Num par de gerações, a indisciplina nunca
parou de ascender até se tornar a maior ameaça ao ensino, fenômeno que saltou
portões e muros das escolas para crescentemente brutalizar a vida social.
Gabriel Mithá Ribeiro
Há pelo menos meio século que
a massificação da escolarização fez da sala de aula o espaço, por excelência,
onde se decide o destino das sociedades, o mesmo ciclo histórico em que a
esquerda a tomou de assalto. Pior só mesmo o arrastar da incapacidade cívica de
resgatar a sala de aula, o que mantém as sociedades do mundo ocidental
subjugadas à miséria moral e material dos ideais socialistas. A incapacidade
ficou espelhada, em 2019, nos mais de oitenta autores que colaboraram em
“Linhas Direitas – Cultura e Política à Direita”.
Do livro fica o consolo de um
pensamento intelectual, cultural, político ou estratégico que se revitaliza
pela valorização da autonomia da sociedade na sua relação com o Estado.
Manifesta-se na defesa de valores e princípios sociais e políticos
não-socialistas, da liberdade de criação cultural que inclua as tradições
identitárias e cristãs do mundo ocidental, da dignificação do mercado e reforma
do Estado social, da regulação da imigração, da NATO ou do combate ao
politicamente correto ou à ideologia de gênero, entre diversos temas.
Porém, sem uma reforma do
ensino condizente tais ambições assentarão em pés de barro, a estafada tentação
suicida da direita. Nada se sustenta sem um suporte social sólido e renovável.
Estando presente no livro e
nos variados discursos, propostas ou programas do campo político em causa para
a educação, todavia esgotam-se no acessório, no contexto de
funcionamento da escola, e passam ao largo do essencial, dos bloqueios
quotidianos da intimidade da sala de aula e da sensibilidade dos profissionais
que aí trabalham.
Alimentar ambições reformistas
implica impor a si mesmo o derrube desse muro mental, atitude que obriga a
direita a assumir a causa do ensino contra a causa da educação, a desastrosa
«paixão pela educação» socialista. A rejeição de um ministério ou política de educação,
por troca por um ministério ou política de ensino,
garante uma posição de princípio de despolitização da sala de aula. A razão de
fundo é a de garantir que escola e sociedade jamais
serão confundíveis, limitando-se a primeira a ser uma das muitas instituições
da última.
A função social específica da
escola é a de ensinar conteúdos científicos, académicos,
técnicos ou analíticos, e o valor destes depende da sua capacidade de
funcionarem como escudos protetores contra saberes de natureza distinta que
corrompem o ensino, em particular os provenientes das ideologias laicas,
religiosas ou místicas. Assegurar essa fronteira é travar os riscos crescentes
de, no ensino, o médico ou astrônomo se confundirem com o curandeiro ou
astrólogo.
Desde a segunda metade do
século XX que o bacilo corruptor reside na generalização da mente holística que
tudo hiperpolitiza e estatiza, a mente incapaz de conviver com o princípio das
instituições terem de ser necessariamente autônomas umas das outras. Como no
resto, foi a esquerda quem contaminou a sala de aula ao impor a educação
socialista das sociedades, isto é, a subjugação da instituição-ensino
às instituições de poder e, bem pior, a subjugação do conhecimento escolar à
ideologia política. Nem as ciências ou a matemática hoje escapam, além das
disciplinas das humanidades, todas dominadas por um facciosismo ideológico
omnipresente nas escolhas pedagógicas, programáticas ou curriculares.
Não é fruto do acaso a
dignidade, qualidade e vitalidade do corpo docente e do ensino terem resvalado
para um longo e penoso ciclo de erosão, tendência inevitável quando se
fragilizam as fronteiras de funcionamento habitual, por um lado, entre a escola
e a sociedade e, por outro, entre a escola e as demais instituições, sendo as
do campo político as mais nocivas (sindicatos partidarizados, partidos e
ideologias progressistas, toda a sorte de ativismos).
Se o ensino contempla
uma inevitável componente de educação, a última compete em igual
medida a outras instituições. Destacam-se as famílias, igrejas, comunicação
social, clubes desportivos, organizações diversas, partidos políticos, por aí
adiante. Constituindo obrigação de qualquer instituição regular as atitudes e
os comportamentos dos seus membros, pressuposto da sua legitimação social,
insistir em remeter a educação para as instituições de ensino é continuar a
fazer das últimas, em especial do seu corpo docente, burros de carga de
responsabilidades alheias. Não existem instituições capazes de suportar tamanho
fardo.
