Helena Matos
Em 2019, um gesto das mãos até agora banal
é sinal de racismo. Tudo é fascismo. Criticar este governo é sinal de reacionarismo…
foi para isto que se fez o 25 de novembro de 1975?
Na madrugada de 13 de novembro
de 1975, os operários da construção civil que cercavam S. Bento a dado momento
gritaram “Vitória!” Eram 5h20m. Há três horas que os delegados sindicais da
construção civil estavam reunidos com o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo.
Nesse momento o governo cedeu à maior parte das suas reivindicações. Quando
Pinheiro de Azevedo chega à varanda do Palácio de S. Bento para explicar aos
manifestantes os detalhes do acordo é vaiado. Chamam-lhe fascista. É nesse
momento que Pinheiro de Azevedo, furioso, diz “Badamerda mais o fascista!”
Não se percebe o que foi o
PREC em Portugal nem o que somos hoje sem este frenesi do fascismo e dos
fascistas que rapidamente acumulavam essa vergonhosa condição com o opróbrio de
serem agentes da CIA. Por junto neste grupo cabia todo e qualquer um que
estivesse no espectro político que ia do CDS ao PS. Com o avançar do PREC a
acusação de fascismo e seus derivados já estava gasta e nos idos de novembro de
75, os termos encavalitavam-se entre si numa espécie de delírio barroco,
acabando-se muito simbolicamente com um secretário de estado socialista a ser
impedido de entrar no respectivo ministério sob a acusação de ter sido
“colaborador da super-PIDE” (ultrapassada a fase em que ao logo de 1974 os
jornais se encheram com declarações de taxistas, merceeiros, ourives e caixeiros-viajantes
que declaravam não ter sido agentes ou informadores da PIDE entrou-se em 1975
na fase da super-PIDE, uma fantasmagoria que nunca se detalhava o que seria,
bastava dizer-se super-PIDE e logo ficava estampado o rótulo no nome e na cara
do ódio de estimação daquele dia). Pinheiro de Azevedo respondendo à multidão
“Badamerda mais o fascista!” é a mais sincera expressão da exaustão a que
aquele estado de revolução antifascista permanente conduzira o país.
Esta espécie de corrida
alucinada, este mundo dividido entre libertadores e reacionários, este dia em
que há sempre mais uma luta imperiosa, mais uma conquista que não se pediu, mas
é urgente, mais um progresso não se sabe para quê… que caracterizou o PREC está
aí de novo. Só esta semana tivemos o caso da manifestação dos polícias que logo
à partida tinham sobre si o ônus de alguns deles não serem de esquerda ou de
extrema-esquerda. A isto juntou-se a mais destrambelhada acusação de que há
memória: os polícias não fariam o gesto que indica zero, nome do seu movimento,
mas sim uma exaltação de “ideias como o racismo, o nazismo, a xenofobia e o antissemitismo.” Tal como em 1975 bastava usar um determinado tipo de
óculos ou de sapatos para se ser fascista também agora juntar o polegar e o
indicador tornou-se sinónimo de racismo e tudo o mais que venha à ideia do
acusador de serviço. Aliás acabaremos rapidamente com os braços enfaixados pois
é impossível estarmos a par dos gestos usados para expressar sentimentos
criticáveis por esse mundo fora!
Também tivemos o dia da
indignação contra a violência que só se pode dizer de gênero e tratada nas
estritas linhas ideologicamente definidas: os agressores só são agressores se
forem homens, brancos e cristãos. Dos outros agressores pouco rezam as notícias
e as indignações. E das agressões entre homossexuais ou sobre os velhos ainda
menos. E, contudo, existem e são numerosas. Questionar a fundamentação da
ideologia do gênero neste ano de 2019 equivale a alguém dizer-se anticomunista
em 1975: fica-se logo rotulado como primário para não dizer pior. Denunciar a
degradação do SNS é querer entregá-lo às garras dos privados. Abordar a falência
da Segurança Social é estar feito com o lobby das seguradoras…
A sério, foi para isto que se
fez o 25 de novembro? Provavelmente sim. Como é óbvio não terá sido esse o
propósito de Jaime Neves [foto], o militar operacional que à frentes dos Comandos
executou as principais operações militares deste golpe ou contragolpe como lhe
quiserem chamar. Muito menos daquele povo que a norte do Tejo se levantou com
enxadas, mocas e às vezes outras armas contra o comunismo.
