domingo, 24 de novembro de 2019

Afinal, para que é que se fez o 25 de novembro?

Helena Matos

Em 2019, um gesto das mãos até agora banal é sinal de racismo. Tudo é fascismo. Criticar este governo é sinal de reacionarismo… foi para isto que se fez o 25 de novembro de 1975?


Na madrugada de 13 de novembro de 1975, os operários da construção civil que cercavam S. Bento a dado momento gritaram “Vitória!” Eram 5h20m. Há três horas que os delegados sindicais da construção civil estavam reunidos com o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo. Nesse momento o governo cedeu à maior parte das suas reivindicações. Quando Pinheiro de Azevedo chega à varanda do Palácio de S. Bento para explicar aos manifestantes os detalhes do acordo é vaiado. Chamam-lhe fascista. É nesse momento que Pinheiro de Azevedo, furioso, diz “Badamerda mais o fascista!”


Não se percebe o que foi o PREC em Portugal nem o que somos hoje sem este frenesi do fascismo e dos fascistas que rapidamente acumulavam essa vergonhosa condição com o opróbrio de serem agentes da CIA. Por junto neste grupo cabia todo e qualquer um que estivesse no espectro político que ia do CDS ao PS. Com o avançar do PREC a acusação de fascismo e seus derivados já estava gasta e nos idos de novembro de 75, os termos encavalitavam-se entre si numa espécie de delírio barroco, acabando-se muito simbolicamente com um secretário de estado socialista a ser impedido de entrar no respectivo ministério sob a acusação de ter sido “colaborador da super-PIDE” (ultrapassada a fase em que ao logo de 1974 os jornais se encheram com declarações de taxistas, merceeiros, ourives e caixeiros-viajantes que declaravam não ter sido agentes ou informadores da PIDE entrou-se em 1975 na fase da super-PIDE, uma fantasmagoria que nunca se detalhava o que seria, bastava dizer-se super-PIDE e logo ficava estampado o rótulo no nome e na cara do ódio de estimação daquele dia). Pinheiro de Azevedo respondendo à multidão “Badamerda mais o fascista!” é a mais sincera expressão da exaustão a que aquele estado de revolução antifascista permanente conduzira o país.

Esta espécie de corrida alucinada, este mundo dividido entre libertadores e reacionários, este dia em que há sempre mais uma luta imperiosa, mais uma conquista que não se pediu, mas é urgente, mais um progresso não se sabe para quê… que caracterizou o PREC está aí de novo. Só esta semana tivemos o caso da manifestação dos polícias que logo à partida tinham sobre si o ônus de alguns deles não serem de esquerda ou de extrema-esquerda. A isto juntou-se a mais destrambelhada acusação de que há memória: os polícias não fariam o gesto que indica zero, nome do seu movimento, mas sim uma exaltação de “ideias como o racismo, o nazismo, a xenofobia e o antissemitismo.”  Tal como em 1975 bastava usar um determinado tipo de óculos ou de sapatos para se ser fascista também agora juntar o polegar e o indicador tornou-se sinónimo de racismo e tudo o mais que venha à ideia do acusador de serviço. Aliás acabaremos rapidamente com os braços enfaixados pois é impossível estarmos a par dos gestos usados para expressar sentimentos criticáveis por esse mundo fora!

Também tivemos o dia da indignação contra a violência que só se pode dizer de gênero e tratada nas estritas linhas ideologicamente definidas: os agressores só são agressores se forem homens, brancos e cristãos. Dos outros agressores pouco rezam as notícias e as indignações. E das agressões entre homossexuais ou sobre os velhos ainda menos. E, contudo, existem e são numerosas.  Questionar a fundamentação da ideologia do gênero neste ano de 2019 equivale a alguém dizer-se anticomunista em 1975: fica-se logo rotulado como primário para não dizer pior. Denunciar a degradação do SNS é querer entregá-lo às garras dos privados. Abordar a falência da Segurança Social é estar feito com o lobby das seguradoras…

A sério, foi para isto que se fez o 25 de novembro? Provavelmente sim. Como é óbvio não terá sido esse o propósito de Jaime Neves [foto], o militar operacional que à frentes dos Comandos executou as principais operações militares deste golpe ou contragolpe como lhe quiserem chamar. Muito menos daquele povo que a norte do Tejo se levantou com enxadas, mocas e às vezes outras armas contra o comunismo.


