido dos inevitáveis pedidos de
desculpa porque os donos da indignação logo acharam que as crianças negras
estavam desfavoravelmente representadas face às crianças brancas.
Misteriosamente ninguém se indignou por não existirem asiáticos no cartaz ou se
interrogou sobre a confusão entre hispânicos e negros. Afinal os outros
racismos oficialmente não existem ou abordam-se na linha das “tradições
ancestrais” e das “questões culturais”.
Claro que também houve
indignações com mortes e prepotências. Mas devidamente seleccionadas e
enquadradas, claro. Veja-se o caso do fundamentalismo islâmico. É mais ou menos
inquestionável, desde que Obama chegou à Casa Branca, que os fundamentalistas
matam porque querem matar. Até aí matavam porque queriam protestar contra a
miséria, o poderio dos EUA em geral e Bush em particular.
Hoje assume-se que matam – o
que já é um avanço nas abordagens ao assunto – mas a sua violência é
piedosamente enquadrada no fanatismo a que a religião leva os homens. Não o
Islão mas sim as religiões no seu todo, pese a dificuldade de, por exemplo,
encontrarmos, nestes tempos, budistas ou católicos que matem em nome da sua
religião e ainda por cima sejam venerados por isso pelos demais praticantes e
líderes da sua fé. Na prática as mortes causadas pelos fundamentalistas
islâmicos só indignam quando os seus ataques, como aconteceu em Orlando, podem
ser apresentados como o resultado dos problemas do nosso mundo: estávamos
diante de um ataque homofóbico e não de um ataque terrorista. Agora nem uma
coisa nem outra porque quanto mais se sabe sobre o perfil do atacante, Omar
Mateen, menos os factos batem certo com o quadro possível das indignações do
“je suis”.
Poderia continuar a acumular
casos mas não creio que seja necessário. É óbvio que um comerciante português,
para mais emigrado na Venezuela (ainda se fosse na Inglaterra pós-brexit) não
tem perfil para vítima. Pode ser assassinado, decapitado, amputado, o seu
cadáver enterrado às escondidas da sua família… Não interessa. O seu destino
tal como o de milhares de portugueses que ali procuram sobreviver só
interessará no dia em que aqueles que têm o monopólio do exercício da
indignação integrem a Venezuela nos seus ódios. Afinal foi isso mesmos que
aconteceu com a denúncia da forma autocrática que caracteriza o exercício do
poder pelo MPLA, em Angola. Durante anos todos aqueles que relatavam o que
acontecia em Angola, alegadamente libertada, foram rotulados como
reaccionários, ressentidos e colonialistas. Agora andam num “tira e põe” de
t-shirts por Luaty Beirão! Daqui por alguns anos descobrirão a Venezuela e
então ninguém os ultrapassará na sua fúria e nas suas dores pela Venezuela.
Darão entrevistas por causa da Venezuela. Acusarão os demais de terem
interesses na Venezuela… Até lá nem uma palavra sobre a Venezuela.
Tudo isto é uma fantochada mas
é a nossa fantochada. Vivemos em perfeito desafasamento da realidade: os factos
não contam. Conta sim a percepção que nos é dada deles e que acriticamente não
só aceitamos como vivemos com assinalável fatalismo. Mais, aceitamos não só
viver a toque de caixa (e de notícias) dos profissionais da indignação como
aceitamos com resignação o facto de não se conseguir impor mais nada na agenda.
Em Portugal, a indignação está
há anos nas mãos da esquerda. O mais destravado dos temas ou a mais insólita
das causas saltam para a agenda se os líderes da esquerda o determinarem. Com a
vantagem acrescida de que depois ninguém lhes pede contas de nada. Lembram-se
de Foz Côa e dos mais que garantidos 300 mil turistas que iam visitar as
gravuras anualmente? Perguntem por eles agora àqueles que na época fizeram de
Foz Côa uma causa e logo verão que resposta levam. E as relevantíssimas
comissões de inquérito ao BPN e ao BES que, agora que está em causa a CGD, se
transformam em manobra desestabilizadora?
O exercício de agitprop é
primário mas talvez por isso funciona sempre. Basta ver como uma declaração
absolutamente inócua do ministro alemão das Finanças se transformou num caso.
