O ferrete gustativo a todos alumbra.
Advertência
do adido cultural português para as Ilhas Pago-Pago
Como anunciei urbi et orbi, estive no
Brasil durante o mês de agosto. Agora, três quilos depois, retorno a casa,
inundada não pelo Harvey, mas por um mar de correspondência. Aqui, as coisas
são muito práticas. Quando nos ausentamos, autorizamos o correio, através de
uma papeleta assinada e entregue à administração do condomínio, a retenção da
correspondência, indicando o período de ausência, razão por que estou frente a
uma caixa repleta de cartas, revistas, jornais e papéis de toda ordem. Há que
se colocar tudo em dia.
Por negócios a desincumbir, não sai da
província de São Paulo, centrando-me principalmente no aristocrático bairro de
Higienópolis e seus arredores. E lá, justamente lá, reside a inquestionável
figura do meu querido amigo Oswaldo Salazar Caldeira Marques, em cuja casa
reside o requinte da cozinha lusitana, para não falar na forma mais castiça
dada ao idioma de Camões. Como de costume, foi-me oferecido um banquete de
alumbrar os alumbrados. De logo advirto, como diria a poetisa adiante citada,
no seu poema em homenagem às praias de Nazaré, as surpresas “sucederam-se
sucessivamente”.
Desta feita, o formoso casal
Gabi-Salazar advertira-nos (Nêga e eu, claro) que seríamos prebendados por um
prato raríssimo, de soberbo requinte e de difícil execução, receitado na
inencontrável Enciclopédia Lusitana das Iguarias Perdidas. E mais, estaria
presente um diplomata lusitano, acreditado adido cultural plenipotenciário às
Ilhas Pago-Pago.
Segundo Salazar, verdade mais tarde de
todos sabida, esse adido, Dom António Almeirão Rodrigues de Magalhães e Açorda,
descendia quase que em linha reta da histórica figura de Dom João VI.
Tratava-se de homem cultíssimo e de linguajar quase extinto. Enquanto as
pessoas comuns do povo usam, no dia-a-dia, cerca de duas mil das palavras mais
correntes de qualquer língua, essa figura sem precedentes se compraz em falar
um circunscrito vocabulário de não mais de mil e quinhentas palavras das mais
raras e desusadas dentre as mais de quatrocentas mil da língua portuguesa. É
homem de não se perder na patuleia ignara.
As surpresas não paravam por aí. O
prato de resistência seria uma iguaria praticamente extinta, criada no início
do século passado, de feitura quase impossível de se realizar nos dias que
correm. Além disso, estaria também presente a amiga e grande chefe Anna Leonor
Magarão que, juntamente comigo e Nêga, além do casal anfitrião, comporia uma
espécie de degustadores opinativos. Mas, meus amigos, não nos apressemos que,
lusitanamente vos digo, as surpresas só se devem suceder sucessivamente. Assim,
não vamos queimar etapas e tudo começaremos como deve ser, pelo começo.
Estamos de novo Nêga e eu frente ao
condomínio do casal Caldeira Marques, no Bairro de Higienópolis. E, mais uma
vez, lá estava ele, a figura desconfiada, como se recomenda sempre seja, do
porteiro cearense, que em outro texto denominei de São Pedro de condomínio,
nascido nos rincões de minha comadre Naélia.
Pois bem, o diligente porteiro, já
influenciado pelo linguajar salazarense, indaga: “A quem ides visitar e a quem
devo anunciar?” Como vocês já sabem, uso sempre, como uma espécie de password
para acessar Salazar, como uma espécie de linguagem criptografada, o nome de
uma figura acima de qualquer suspeita. Desta feita, disse que iria ao solar dos
Caldeira Marques e que meu nome era João Vaccari Neto, o mais honesto dos
honestíssimos tesoureiros peteenses.
Terminada a comunicação entre Salazar e
o nosso já conhecido e querido São Pedro retirante, nosso acesso foi
autorizado.
Paro aqui para fazer uma pequena
digressão, para não deixar de lado a mania de sair temporariamente da estrada e
ir para o acostamento.
