Para todo problema complexo existe sempre uma resposta simples,
elegante e completamente errada.
Henry Louis Mencken
Meus amigos formam uma fauna. Tenho-os dos mais diversos
humores e aptidões. Em suma, meu círculo de amizade parece a Arca de Noé, de
cada bicho um casal. Há os leões, valentes, os macacos, engraçados, os
elefantes, ricos, as coelhinhas, doces, as corujas, intelectuais. Fiquemos por
aqui, pois não devo revelar o CPF de todos. Seria uma inconfidência, além de
não ser da conta de ninguém. Basta dizer que deles muito me orgulho e não
poderia conceber uma vida sadia e risonha sem a presença de pessoas tão
importantes para mim.
Não sei como uma pessoa pode viver sem amigos, embora as
haja. Mas, de toda essa fauna, talvez o bicho mais complicado seja eu mesmo.
Gostaria de ser o macaco, mas não sei fazer graça engraçada; ser o elefante,
mas me falta cabedal; o leão, mas me falta coragem; a coruja, mas me falta
tino. Talvez eu seja, para meus amigos, o desengonçado ornitorrinco.
O fato é que há algo a nos cimentar: o prazer de estar
juntos e a lealdade, dois ingredientes sem os quais não há amizade, mas simples
conhecimento. Alguns, amigos de há muito, desde os tempos da juventude e...
bota tempo nisso! Amizades históricas.
Dia desses, sustentava uma tertúlia com dois deles, da mais
alta suposição. Um, de grande conhecimento científico, quase um cientista, sabe
tudo de astrofísica, além de trafegar bem pela física quântica, doravante
chamado físico, que CPF não entrego, é um incréu. Adora usar seu conhecimento
científico para marretar a existência de Deus. Vindo o assunto à baila,
confronta a Bíblia a dizer que é um absurdo Deus, todo poderoso, Senhor do
Universo, mandar seu filho à Terra para ser chibateado pela reles soldadesca
romana e ter mãos e pés varados por pregos e ficar sujeito - pisca um olho e dá
um arremedo de sorriso cínico -, a contrair tétano.
O outro, homem de humanidades, um erudito, proclamadamente
um agnóstico, dentro da tradição e da arrogância acadêmicas. Não se compraz em
desandar Deus. Sabe que o simples conhecimento científico não é suficiente para
chancelar ou descartar a existência do Demiurgo. Chamá-lo-ei de Humanista.
Presente também um outro amigo, grande tirador de sarro, de
inteligência criativa como costumam ser as pessoas de bom humor e que do nada
tiram conclusões desconcertantes e cheias de graça, como a dizer: pobres
mortais, pensais saber aquilo que de fato não sabeis. É o amigo Macaco, a
presença sempre mais agradável.
Conversa vai, conversa vem, um deles disse que algo, de que
não me recordo, mas lembro ter sido um bom augúrio, me aconteceria, no que
respondi, como costumamos dizer, “se Deus quiser”. O cientista, com o sorriso
cativante de sempre, embora sarcástico, disse que era irrelevante o querer de
Deus, pois não há querer na inexistência.
O Humanista atalhou que não se podendo provar, por preceitos
científicos, a existência ou a inexistência de Deus, poder-se-ia admitir, no
mundo das hipóteses, a vontade de algo de existência potencial, ou provável,
embora não certa. Aduziu que a descoberta de Deus era um ato solitário, como a
do apóstolo Paulo, na jornada para Damasco, algo que, estando no plano
espiritual, não poderia ser decantado ou detectável em laboratório ou teorizado
por fórmulas matemáticas.
A tertúlia já ia longe. Filósofos eram citados, teses
científicas jogadas na mesa, tudo movido, no melhor dos estilos, por charutos
em brasa, taças encarnadas pelo melhor vinho tinto, queijos fortes e confit de pato. Uma tarde deliciosa,
dessas que nos faz sentir mais vivos ainda, atiçados pelo que há de melhor nas
amizades. As risadas se sucediam, principalmente após as xistosas intervenções
do nosso querido Macaco.
