Rui Ramos
Para a esquerda politicamente correcta,
os trabalhadores e os pobres do Ocidente são hoje piores do que os “ricos”, uns
“maus selvagens” culpados pelo Brexit e por Trump.
Primeiro foi o Brexit, agora
Trump. De cada vez, vemos os vigilantes da correcção política recorrer ao mesmo
truque: inventar uma classe que no país em causa represente, segundo eles, um
estado primitivo da humanidade, e atribuir a essa classe toda a
responsabilidade pelo resultado. Quer no Reino Unido, quer nos EUA, esse papel
coube aos “brancos pobres” e às “classes trabalhadoras”. Teriam sido eles,
habitando paragens abandonadas pelo progresso (o norte de Inglaterra ou o “rust
belt” americano), que votaram Brexit ou que elegeram Trump. Mas porquê esta
fixação nos “brancos pobres”, quando sabemos que, por exemplo, a maioria dos
brancos qualificados também votou em Trump, assim como 3 em cada 10 “latinos”?
É um aspecto interessante
desta história. As “classes trabalhadoras” foram, em tempos, o sujeito da
história marxista. Mas o consumismo mostrou que estavam dispostas a
“aburguesar-se”, a revolução cultural dos anos 60 sugeriu que não eram a
vanguarda, e a desindustrialização dos anos 80 provou que não eram o futuro. A
elite progressista sentiu-se assim à vontade para as abandonar, trocando-as, na
era da globalização, por novos grupos em crescimento, como os imigrantes do
Terceiro Mundo ou os adeptos de modos de vida “alternativos”. A partir daí, as
“classes trabalhadoras” passaram a ser vistas como derrotadas da história e
desprezadas como o último refúgio de velhos preconceitos, nomeadamente o racismo
e a homofobia. Por isso, muita esquerda bem pensante não teve dúvida em as culpar pelo Brexit, tal como em França não terá dúvida em
as culpar por uma ida de Le Pen à segunda volta das presidenciais.
Nos EUA, é pior, porque há uma
antiga tradição de desprezo pelos brancos pobres, aqueles a quem as classes altas do “velho sul” chamavam “white trash”. Quem leu a novela To
Kill a Mockingbird de Harper Lee, notou certamente que a estima
paternalista pelos negros tem como contrapartida um horror truculento pelo
“white trash” — donde, aliás, é oriundo o vilão do livro. Para as classes
altas, os negros eram, enquanto serviçais, parte da casa ou da plantação. Os
brancos pobres viviam fora do seu controle, eram independentes, irreverentes e
perigosos. Em Go Set a Watchman, são identificados como a única
fonte de todos os maus sentimentos, especialmente o racismo. Agora, que
qualquer caricatura de uma minoria étnica é tabu, a estigmatização dos “brancos
não qualificados” continua a ser aceite: são “primitivos”, “trogloditas”,
“inferiores”.
A ênfase nas qualificações é
significativa. Mais do que o rendimento ou a ocupação, é agora a ausência de
instrução superior que define esse grupo na mitologia progressista. Para o
politicamente correcto, isto quer dizer que, em princípio, não foram
domesticados nas salas de aula e nas carreiras de maior prestígio, onde é
preciso ter as opiniões certas para passar no exame ou ser promovido. A falta
de um grau universitário é, por isso, o equivalente da falta de “consciência de
classe” no antigo marxismo. Tudo o que é mau para o progressismo deriva daí, como o Brexit.
Dir-me-ão que as minorias
étnicas também ofendem o politicamente correcto (basta pensar na misoginia e homofobia do hip hop). Só
que esses grupos desempenham um papel importante como “vítimas” no teatro
progressista da “culpa pós-colonial”. Por isso, ser a principal preferência
eleitoral dos latinos ou dos afro-americanos enaltece Clinton, mas ser votado
pelos “brancos não-qualificados” apenas demonstra o horror de Trump.
Para a esquerda politicamente
correcta, os trabalhadores e os pobres do Ocidente, heróis dos velhos romances
do “realismo socialista”, tornaram-se uma espécie de “maus selvagens”, piores
do que os “ricos” e o “1%”: não apenas culpados pelo Brexit ou por Trump, mas a
prova decisiva de que o Brexit e Trump são maus. Hoje, os gaibéus de Alves
Redol seriam todos fascistas.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
11-11-2016
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