Ao assistir a confabulação entre o
porteiro e Salazar, postado nove andares acima, lembrei-me que há coisas que
para mim não se explicam. Meu filho mais velho, o André, bastante entendido em
física, já tentou explicar, mas em minha cachola não entra, a mágica de uma
pessoa estando, por exemplo, nos Estados Unidos poder falar simultaneamente com
outra no Brasil, principalmente agora que as pessoas dialogam de forma baldia,
perambulando pelas ruas com um aparelhinho de que não se desgrudam. Outro
mistério insondável é como um avião, com cerca de duzentas pessoas a bordo,
mais bagagem, meus três quilos de excesso, ganhos em um mês no Brasil, além do
peso do próprio avião, consegue voar por oito horas, a 12 quilômetros de altura
e a uma velocidade de oitocentos quilômetros por hora. Não me venham com
nenhuma explicação que não aceito. Para mim, o troço tá seguro pela mão de
Deus. Mistério mais insondável do que isso só as leis feitas no Brasil, a
interpretação que lhes dá o Supremo e as pegadinhas jurídicas do Satânico
Doutor Chinnot, misto de juiz e promotor.
Dito isso, voltemos ao leito
confortável da gastronomia.
Alçados ao nono andar, lá estava a figura
de Salazar, sempre com o sorriso de Buda Feliz e braços abertos de um redivivo
Cristo Redentor.
Trocados beijos e abraços, sou
introduzido à figura sem par do adido cultural plenipotenciário. Homem magro,
baixinho, paletó preto de riscado, camisa de colarinho engomado e pontas
arrebitadas, chapéu pequeno, cinza escuro. Ao seu lado, a expandida esposa,
excedendo-o em volume e tamanho, dona Maria-João dos Guimarães Albamonte, de
ilustre família luso-espanhola.
Feitas as apresentações, ouvi do
apresentado frases que não consegui entender na integralidade. Era um
vocabulário que jamais ouvira ou lera, mesmo rememorando as páginas dos
clássicos dos clássicos da língua portuguesa. Quando lhe disse muito prazer,
respondeu-me “agavidoso aspenáculo”. Olhei para Salazar, que me sussurrou, ele
disse “igualmente”.
Em seguida, sorvida a primeira talagada
de um porto envelhecido 20 anos, Salazar anunciou que a augusta senhora dona
Maria-João, poetisa e membro imortal da Academia de Letras de Trás-os-Montes
declamaria uma poesia de sua autoria em homenagem às praias de Nazaré. Dona
Maria-João não se fez de rogada e declamou:
“Nas praias de Nazaré, as ondas se
sucedem sucessivamente;
As primeiras trazem peixe; as outras,
principalmente.”
Batemos as palmas protocolares e, em
seguida, após alguns acepipes e ter entornado duas taças de um legítimo Juca
Pato, num blend de uva trincadeira e touriga nacional, dona Maria-João passou a
descrever a delicadeza da iguaria a ser servida. Tratava-se de ovos de gansos
açorianos, injetados, por fina agulha, de uma dose de gordura de porco da
Albufeira, diluído em fino cognac francês Luís XIII. Os ovos, então envolvidos
em fina massa de açorda, eram enterrados por três meses nos locais mais frios
da Serra da Estrela.
Trasladados ao Brasil com todo o
cuidado, foram levados a banho maria numa mistura de água e azeite virgem
português, de acidez abaixo de 0,5%. Após o banho maria de não mais de cinco
minutos, as cascas foram removidas e os ovos, fritos em manteiga de vacas
apascentadas em gramíneas dos Alpes Dináricos, em altitude mínima de mil e
quinhentos metros.
Um doce aroma invadiu a casa e já não
víamos a hora de ajustar o nosso plebeu paladar a tão régia iguaria, por todos
ansiada.
O introspecto adido plenipotenciário
assumiu a palavra e explicou: “Os alavardes serão auglutidos na lavardez
altecúmenas”, que Salazar traduziu como “os ovos serão apreciados sobre camadas
de açordas entumecidas em azeite”.
Regalamo-nos. Nunca houvera provado
nada igual. Todos estávamos meio lívidos e em transe. Parecíamos Moisés ao
descer do Monte Sinai, após conversar com Deus.
A grande chefe Anna Magarão anotava
tudo discretamente num pequeno caderno. Ao depois, concluiu ser praticamente
impossível, pelas dificuldades de todas as etapas de preparo e pelos elevados
custos incorridos, reproduzir tão requintado prato, cuja tendência era se
perder na poeira do tempo. Era manjar somente para príncipes, milionários
japoneses, ou talvez, quem sabe, chineses.
Indagado o nome do prato, a augusta
dona Maria-João dos Guimarães Albamonte esclareceu que a iguaria levava o nome
do seu criador, o mais famoso chefe português do início do último século, por
isso era conhecida como “Ovos Galados a Gastão Busseta”.
Um bom “alvidaro” para todos.
Obs: Perguntem ao tradutor Salazar o
significado de “esquizopático” e “alvidaro”.
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas, 1-9-2017
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