Não é a crítica à direita que está em
causa, até porque esta é a maior responsável pela sua desproteção. Mais grave é
o banimento do espaço público da dignidade de determinadas sensibilidades
sociais
Gabriel Mithá Ribeiro
Do rol de milagres da esquerda
faz parte a transformação das democracias em disseminadoras da censura à
liberdade de pensar, dizer, escrever, publicar, votar, decidir, criticar. O
segredo residiu na subversão mental do ideal de liberdade. Os seus conteúdos
deixaram de ser centrados no pensamento e no indivíduo que se representavam
como subjugados pelas instituições tutelares da cultura e do pensamento, das
religiosas às laicas, para passarem a ser determinados por certos segmentos
sociais que se consideram subjugados pelo poder econômico (ou seus
representantes, a esquerda caviar) que, pelo seu peso eleitoral nas
democracias, passaram a determinar o sentido das instituições em causa.
Além de ter sido descentrado
do indivíduo para o coletivo, e do pensamento para a distribuição de
rendimentos, o ideal de liberdade foi transfigurado de antônimo em sinônimo do
linchamento social do que existe fora desse horizonte mental. Tal milagre civilizacional
remeteu a censura da periferia para o âmago das democracias, anulando-a
enquanto critério que antes distinguia ditaduras de democracias.
Em Portugal, nem me
reporto à supressão de parte das memórias de senso comum do Estado Novo ou à interdição
de testemunhos da vida quotidiana que contradigam as teses do «colonialismo»
criminoso ou da descolonização exemplar. Limito-me a memórias dos
nossos dias.
Quem nega a guerra permanente
à dignidade da existência, no espaço público e publicado, de Pedro Passos
Coelho apesar de ter ganho duas eleições sucessivas (2011 e 2015)?
Claro que, numa democracia, a
direita pode existir, mas sem indivíduos como
Passos Coelho; ou nos EUA, mas sem indivíduos como Trump; ou
no Brasil, mas sem indivíduos como Bolsonaro; sem Orban,
Salvini, Le Pen, por aí adiante, uma regressão à barbárie civilizacional.
Alguém deu pelas consequências reparadoras do silenciamento por progressistas da
Universidade Nova ao professor Jaime Nogueira Pinto? Será possível garantir que
a professora Maria de Fátima Bonifácio sobreviveu ao linchamento social progressista?
Quem protege a arraia-miúda que todos os dias – onde estuda,
trabalha, vive ou convive – arrisca a ostracização como perigosa «fascista» ou «extremista
de direita» se ousar criticar os ideais de esquerda além do
sussurro, mesmo em tom Zé Cabra ou Maria Leal?
Não é a crítica à direita que
está em causa, até porque esta é a maior responsável pela desproteção de
indivíduos e sociedades face ao terrorismo moral esquerdista quando
não se assume enquanto direita moral e cívica. A gravidade do
fenômeno reside no banimento do espaço público da dignidade de determinadas
sensibilidades sociais.
Mesmo que o mundo ocidental vá
resistindo à transmutação do caos imposto à mente coletiva em caos social, a
volatilidade visível do jogo político só acontece por ancorar
na dissolução invisível de instituições fundamentais de
regulação da vida social. Conversas habituais de qualquer de nós permitem
aferir o afastamento continuado de indivíduos e grupos uns dos outros. Basta que
o assunto seja o destino coletivo para percebermos a desagregação de velhos laços
afetivos nos nossos círculos familiares ou de amizades, sentimento que se
estende às relações de vizinhança, pares profissionais ou vida social em geral.
Sempre ameaçadora, o ciclo
atual de erosão da coesão social resulta do colapso do universo mental, moral e
intelectual, modelado pela esquerda a partir do controlo hegemônico de
instituições-chave: política, ensino, comunicação social, cultura, artes,
organizações cívicas nacionais e internacionais, entre outras, que acabaram
contaminadas por um profundo descrédito social. Fenômeno idêntico foi
tipificado por Freud, em O Mal-Estar na Civilização (1930),
diagnóstico da mente coletiva então premonitório da hecatombe que viria a ser,
poucos anos depois, a segunda guerra mundial (1939-1945).
Enfrentar crises
civilizacionais força sempre ao regresso simbólico ao princípio dos
tempos, isto é, à inevitável necessidade cíclica que as sociedades têm de
revitalizar os valores morais que sustentam a sua razão de existir. Se o divã
serve a mente individual descompensada, a mente coletiva fica confinada à
terapia no decurso da vida quotidiana habitual o que implica, obrigatoriamente,
a prescrição do reforço da liberdade. Enquanto não for legítimo questionar, no
espaço público, o que tomamos por incriticável, garantido ou óbvio, o
mal-estar na civilização agravar-se-á.
O propósito da terapia da
mente coletiva não é o de criar um mundo novo, uma vez que o mundo já foi
criado a partir de primados morais sólidos cuja validade resiste ao tempo dos
milénios. Como Jordan Peterson tipifica, o regresso simbólico cíclico ao
princípio dos tempos serve para sociedades e civilizações reaprenderem a tornar
dogmaticamente claras as fronteiras mentais entre Caos e Ordem, Justo e Injusto, Certo e Errado, Bem e Mal, Autorresponsabilidade e Vitimização,
esta última fronteira uma necessidade premente imposta pelas heranças do
revolucionário século XX.