Quando este disse um óbvio ululante semelhante às declarações de inúmeros
dirigentes portugueses, socialistas e afectuoso PR incluídos – “Portugal
estaria a cometer um erro enorme, se não cumprirem com os compromissos que
assumiram. Portugal teria então de pedir um novo resgate. Os portugueses não
querem um novo programa e eles também não precisam se cumprirem com as regras
europeias” – vimos ser montada à frente dos nossos olhos uma onda de indignação
que nem sequer dispensou uma patética nota do Ministério dos Negócios
Estrangeiros junto do governo alemão.
Dir-se-á que no passado não
foi muito diferente. Pois não. Só mudava o campo político que dominava este
exercício. Mas então teremos de admitir, ou terei eu de admitir, pois a ilusão
era minha, que a cultura de uma sociedade não altera muito (quiçá nada, mesmo)
a forma como vivemos este fenómeno. À bruteza e analfabetismo que
caracterizaram muito do século passado parece ter sucedido um infantilismo que
torna tudo ainda mais constrangedor. São os britânicos que depois de terem
partido para um referendo como quem vai para umas vulgares eleições constatam
que aquele resultado se iria traduzir em actos e, quais crianças, questionam:
era mesmo para valer? Não se pode repetir? Agora estou arrependido e quero votar
doutro modo… E é Portugal do je suis isto e aquilo à espera que lhe
digam qual é o próximo assunto/caso com que se deve emocionar. O destino de
Carlos Gouveia não está na agenda.
PS. Perante as imagens da
passada semana e das que chegarão na que está agora a começar aquele
lugar-comum sobre o aproveitamento por parte do Estado Novo das vitórias no
futebol vai deixar de ser comum e vai deixar de ser lugar, não vai?
Título e Texto: Helena Matos,
Observador,
3-7-2016
O caso trágico ocorrido com o cidadão lusitano Carlos Gouveia , narrado pela participante Sra Helena Matos, ocorre diariamente em diversos lugares no mundo, especialmente naqueles pontos sabidos de maior e constante conflito . Aqui no Brasil, nas capitais mais conhecidas com Rio e São Paulo , embora a decapitação não seja episódio corriqueiro , mata-se, ás vezes, mais que nos confrontos bélicos na Síria e em Bagdá.
ResponderExcluirE muitos se indignam , sim ! Protestam nas ruas, criticam as autoridades e criam ONGS e grupos de trabalho para coibir a violência...No mundo, centenas de pessoas são assassinadas/decapitadas como o sr. Gouveia, e também passam despercebidas, como se fossem "ninguém" . Contudo , não significa dizer que a trágica morte desse luso valha menos ou nada, em relação aos demais por este mundo afora.
Em um rápido retrospecto, os caminhos da globalização iniciando lá atrás nos anos oitenta, parece terem desencadeado uma corrida generalizada aos bens de consumo e tecnologia importados , a preços mais em conta . O intercambio cultural entre povos, facilidades de mão de obra e oportunidades de estudo entre as nações ; deu-se inicio a uma sensação de luta pela auto´proteção nos aborígenes dos países mais desenvolvidos - A luta pela sobrevivência e a manutenção dos empregos locais . Se muitos estrangeiros ingressam em um determinado Estado, aquilo põe em risco os que já lá vivem , que ainda assim tem dificuldades de se sustentar ; A entrada da enorme massa de refugiados em toda a Europa, fugidos das perseguições ( mais religiosas dos que políticas) , da fome , da guerra civil e outras mazelas, faz com que os habitantes locais pressionem seus governantes para frear aquilo que está colocando em risco o "ganha-pão" dos habitantes natos do lugar , digamos , "invadido" . Hoje em dia, todo o planeta está , de um modo geral, em ebulição . Fanáticos do ISIS recrutam jovens nas periferias das cidades onde nasceram, independente da nacionalidade . Soube-se de três brasileiros que aderiram e ingressaram no contingente desses extremistas psicopatas . É o ódio gerando mais ódio .
O pensamento gera sentimento, que gera ação ! Muitos o direcionam para o mal. Mas a natureza e o universo não ponderam nem tentam apaziguar. Vingam-se . Religiões à parte, a terceira lei de Newton é certa como a Física . Possivelmente o Grande Arquiteto Criador do Universo comandará , em algum momento o qual se desconhece, a mudança que tornará a Terra um lugar melhor para se viver . Talvez sobrem alguns exemplares vivos da espécie humana para reorganizar tudo em um futuro não muito distante . Quem sabe um ponto de mutação ?
Grande abraço em todos .
Sidnei Oliveira
Assistido Aerus - RJ
Apenas para corroborar o texto principal, foram 4 portugueses assassinado nas últimas semanas em Caracas, fora 2 jornalistas mortos em 2012
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