Lá para as tantas, como se estivesse mudando de assunto,
pergunto-lhes qual a parte mais importante do corpo. O Macaco disse: para com
isso, deixa disso, olha que digo...
O Físico disse que era o cérebro, o único órgão (órgão?) que
poderia sobreviver após a morte. A morte consumiria inexoravelmente o corpo,
por incineração ou putrefação, mas o cérebro deixaria suas pegadas como, por
exemplo, as anotações feitas pelos alunos, as ideias deixadas em livros, os
inventos e, mesmo as pessoas simples, pela tradição oral, passada de pai para
filho, daquilo que o ancestral disse.
O Humanista, dentro da melhor tradição acadêmica, disse que
era o dedo, o dedo indicador. Sustentava a tese pontificando que genialmente
Michelangelo no afresco do teto da Capela Sistina mostra Deus dar vida a Adão
tocando o Seu indicador no da criatura [imagem acima]; os dedos proeminentes dos apóstolos
Pedro, Tiago Menor, e Tiago Maior, tão evidentes, na Santa Ceia, imortalizada
pelo pincel de da Vinci; o dedo que aciona o gatilho tanto no ataque como na
defesa; as proclamações dos grandes oradores dramatizadas pelo indicador em
riste, ora apontado para as massas, ora apontado para algo hipotético; usado
para apontar algo, alguém ou lugar; para intimidar e para silenciar pessoas;
confrontados com algo de bom ou de ruim, que saia da normalidade, sempre
dizemos que por trás do evento deve haver o dedo de fulano ou de sicrano. E por
aí foi o meu amigo, com a erudição gostosa de se apreciar, fundamentando sua
tese com citas de livros, frases, poemas, momentos históricos, pinturas e
esculturas famosas em que o dedo indicador ganha proeminência. Deixou-nos a
todos, com sua invejável cultura, abismados com a importância do indicador,
antes de nós insuspeita, na história, nas artes, na literatura, no quotidiano.
A tarde já caía, as libações já eram inúmeras, eis que o
amigo Macaco aponta para o dedo indicador do Humanista e pergunta de que era
constituído aquele dedo.
HUMANISTA – Claro, é constituído de pele, unha, carne,
vasos, nervos, ossos e cartilagem.
MACACO – Por que tanta certeza se você só vê unha e pele?
HUMANISTA – Já vi fratura exposta e dedo aberto em cirurgia,
embaixo da pele e da unha há tudo isso.
FÍSICO – Isso é uma visão superficial das coisas, carente de
base científica, pois o dedo, em última análise, é composto de moléculas, estas
decompostas em átomos, que, por seu turno, se fracionam em prótons, nêutrons e
elétrons, coisas que não podemos ver, tatear, sentir...
O amigo Macaco vira-se para o Físico e pergunta de que se
compõe todo o Universo.
FÍSICO – O Universo é de uma complexidade difícil de ser
explicada, mas tudo que é visível, como galáxias, nebulosas, estrelas,
planetas, satélites, asteroides, nosso corpo, tudo, tudo mesmo, em quantidades
que excedem a casa dos trilhões, representa só cinco por cento do Universo.
MACACO – E o resto?
FÍSICO – Uns vinte e dois por cento de matéria escura, algo
desconcertante, não submisso ao padrão comum da física dos corpos conhecidos.
MACACO – E o resto?
FÍSICO – Bem, os mais de setenta por cento restantes são
compostos da chamada energia escura, algo tão impressionante que atravessa
qualquer corpo celeste, como as estrelas, a terra, o nosso próprio corpo, o
dedo indicador do nosso amigo, esta taça, esta mesa, como se tudo isso não
existisse...
MACACO – Qual a prova disso?
FÍSICO – Isso jamais será provado, essa matéria jamais será
detectada, é algo que não se pode provar a existência, mas necessariamente
existe para que o Universo tenha a existência que tem.
MACACO – Assim é Deus...
Cai o silêncio, cai a noite, nos despedimos ensimesmados.
Ponto para o macaco.
Título e Texto: Pedro
Frederico Caldas, Aventura, EUA, 20-1-2017
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