domingo, 17 de novembro de 2019

[Para que servem as borboletas?] Nossa existência fugidia...

Valdemar Habitzreuter

Antes de mais nada, cabe a pergunta: Qual o significado ou o sentido do ser? Ou, o que é o ser em si? Difícil a resposta... O que podemos tomar em conta a respeito é que o homem é o único ente que tem o privilégio de se fazer essa pergunta, porque o ser é sempre próprio de um ente. Assim, o homem é o ente privilegiado que quer compreender e entender o que é seu próprio ser; e, como ente, ele é um ser-aí, isto é, tem uma existência, existe neste mundo. Portanto, para descobrir o sentido do ser é necessário fazer uma análise da própria existência. Existem entes: as coisas, os seres vivos.

Pela existência, então, podemos nos referir de algum modo ao ser, pois a compreensão do ser passa pela possibilidade da existência do ser do ser-ai que é o homem. “O ser-ai é sempre a sua possibilidade”, diz o filósofo Heidegger. Isto significa que o homem tem a possibilidade de poder escolher-se: conquistar-se ou perder-se; não se conquistar ou conquistar-se aparentemente, em sua existência.

O homem é um ser-no-mundo, relaciona-se com as coisas nele existentes com as quais faz projetos e planos de vida. O mundo das coisas está a serviço do homem para satisfazê-lo em seus planos; ele se satisfaz quando as coisas estão à mão para serem utilizadas.

E não só com as coisas que o homem se relaciona, também se relaciona com os outros e, neste caso, seu relacionamento pode consistir em um verdadeiro coexistir ou não. Se o relacionamento consistir apenas em proporcionar coisas um ao outro para uma mera satisfação, significa um relacionamento inautêntico. Se, por outro lado, houver a abertura da possibilidade de se encontrarem a si mesmos e realizarem o seu próprio ser, haverá um relacionamento autêntico.

Pois bem, temos duas perspectivas de existência, segundo Heidegger: uma existência autêntica ou inautêntica, conforme nossos relacionamentos; isto é, relacionamento consigo mesmo ou com o mundo e os outros. Se o ponto de partida que o homem se coloca é o si mesmo então há uma compreensão autêntica de sua existência; se colocar como ponto de partida o mundo e os outros homens, então haverá uma compreensão inautêntica.

Vejamos o que isso implica. A compreensão inautêntica tem como base a existência anônima; isto é, a vida do homem transcorre no plano superficial onde, comumente, nos dedicamos ao cuidado das coisas e dos outros, onde a existência é de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém; é quando impera o falatório, a conversa inconsistente, o “diz-se”, o “fala-se”, o “faz-se” inconsequente; “a coisa é assim porque assim se diz”; tudo que deixa o “em si” do homem escondido. Enfim, caracteriza-se por uma existência vazia que, no entanto, procuramos preencher com o novo através da curiosidade; curiosidade voltada para as aparências e não para o ser das coisas. E isso nos leva a equívocos a ponto de nem saber do que realmente se trata o “diz-se”.

No entanto, esta existência inautêntica não é uma parte de nossas vidas que possa ser descartada, faz parte de nossa natureza. Ela é nossa vivência quotidiana onde nos colocamos projetos possíveis de realizar que, se realizados ou não, não nos indicam, no entanto, o sentido do ser. Apenas demonstra isso uma queda ou seja, o homem se encontra ao nível das coisas e cuida delas; o ser-aí mistura-se entre as coisas; se converte num fato (assim como as coisas são fatos, o homem também o é como ser-aí). Fato é algo feito, concreto. A efetividade da existência do ser-ai significa estar lançado no mundo no meio e ao nível de outros existentes ou entes. É aí que o homem está às voltas com as ciências e a técnica culminando na tecnologia.

Então a existência do ser-aí, ou do homem, caracteriza-se pelo cuidado. O homem lançado-no-mundo significa que ele cuida das coisas e dos outros. O termo cuidado aqui significa o agir do homem, tendo em conta sua necessária coexistência com as coisas e com os outros. A partir dessa posição no mundo projeta suas possibilidades de vida que, no entanto, sempre o devolvem à sua situação originária de fato como ser lançado no mundo; fato este que se caracteriza como existência anônima ou inautêntica como vimos acima.

Mas, em paralelo a essa existência inautêntica pode o homem vislumbrar a existência autêntica. Como? Pela voz da consciência. É ela que desperta o homem de sua impossibilidade de transcender sua posição de fato de estar lançado no mundo onde se encontra ao nível de todos os outros existentes. A voz da consciência revela que o em si do homem está suspenso no nada; isto é, o em si do ente homem não se identifica com o ente, embora o constitua; daí também os possíveis projetos do homem representarem para o em si do homem apenas nulidades, pois tudo, ao fim e ao cabo, caminha para o nada existencial com a possibilidade mais certa do homem - a morte.

