sábado, 5 de outubro de 2019

Por que não sou de direita?

A dicotomia esquerda-direita tem sido uma excelente bengala para manter o registro político a preto-e-branco, forçando um reducionismo da realidade que é bem mais complexa. Por isso pouco me interessa

José Luís Andrade

Em primeiro lugar porque detesto ser etiquetado por outros, encaixado em categorias alheias. Historicamente, a direita começou a ser apresentada como o lugar dos que se opunham ao «avanço irreversível dos ventos de mudança», ou seja, os reacionários, os conservadores, os tradicionalistas, os nacionalistas. A catalogação nasceu da referência «progressista» que foi a Revolução Francesa.

Em 11 de Setembro de 1789, duas semanas depois da proclamação pública dos Direitos do Homem e do Cidadão, os deputados franceses votavam a atribuição ao Rei do poder de veto às decisões da Assembleia. Para facilitar a contagem dos votos, os que eram favoráveis à limitação daquele poder colocaram-se à esquerda do presidente da Assembleia e os outros, defensores de o Rei poder recusar a promulgação, à direita. Ganhou a «esquerda» por 673 votos contra 375. A partir daí, a imprensa mais sensível aos políticos revolucionários irá começar a usar aquela terminologia de relação para etiquetar as colocações políticas dos blocos. E em outubro daquele mesmo ano os deputados favoráveis à Revolução passarão a sentar-se naturalmente à esquerda do presidente da Assembleia e os hostis, reformistas ou recalcitrantes, à sua direita. O esquema passará a marcar desde então a geometria política, assumindo contornos dramáticos quando a Assembleia Nacional francesa decidiu em janeiro de 1793 sobre a vida ou morte do rei Luís XVI. Dos 726 deputados presentes, 387 dos que se sentavam à esquerda votaram pela execução, 334 da «direita» votaram contra ou pela suspensão e 5 abstiveram-se.

Hoje, volvidos 230 anos sobre aquele marco ideológico, a esquerda usa a classificação, identificando a direita com os «maus» e os seus com os «bons». O pensamento esquerdista, alicerçado nas velhas alianças progressistas dos anos trinta, enquadradas e alimentadas pela Komintern, soube aproveitar a onda antifascista dos anos do pós-Segunda Guerra Mundial. Durante mais de 75 anos o seu pendor dominou a superestrutura cultural, promovendo um doutrinamento a partir do próprio aparelho educativo e comunicacional do Estado que inculca subliminarmente nas mentes mais simples aquela dicotomia. Ainda me recordo bem de, em 1971, no Instituto Superior Técnico, António Guterres ser referido como um indesejável elemento de direita, porque defendia a socialdemocracia de Olof Palme, tão radicalizado estava o espectro político de então.

Na sequência do vazio ideológico deixado por quarenta anos de Estado Novo, durante o qual as pessoas foram habituadas a não ter de pensar, suspensos na presciência do chefe, quando a chamada direita procurou levantar cabeça, opondo-se ao figurino cozinhado para a «descolonização», os seus partidos foram «democraticamente» proibidos. Com a tag corrigida ao centro, nela passaram a caber os advogados do híper-europeísmo federal a par de defensores da limitação da alienação de soberania, liberais (com todos os prefixos e ambiguidades) defensores do laissez faire laissez passer quer em economia quer em costumes, partidários do materialismo individualista de mistura com gente defensora de atitudes solidárias no campo social.