Num par de gerações, a
indisciplina nunca parou de ascender até se tornar a maior ameaça ao ensino,
fenómeno que entretanto saltou portões e muros das escolas para crescentemente
brutalizar a vida social em hospitais, lares de idosos e demais serviços
públicos, regressão civilizacional que tem de se reverter onde se iniciou, na
intimidade da sala de aula. O problema seria residual se o ambiente ideológico
incentivasse, desde a primeira infância, as famílias a cumprirem as suas
obrigações educativas, razão para depois exigirem o mesmo às famílias
incumpridoras cujos filhos partilham salas de aula.
A sociedade está forçada a ter
de se reinventar a partir de um ensino em torno do ensino (dever específico da
instituição), passo a redundância, e não de um ensino que seja educação (dever
partilhado por outras instituições e pela sociedade no seu conjunto).
Em qualquer dos casos, é
indispensável regular atitudes e comportamentos dos indivíduos que depende
de bons exemplos, mas acima de tudo da existência de interditos de
consciência, as fronteiras simples e claras que os indivíduos antecipam não
poder ultrapassar sem consequências penalizadoras efetivas. É esse princípio
que institui qualquer ordem moral, evidência magistralmente tipificada há três
milênios nos Dez Mandamentos do Antigo Testamento.
As tutelas políticas e
acadêmicas andam, há décadas, a forçar os estabelecimentos de ensino a rumarem
na direção contrária. Primeiro, foi-lhes imposta a relativização da autoridade
dos professores, o que foi deixando os alunos, desde a infância, libertos de
referentes comportamentais básicos como terem de estar sentados, quietos e
calados na sala de aula. Juntaram-se pressões para a relativização dos deveres
de estudo, realização de trabalhos de casa, chegar a horas, não faltar às
aulas. Sempre em crescendo, os chumbos pertencem ao rol do que tem de ser
relativizado. A autoridade regulatória das direções das escolas também acabou
relativizada, e soçobram a cada dia os escudos protetores que permitem a
resistência, na intimidade da sala de aula, de um número em si residual de
docentes. A bola de neve vai chegando às universidades.
Os interditos que serviam de
diques de regulação de atitudes e comportamentos continuam a ceder, o que faz
do ensino o retrato mais-que-perfeito da caminhada para a anomia de sistemas
que entraram em falência mental (moral e intelectual). Tais processos jamais
são fruto do acaso ou de inevitabilidades históricas, antes consequências
objetivas de imposições em que a esquerda é imbatível.
Qualquer projeto de renovação
social, cultural, econômica, política partirá condicionado pela inevitabilidade
de ter de refundar a moral social, o ideal de como devemos ser ou para
onde devemos caminhar enquanto coletivo. O caminho é o da moral
social da autorresponsabilidade e, em função da sua missão social
específica, cada instituição deve orientar as suas respostas.
No caso crucial da sala de
aula, a sua funcionalidade depende de valores como ordem, autoridade,
tranquilidade, silêncio reflexivo ou introspetivo. Eles dão garantias
históricas e empiricamente verificáveis de serem eficazes na promoção da
leitura, escrita, cálculo, pensamento, assim como no contributo do ensino para
uma vida cívica saudável. Daí que a reforma tenha de ser de sentido
conservador, também contra a mais abjeta das ditaduras, a do politicamente
correto progressista, a ameaça mais perversa à liberdade intelectual.
Enquanto a direita renegar
essa sua missão que implica o comprometimento na defesa intransigente do poder
hierárquico e da dignidade do corpo docente (a direita antiga não
hesitaria), as sociedades, muito em particular os seus segmentos carenciados,
continuarão a pagar o preço da instabilidade, insegurança, falta de coesão e de
prosperidade.
Para desfazer dúvidas, a
escola não se resume à sala de aula (existe o recreio), muito menos a sociedade
se resume à escola. Os valores conservadores referidos (ordem, autoridade,
tranquilidade, silêncio reflexivo ou introspetivo) não vivem da ambição de ser
hegemônicos na vida social. É nessa condição que asseguram a mais nobre defesa
das democracias e das sociedades livres, a preservação e qualificação de
contextos institucionais nucleares. É o caso das salas de aula, das salas de
audiência dos tribunais ou das instituições religiosas e militares. Mais um ou
outro núcleo circunscrito.
Jamais o conservadorismo
institucional no sentido referido coloca em causa a legitimidade de
espaços e momentos sociais, culturais ou de rua de exposição
pública de atitudes e comportamentos alternativos ou de
instintos primários toleráveis (correr, saltar, gritar, dizer
palavrões, usar boné em espaços fechados, altercar sem controlo, embriagar-se,
estar meio-vestido, colocar os pés em cima da mesa, jogar ao telemóvel, atirar
objetos, estar liberto de regras, não reconhecer a autoridade, sujar, cuspir,
arriscar rituais iniciáticos, entre outros). Numa sociedade livre, é também
para permitir isso que as instituições nucleares não foram concebidas para
funcionar em modo de carnaval permanente.
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro, Observador,
12-1-2020
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