João Pereira Coutinho
Existem esquecimentos
imperdoáveis: leio o The New York Review
of Books e encontro ensaio de Joan Acocella. Sobre Stefan Zweig. Quem?
Precisamente. Zweig é hoje uma relíquia literária, própria de colecionadores.
Injusto, claro. Nasceu em Viena, corria 1881. Faleceu em 1942, no exílio
brasileiro, suicidando-se com a mulher em Petrópolis. Mas, para um ator abundantemente
lido e respeitado na primeira metade do século XX, a pior morte foi a segunda.
A pior morte é sempre a segunda. Quem, hoje, lê ou relê Zweig?
Joan Acocella tem alguma
razão: Zweig nasceu no ano errado. Como, de certa forma, o inultrapassável P. G.
Wodehouse. Falo de 1881. O ano de James Joyce, Virginia Woolf, Pablo Picasso. O
ano em que os modernistas chegavam ao mundo, prontos para transformar
radicalmente a herança clássica, leia-se ‘burguesa’, do século XIX. Zweig
manteve-se: na narrativa, no tom, no gravitas
tipicamente Mitteleuropa, um estranho
no seu século estranho. Lido por milhões? Traduzido em todas as línguas
possíveis ou imagináveis? A crítica highbrow
não se comove com o fato. Literatura não é matemática.
Sim, não é. Mas o esquecimento
de Zweig também não será propriamente virtude. Acocella lembra Beware of Pity, o romance agora
relançado nos Estados Unidos e que me rachou a cabeça ao meio pela sutileza do
tema: um jovem soldado envolve-se romanticamente com Edith, uma donzela
caprichosa e fisicamente mutilada. Envolve-se por pena. Por compaixão. Ou, como
diria o poeta, por gentileza. E, também por gentileza, acabará por perder a
vida: a vida de Edith e, de certa forma, a sua própria também. A história é
convencional, na estrutura e no tom.
Não é convencional ao revelar
como o amor do soldado existe sobretudo como amor de si próprio. Como amor de
sua própria piedade: porque na compaixão pelos outros existe, às vezes e tantas
vezes, o sentimento de superioridade pessoal, e moral, que envenena e destrói
os seres humanos. Kant, antes de Zweig, explicara.
Zweig também explica. Não
apenas nos romances, que me parecem a parte menor da sua obra. Essa pessoal
atenção às contradições humanas, à matéria frágil com que somos feitos e
desfeitos, encontra-se sobretudo num texto autobiográfico que, se me permitem o
excesso, talvez seja só comparável às memórias de Alexander Herzen, um século
antes. Desconheço se O Mundo de Ontem –
Recordações de um Europeu está disponível no Brasil. Sei que está disponível
em Portugal, pela Assírio & Alvim.
Seria um abuso, e uma
pretensão insana, resumir as memórias de Zweig, escritas no exílio, com a
Europa em ruínas e pouco antes da sua aniquilação pessoal. Dizer, como
usualmente se diz, que as memórias de Zweig são um catálogo ‘interessante’ de
nomes, memórias, confissões, com limitado interesse contemporâneo, é dizer
coisa nenhuma. Sim, Zweig conheceu toda a gente que era gente: trabalhou com
Theodor Herzl, foi amigo de Rilke, Freud ou Rolland. Mas as memórias são mais
do que enumeração onomástica: nas palavras de Zweig encontramos sobretudo o
testemunho de uma personalidade invulgarmente reservada e cosmopolita, que se
vê subitamente devorada pela história: condenada a construir, e a reconstruir,
como um náufrago contra a maré, um espaço de segurança e liberdade que o século
XX não lhe permite.
Em O Mundo de Ontem encontramos a oposição de dois mundos: o mundo
anterior a 1914, tomado ainda por um otimismo gentil; e o outro, que
infernalmente se lhe seguiu. Zweig nasceu no crepúsculo de uma era civilizada.
E por civilizada pretende dizer-se precisamente isso: uma era que tinha pela
cultura uma relação necessária e vital. E que acreditava, erradamente, que a
cultura seria a barreira contra a barbárie.
Não foi, Nunca foi. A Primeira
Guerra acabaria por ser o primeiro passo para a Segunda. E o que impressiona em
Zweig são as descrições dos momentos intermédios: desses momentos de transição
em que a luz se vai lentamente ofuscando. Tudo isso é dito, e escrito, com uma
força pessoal que dificilmente se esquece. Quando a Primeira Guerra desaba
sobre a Europa, lemos (e vemos) Zweig, num jardim de Viena, com um livro nas
mãos e uma orquestra que toca ao fundo. Subitamente, a orquestra para. A
leitura também. Uma brisa gélida, real ou imaginária, sacode as árvores que
ofereciam a proteção de uma sombra. Francisco Ferdinando, o herdeiro do trono
austríaco, era assassinado em Sarajevo. Nessa suspensão da normalidade está já
escrito, e inscrito, todo o destino da Europa.

E Zweig teve uma última
ilusão. Mais propriamente no Brasil onde se exilou. ‘O país do futuro’, como
disse e escreveu? Sem dúvida. Mas essa frase, na sua generosidade simples, e
tantas vezes ridicularizada por boçais, revelava um aspecto mais trágico: ao
falar do futuro, Zweig já não falava do seu próprio futuro. Falava apenas das
gerações que acabariam por vir: gerações que seriam capazes de habitar a
natureza física e humana do Brasil sem que o ódio racial, e ideológico, pudesse
mergulhá-las nas chamas que consumiam a Europa. Que consumiam a sua pátria, a
sua língua. O seu passado. Nem mais. Ao deixar o futuro para o Brasil, Zweig
despedia-se do Brasil. Porque os homens carregados de passado acabam sempre por
voltar ao local de todas as partidas.
Título e Texto: João Pereira Coutinho, Folha de S.
Paulo, 21-8-2006, in ‘Avenida Paulista’, Edições Quasi, maio de 2008, páginas 66,
67 e 68.
Digitação: JP
ZWIEG É UM BOM IMBECIL!
ResponderExcluirPor quê?
ExcluirO Brasil sempre será o país do futuro, porque renegou-se a aceitar o seu passado protetor e tecnológico, absorto no pensamento que seria primeiro mundo.
ExcluirCobra impostos de primeiro mundo, tem saúde, educação e segurança e corrupção de países africanos, e jura eternamente que é o CANADÁ.