Hoje, há uma total inversão nos processos teleológicos que influenciam a nossa vida. Antigamente era a Igreja que se preocupava com a nossa salvação final. Agora é a esquerda «redentora» que se preocupa com o fim do mundo, alheia às preocupações dos mais aflitos com o fim do mês. Ocupam-se de forma intrusiva com o que se diz, brinca, come ou fuma, mas a obesidade mental é-lhes indiferente. No passado a esquerda invocava a ciência para ancorar o seu pensamento; hoje quando o conhecimento demonstra a fragilidade e o erro das suas crenças rejeita-a e silencia-a. Os seus rebentos mais radicais, como os grupos Antifas ou algumas ONG, tornaram-se instrumentos do capitalismo especulador que se nutre da ruptura social e do caos. Na agenda globalista, cujos clichés e trends nos entram todos os dias e a todas as horas pela porta adentro, pela televisão ou pelas redes sociais, estão presentes os objetivos de nos fazer dóceis consumidores de produtos virtuais embrulhados em causas pretensamente altruístas que mais não escondem que vultosas negociatas.

A direita tradicional foi sempre menos utópica que a esquerda e mais próxima do país real. Mas hoje está mais preocupada com o que pensa o Príncipe Real, encurralada na navegação à vista do politicamente correto, perdidas as causas norteadoras e definidoras. E nem os partidos emergentes questionam as viciadas regras do jogo mediático, encantados com a perspectiva de se verem na televisão ou nas revistas de «referência». Nem mesmo recusam o referencial político da discussão que apresenta sempre subjacente, como pano de fundo, o modelo social-democrata/socialista como se não existissem alternativas de pensamento. E discutem, como os outros, os «temas do dia» deixando de fora o que é realmente essencial, importante e de fundo. Muito disto se deve ao facto de a esquerda se considerar a natural dona do Estado e a legítima detentora dos meios de comunicação e sancionatórios. «A nação é de todos, mas o Estado é nosso!» já dizia em 1915 o jacobino João Chagas.

A crescente tribalização da cena política portuguesa é consequência de um despotismo oligárquico que condiciona e filtra o voto popular ou qualquer intervenção cívica discordante. A corrupção endêmica não resulta de um qualquer obscuro desígnio mafioso, mas da concepção do próprio sistema que, por degenerado paternalismo, insiste em não querer libertar os portugueses do seu retrocesso educativo, da insuficiência cultural e da dependência econômica. O peso do Estado é hoje o principal óbice ao crescimento econômico, que é o fator que nos poderá libertar do ciclo da dependência externa com que os sucessivos governos têm vindo a hipotecar o futuro.

Percebe-se que o posicionamento de qualquer força no espectro político é ditado pelo relativismo cultural e moral, ao sabor das conveniências, interesses e crenças dos bonecreiros que pretendem controlar a comunicação com os eleitores. O que é verdadeiramente controverso não são as prestidigitações orçamentais, os dossiers mediáticos, as sanções judiciais ou o ninho do estorninho da Agualva. O que está objetivamente em disputa não são os artistas, mas o guião, ou seja, as causas.

Com a agressiva intolerância dos fundamentalistas do animalismo e o fanatismo distópico da ideologia do gênero, é a inversão da forma natural de ver o mundo que a esquerda tenta impor. Hoje já não é a cabeça do Rei que está em causa. O que verdadeiramente assusta é que se uma qualquer criança candidamente comentasse, «mas o Rei vai nu» seria imediatamente trucidada.

A dicotomia esquerda-direita tem sido uma excelente bengala para manter o registto político a preto-e-branco, forçando um reducionismo filtrado da realidade que é bem mais complexa e que já deveria ter chegado pelo menos ao 3-D. Nesse contexto, direita ou esquerda pouco me interessa. Estarei com quem defender a primazia da Soberania nacional sobre a dissolução internacionalista ou metanacional; com quem aceitar diminuir drasticamente o peso do Estado, aplicando o princípio da Subsidiariedade por forma a potenciar uma sociedade civil sã e enérgica; e com quem estiver disposto a temperar socialmente esse princípio, articulando-o com a verdadeira Solidariedade social, considerando o integral direito à Vida e o dever que todos temos de proteger os mais débeis e vulneráveis e garantir a igualdade de oportunidades. Porque perante uma incontornável ofensiva totalitária o que está em causa é a própria Liberdade.
Título e Texto: José Luís Andrade, Observador, 3-10-2019

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