Foi porque, no período
antecedente, os regimes políticos bloquearam a terapia social através da libertação
da liberdade que a segunda guerra mundial aconteceu como aconteceu. Da
pós-guerra até hoje, paradoxalmente a mesma sina regressou ao ritmo da
crescente hegemonia intelectual, cultural, institucional e social da esquerda,
uma tendência que, ao interditar a legitimação de sensibilidades sociais
desalinhadas, foi radicalizando as cargas afetivas e emotivas, entre manifestas
e latentes. Isso implica, necessariamente, o sacrifício do uso da razão na vida
social. Tal descompensação da mente coletiva entre excessos afetivo-emotivos e
carências de racionalidade tem tido o concurso gravemente perverso da
comunicação social.
A racionalidade – pensar e
pesar as consequências a longo prazo antes das decisões – apenas ganha saliência
social quando a liberdade de facto conquista dignidade
institucional e, a partir dela, dignidade pública. Foi por isso que, em 1917,
Max Weber deixou claro que « (…) aquilo que se passa nas salas de aula
deve subtrair-se à discussão pública». O sociólogo não detectava outra via
institucional que protegesse a liberdade intelectual e a capacidade de
racionalizar a vida social, uma vez que tal apenas é possível contra as
pressões resultantes das avassaladoras paixões políticas e públicas que remetem
as sociedades para os antípodas da racionalidade.
Do pré-escolar ao
universitário (e vice-versa), cem anos depois o que caracteriza o ensino é
justamente o inverso. Não admira que a mente coletiva, refletida das elites ao
senso comum, ande próxima da morte cerebral, o ponto de chegada do século de
ouro da esquerda.
Em Portugal, um caso ocidental
típico porém radicalizado e retardado, apenas a patologia da mente coletiva
explica a ausência de reações morais, intelectuais ou cívicas a evidências
empíricas que se prolongam e sobrepõem: uma carga fiscal abusiva (na idade
média talvez já se andasse a ferro e fogo) conjugada com uma economia
estagnada; serviços públicos que se degradam a olhos vistos (segurança, saúde,
educação, justiça, entre outros); episódios recorrentes atentatórios da
dignidade coletiva (falência financeira do país, corrupção, incúrias do estado,
desregulação de atitudes e comportamentos das famílias às salas de aula); entre
outras situações, como a inviabilidade dos princípios que regulam as relações
sociais entre a (recalcada) maioria e umas quantas (santificadas) minorias
(raciais, étnicas, religiosas, de gênero, identitárias).
Mas nem o acumular de
evidências tão deprimentes ativa o instinto racional mais básico. De políticos
a acadêmicos, de intelectuais a artistas, da comunicação social a igrejas, de
desportistas a fãs das novas tecnologias, entre outros, não se dá pela
existência de vozes que proponham e imponham a necessidade de se trocar o mais
possível o fazer pelo pensar, tendo em conta que o
primeiro sem o último é sempre garantia de maus resultados e significa rumar na
direção contrária à renovação social e civilizacional.
O que define a essência da
condição humana, a complexidade do pensamento, está transformado em inimigo da
ação política e cívica. Essa desumanização da nossa existência coletiva tem
sido alimentada em doses industriais do agitado fazedor Presidente
da República a qualquer fazedor Presidente da Junta, como diria Herman José.
Outros tempos e sociedades
viram-se forçados a se repensarem a si mesmos por Sócrates, Platão, Santo
Agostinho, Copérnico, Galileu, Descartes, Montesquieu, Edmund Burke, Nietzsche,
e tantos outros, que acabaram por deixar heranças que projetaram, por séculos,
a dignidade da frágil condição humana. Com ou sem vontade, esses tempos e
sociedades tiveram de questionar o que até aí tomavam por incriticável, certo,
sagrado, dogmático, mas cujos fundamentos morais e intelectuais descobriram ser
falaciosos.
Porque o primado da moral
determina o resto, em setembro último publiquei um livro que confronta quem o
lê com o dilema moral supremo dos nossos dias que, depois, condiciona a
orientação intelectual, acadêmica, social, cultural, política, por aí adiante,
do nosso tempo e sociedades. A argumentação, sem dúvida discutível, parte de
pressupostos morais claros para demarcar, sem ambiguidades, as fronteiras entre
a estabilidade e a instabilidade social e política,
ou entre a prosperidade e a estagnação ou miséria econômicas.
Se um livro com essas ambições
cívicas não for capaz de instigar uma discussão pública significativa que nos
leve de regresso ao princípio simbólico dos tempos, quer dizer que
ainda não será desta que o pântano mental começou a secar.
Desde setembro, o livro tem
merecido pouco mais do que o silenciamento no grande espaço mediático onde,
excecionalmente, uma ou outra cabeça-de-vento o achincalhou sem ler.
Claro que ler e debater fora
da redoma mental da esquerda é motivo de um alegado pânico social, mas essa é a
barreira que alimenta o mal-estar na civilização.
Ainda assim, remeter «Um Século de Escombros» para o lugar do morto
talvez nem seja mau. Como o livro não se evaporará, enquanto não surgir uma
contra-argumentação convincente o alvo foi atingido: passar a certidão de óbito
mental, moral e intelectual, da esquerda. Daí em diante, a reconquista da
dignidade humana significa «Pensar o futuro com os valores morais da Direita».
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro, Observador,
28-11-2019
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-