“O ser-aí é um ser para a morte”, diz Heidegger. O que significa isso? Significa que a morte é a possibilidade mais própria do homem da qual não há escapatória, e nela vislumbra uma existência autêntica. No reconhecer a possibilidade da morte e no assumi-la como decisão antecipadora e sempre iminente, é que o homem encontra seu ser autêntico.

Nas outras possibilidades, o homem está no meio das coisas e entre os homens levando uma existência inautêntica e não pensa na morte. Mas, na possibilidade da morte ele se encontra a sós, quando deverá renunciar à sua própria existência. Neste estar-a-sós se vê diante de sua existência autêntica. Compreende seu sentido. Não vê na morte um ponto final, mas a possibilidade da impossibilidade da existência.

Na existência anônima tumultuosa quotidiana estamos sempre fugindo da morte e ocultamos sua possibilidade imanente, não pensando nela e entregamo-nos às preocupações cotidianas do viver. Mas, a voz da consciência, sorrateira e inconscientemente, nos admoesta da inconsistência da existência anônima vazia e nos faz ver que a existência autêntica é viver-para-a-morte.

Não quer isto dizer que esteja aí implícito o suicídio ou dar cabo à existência, mas entender que a possibilidade da morte é uma decisão antecipadora como sendo uma ameaça constante suspensa sobre os homens. O viver-para-a-morte é compreender a possibilidade da impossibilidade da existência enquanto tal. Compreendendo isso, saberemos que a autenticidade da existência é um caminhar para a morte.

É nesta autenticidade da existência – ser para a morte - que nos ocorre o estado emotivo da angústia. A angústia é o sentimento da ameaça que sai do ser mais íntimo e isolado do homem, onde se sente em presença do nada, da impossibilidade possível da sua existência, compreendendo-se, assim, na sua finitude. Compreende a finitude quando se instala e se mantém no nada.

Pela angústia, o homem percebe a transitoriedade da existência, que é algo fugidio, e o nada se apresenta com todo seu poder de aniquilação. Mas essa angústia de precisar dobrar-se ao poder do nada revela também o significado autêntico da presença do homem no mundo. Isto é, manter-se firme no interior do nada que a existência representa.

Não que o nada seja a negação do mundo. Apenas quer-se dizer que o nada está escondido na existência inautêntica, trivial cotidiana que, ao fim e ao cabo, o ser-aí, o homem, se vê defronte da nulidade da existência. Mas, por outro lado, a existência autêntica – ser-aí-para-a-morte - é capaz de compreender claramente e realiza emotivamente essa nulidade da existência.

Assim, a interrogação pelo sentido do ser não pode ser feita ao ser-aí (ao homem), porque o sentido do ser não pode ser obtido interrogando um ente, pois não se trata do sentido do ser de um ente, mas do puro ser, do ser em si.

Portanto, não cabe ao homem a iniciativa de revelar o que é o ser, seu sentido ou significado. Esta iniciativa parte do próprio ser, e ao homem só cabe sujeitar-se a essa iniciativa e deixar que o ser se revele como verdade. Que o homem se abra e se torne disponível para o acontecimento do ser que, já não é uma procura do ser pelo homem, mas um acontecimento.

Então, existir é estar sob a luz do ser em que “o homem é lançado pelo próprio ser na verdade do ser, pelo que, existindo guarda a verdade do ser, e por isso mesmo, sob a luz do ser, como o ente que é” (Heidegger). Neste sentido, o homem é o pastor do ser.

Pensamento e ser. O pensamento é sempre pensamento do ser; é o ser que pensa e de que o pensamento só pode pensar o ser. E o homem, enquanto pensa, só pode “deixar que o ser seja”, única atitude autêntica como “abertura ao mistério”, onde o mundo da ciência e tecnologia escondem o sentido do ser perfazendo a existência inautêntica.

No entanto, há um meio de termos a manifestação direta do ser. Pela linguagem que é a “morada do ser”, segundo Heidegger. Principalmente pela linguagem da poesia que funda o ser. Mas este fundar do ser não é criação do homem, é uma dádiva do ser. Através da linguagem da poesia o significado do ser se revela. Não é o homem que fala através da linguagem da poesia, mas a própria linguagem, e na linguagem, o ser. Cabe ao homem escutar a linguagem do ser, obedecer-lhe e confiar nele...

Vamos poetar nossa existência para nos inserir na verdade do ser!....
Título e Texto: Valdemar Habitzreuter, 17-11-2019

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