Mas o 25 de novembro nunca foi
uma vitória da direita, mas sim e sobretudo um acerto de poder dentro da
esquerda: a chamada esquerda moderada entendeu que chegara a hora de travar a
legitimidade revolucionária que os radicais pretendiam impor. Para o PCP essa
não era necessariamente uma má notícia, pelo menos a médio prazo: com Angola já
na esfera da URSS e sem o indispensável apoio dos soviéticos para construir uma
Cuba na Europa, o PCP negociou o seu futuro com Melo Antunes e na madrugada do
25 de novembro deixou só a extrema-esquerda na rua e mais solitários ainda os
operários que na margem sul esperavam pela ordem para virem defender a
revolução em Lisboa.
Após o 25 de novembro, Álvaro
Cunhal fez uma viagem-retiro pelos países comunistas, onde foi brindado com
aquelas manifestações em que uns operários lhe aclamavam os feitos. Quando
regressou terá constatado, entre os discursos pela defesa das “conquistas de
Abril destruídas pelos avanços da direita”, que o poder do PCP se mantinha
intocado nos sindicatos, na educação e na máquina administrativa. Os detidos em
Custóias e em Caxias após o 25 de novembro eram alvo de campanhas de
solidariedade internacional: ativistas vários preocupavam-se com as
ilegalidades hipotéticas que podiam inibir o direito à defesa daqueles
militares que por ironia tinham tido como principal objetivo acabar com o
legalismo burguês. Como é óbvio nenhum desses ativistas e organizações
internacionais se interessou pelo chamado “Relatório das Sevícias” que dava
conta do que acontecera a muitos detidos por aqueles militares que eles tanto
defendiam – um dos aspectos mais perturbantes do PREC é a transformação dos
quartéis numa espécie de centros de detenção sem regras nem responsáveis. A
Reforma Agrária ia perdendo terras, mas os outrora dirigentes das cooperativas
ganhavam lugares nos sempre acrescentados organogramas dos municípios. Já o
poder dos sindicatos mantinha-se e mantém-se apesar da quebra constante no
número de filiados: em Portugal, a sindicalização caiu de 61% para 15% em
quarenta anos, mas essa ausência de representatividade não afeta o monopólio
garantido aos sindicatos nas negociações da contratação coletiva.
O PS vencedor do 25 de novembro
de 1975 tornou-se o partido do regime. E a direita? A direita começou por se
sentir aliviada por não lhe gritarem todos os dias que era de direita. Depois
foi-se acomodando cada vez mais à condição de sílaba esdrúxula num regime em
que o acento tônico era dado pelo PS e o vocabulário definido pelas esquerdas:
em português político privado é sinônimo de interesses e público de bem comum.
Promover o emprego quer dizer aprovar legislação que até pode levar as empresas
à falência e afasta o investimento, mas que é sempre apresentada como
defendendo os trabalhadores. Instituir o facilitismo nas escolas passa por
promoção da inclusão social. As universidades estão tão radicalizadas quanto em
1975.
As vitórias de Sá Carneiro e
Cavaco Silva trouxeram algum sobressalto a este estado de coisas. Mas o
primeiro morreu cedo e o segundo viu o PSD cada vez mais a querer ser aprovado
pela esquerda. Até que chegamos a outubro de 2015, quando António Costa ao
perceber que não ia ganhar as eleições optou por governar com o PCP e o BE e
não com o PSD. Quarenta anos depois do 25 de novembro de 1975, mais
precisamente no dia 10 de novembro de 2015, o PS assinava os textos de Posição
Conjunta com o PCP e com o BE.
A 10 de Novembro de 2015 o
regime fundado a 25 de novembro de 1975 mudou, só Rui Rio ainda não deu por
isso: a direita tornou-se dispensável.
Habituada a deixar cair as
suas causas, a não vir para a rua ou a vir timorata com medo que lhe chamem reacionária,
a esperar que a História lhe dê razão, a direita admira-se como o povo agora
não se revolta com a degradação nos hospitais, interroga-se sobre o paradeiro
dos outrora indignados dos telejornais e pasma com o autoritarismo do governo.
E irrita-se, claro, com o facto de nos bairros da periferia e nesses longes do
interior do país, alguns dos seus eleitores terem votado num partido que a
esquerda diz que é de extrema-direita. E se a esquerda diz quem são eles para
discordar?
O 25 de Novembro de 1975
salvou a esquerda de si mesma.
O 10 de Novembro de 2015
reencontrou as esquerdas num projeto de poder e espera-se há de levar as
direitas a assumir uma linguagem própria e projetos ideologicamente distintos.
Em 2019 continuamos à espera dessa alteração de ADN.
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