Mas o 25 de novembro nunca foi uma vitória da direita, mas sim e sobretudo um acerto de poder dentro da esquerda: a chamada esquerda moderada entendeu que chegara a hora de travar a legitimidade revolucionária que os radicais pretendiam impor. Para o PCP essa não era necessariamente uma má notícia, pelo menos a médio prazo: com Angola já na esfera da URSS e sem o indispensável apoio dos soviéticos para construir uma Cuba na Europa, o PCP negociou o seu futuro com Melo Antunes e na madrugada do 25 de novembro deixou só a extrema-esquerda na rua e mais solitários ainda os operários que na margem sul esperavam pela ordem para virem defender a revolução em Lisboa.

Após o 25 de novembro, Álvaro Cunhal fez uma viagem-retiro pelos países comunistas, onde foi brindado com aquelas manifestações em que uns operários lhe aclamavam os feitos. Quando regressou terá constatado, entre os discursos pela defesa das “conquistas de Abril destruídas pelos avanços da direita”, que o poder do PCP se mantinha intocado nos sindicatos, na educação e na máquina administrativa. Os detidos em Custóias e em Caxias após o 25 de novembro eram alvo de campanhas de solidariedade internacional: ativistas vários preocupavam-se com as ilegalidades hipotéticas que podiam inibir o direito à defesa daqueles militares que por ironia tinham tido como principal objetivo acabar com o legalismo burguês. Como é óbvio nenhum desses ativistas e organizações internacionais se interessou pelo chamado “Relatório das Sevícias” que dava conta do que acontecera a muitos detidos por aqueles militares que eles tanto defendiam – um dos aspectos mais perturbantes do PREC é a transformação dos quartéis numa espécie de centros de detenção sem regras nem responsáveis. A Reforma Agrária ia perdendo terras, mas os outrora dirigentes das cooperativas ganhavam lugares nos sempre acrescentados organogramas dos municípios. Já o poder dos sindicatos mantinha-se e mantém-se apesar da quebra constante no número de filiados: em Portugal, a sindicalização caiu de 61% para 15% em quarenta anos, mas essa ausência de representatividade não afeta o monopólio garantido aos sindicatos nas negociações da contratação coletiva.

O PS vencedor do 25 de novembro de 1975 tornou-se o partido do regime. E a direita? A direita começou por se sentir aliviada por não lhe gritarem todos os dias que era de direita. Depois foi-se acomodando cada vez mais à condição de sílaba esdrúxula num regime em que o acento tônico era dado pelo PS e o vocabulário definido pelas esquerdas: em português político privado é sinônimo de interesses e público de bem comum. Promover o emprego quer dizer aprovar legislação que até pode levar as empresas à falência e afasta o investimento, mas que é sempre apresentada como defendendo os trabalhadores. Instituir o facilitismo nas escolas passa por promoção da inclusão social. As universidades estão tão radicalizadas quanto em 1975.

As vitórias de Sá Carneiro e Cavaco Silva trouxeram algum sobressalto a este estado de coisas. Mas o primeiro morreu cedo e o segundo viu o PSD cada vez mais a querer ser aprovado pela esquerda. Até que chegamos a outubro de 2015, quando António Costa ao perceber que não ia ganhar as eleições optou por governar com o PCP e o BE e não com o PSD. Quarenta anos depois do 25 de novembro de 1975, mais precisamente no dia 10 de novembro de 2015, o PS assinava os textos de Posição Conjunta com o PCP e com o BE.

A 10 de Novembro de 2015 o regime fundado a 25 de novembro de 1975 mudou, só Rui Rio ainda não deu por isso: a direita tornou-se dispensável.

Habituada a deixar cair as suas causas, a não vir para a rua ou a vir timorata com medo que lhe chamem reacionária, a esperar que a História lhe dê razão, a direita admira-se como o povo agora não se revolta com a degradação nos hospitais, interroga-se sobre o paradeiro dos outrora indignados dos telejornais e pasma com o autoritarismo do governo. E irrita-se, claro, com o facto de nos bairros da periferia e nesses longes do interior do país, alguns dos seus eleitores terem votado num partido que a esquerda diz que é de extrema-direita. E se a esquerda diz quem são eles para discordar?

O 25 de Novembro de 1975 salvou a esquerda de si mesma.

O 10 de Novembro de 2015 reencontrou as esquerdas num projeto de poder e espera-se há de levar as direitas a assumir uma linguagem própria e projetos ideologicamente distintos. Em 2019 continuamos à espera dessa alteração de ADN.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 24-11-2019

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