O problema é o das elites bem-pensantes insistirem em aprisionar o
sentido da vida vivida no presente numa fórmula discursiva do passado que
substitui o racional pelo místico
Gabriel Mithá Ribeiro
Segundo Nietzsche, «mais vale
fazer mal do que pensar abjetamente». É sempre o pensamento que está na
gênese do mal que atenta contra a condição humana, das suas manifestações
latentes às mais severas. Daí o filósofo ter transformado as preocupações
morais na essência do seu pensamento.
Seria desafiante imaginar Nietzsche na
atualidade, um tempo em que o abjeto moral, e o abjeto intelectual que dele
deriva, tomaram conta de instituições de referência e fazem gala em se expor no
espaço público.
Tais considerações resultam da leitura
de um texto sintetizado num conjunto de interrogações.
O detalhe da autoria da frase e texto
não é relevante, tendo em conta que os argumentos expostos constituem a síntese
mais-que-perfeita do padrão mental de sociedades que se deixam guiar pela
trilogia moral progressista, Colonialismo, Escravatura e Racismo.
Trata-se do Cavalo de Troia do Ocidente apontado ao aniquilamento das réstias
dos fundamentos do conservadorismo, em tempos simbolizado por Salazar na
trilogia Deus, Pátria e Família.
Os grandes referentes morais que
modelam as nossas mentes, ou meta referentes morais, aqueles dos quais derivam
as trilogias em causa e demais valores que orientam o quotidiano dos
indivíduos, resumem-se ao confronto entre a autorresponsabilidade e a vitimização, uma e outra fundadas em pressupostos históricos, culturais, identitários, sociais e geográficos distintos. Importa considerar uma das teses de Jordan Peterson,
a que sublinha que as sociedades que descuram o absoluto moral estão condenadas
à miséria e, a seu tempo, à dissolução.
Significa que quando somos
confrontados com grandes referentes que orientam a ação humana cujos
pressupostos, significados e consequências são antagônicos, só poderá existir
um lado certo e é apenas esse que possui valor moral. O lado antagônico será
necessariamente o lado do Mal. Ou seja, a orientação moral da ação humana não
se guia pelo relativo.
A frase em análise é claríssima na
hipervalorização da (autor) responsabilidade dos povos ocidentais. Tal postura
moral normativa não instigaria patologias sociais se o seu conteúdo não
impusesse, necessariamente, o inverso aos povos não-ocidentais. Para
centro-americanos, sul-americanos, asiáticos ou africanos, assim como para as
minorias das diásporas que deles derivam, sobra apenas a radicalização da
orientação moral inversa, a da vitimização.
Será difícil encontrar um presente
moral mais envenenado desde que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso. A
instabilidade social e política, a incapacidade de se afastarem da miséria e da
criminalidade ou, na menos perversa das possibilidades, a submissão dos povos a
ditaduras são tanto mais acentuadas quanto mais as identidades não-ocidentais têm
sido pressionadas a aderir aos valores morais que a elite intelectual e acadêmica progressista e esquerdista lhes impõem a partir do Ocidente.
A trilogia moral progressista, Colonialismo,
Escravatura e Racismo, constitui o símbolo do moral e
intelectualmente abjeto no sentido nietzschiano da expressão. Nem é difícil
comprová-lo.
Começo pela palavra-chave Colonialismo.
Qualquer conceito apenas será moral e intelectualmente válido se possuir
validade universal, isto é, quando for aplicável a tempos, espaços e contextos
sociais distintos de forma a garantir a unidade do gênero humano. Acontece
justamente o contrário quando se recorre ao conceito de colonização para
caracterizar a presença romana ou árabe na Europa, porém, à medida que os
europeus transitam de colonizados a colonizadores, e se avança para o século
XX, o mesmo tipo de fenômeno histórico e social passa a ser adjetivado com
o «ismo», de colonialismo.
Do nada, sai da cartola um crime
contra a humanidade apenas porque os sujeitos históricos, e espaços
territoriais aos quais o conceito se aplica, mudam. Como qualquer crápula hábil
em recorrer a um bom advogado para extorquir uma indemnização em nome da sua
vitimização existencial, é isso que está em causa na palavra colonialismo.
Recusá-la liminarmente é um princípio básico de dignidade moral e lucidez
intelectual.
A segunda palavra-chave da trilogia
progressista é Escravatura. Ao contrário da anterior, em si
a palavra possui uma forte carga moral. Todavia, a moral transfigura-se no seu
contrário quando o conteúdo da palavra fica limitado a uma arma mental apontada
à culpabilização dos ocidentais (brancos) e à vitimização dos africanos
(negros). Tal propósito é claríssimo na frase e texto citados.
Além dos mínimos óbvios – como não
terem sido os europeus os inventores da escravatura, mas os que puseram termo à
prática, as identidades brancas não terem sido historicamente imunes à condição
da escravatura ou a omissão das pesadas responsabilidades dos árabes –, entre
outros argumentos que João Pedro Marques tem clarificado neste jornal, falta
acrescentar dois.
Por um lado, a associação entre negro
e escravo não é um fenômeno de África. Veio de fora para dentro do continente.
Foi nas Américas que tal associação foi historicamente sedimentada. Os negros
feitos escravos foram aqueles que saíram de África, sendo que os que ficaram,
ao menos em parte, não ignoram terem sido responsáveis ou, no mínimo,
coniventes com a transação violenta de outros africanos negros como eles.
Tal equivale a pais que vendem os
filhos. O problema é o de nos tentarem convencer que, numa trauma moral dessa
dimensão, o filho vendido como escravo fica limitado a incompatibilizar-se com
o comprador e, na sua eterna inocência, lamentará a desgraça do seu querido
papá e da sua adorada mamã que lucraram com a
transação permanecendo no lar. A interpretação da escravatura imposta pelas
diásporas negras das Américas e da Europa, tuteladas pelos ocidentais
progressistas, tem suprimido parte essencial dos pressupostos morais do fenômeno,
razão para o seu prazo de validade se ter esgotado.
O meu longo trabalho de campo em
Moçambique, entre 1997 e 2015, nunca me permitiu atribuir relevância ao fenômeno da escravatura quando concebido de dentro para fora do continente
africano.
Por outro lado, contra as lógicas do
estado tradicional africano em que o poder incidia sobre as pessoas, e apenas
de modo indireto sobre o território (daí não se ter consolidado a ideia de
fronteira territorial entre os africanos, isto é, na sua tradição o centro
geográfico do poder poderia mover-se consoante a mobilidade no espaço do seu
titular), a presença efetiva dos europeus em África a partir de finais do
século XIX impôs, de fora para dentro, transformações morais e
civilizacionais profundas.
Há muitos séculos que os europeus se
orientavam pelo princípio do poder ser exercido sobre um território delimitado,
o estado territorial centralizado, e apenas de modo indireto sobre as pessoas
que nele habitavam. Era assim na Europa cristã desde a Idade Média (séculos
V-XV) em que o poder passou a ser fundado na propriedade da terra, uma vez que
os cristãos pertenciam a Deus.
Tal ruptura na associação entre a
noção de condição humana e a ideia de propriedade foi introduzida pelos colonos
europeus em África desde finais do século XIX, e apenas a ignorância confunde
trabalho forçado e escravatura. Os impactos foram profundos na ultrapassagem da
escravatura enquanto fenômeno civilizacional dependente de contextos nos quais
a lógica do poder incide diretamente sobre os indivíduos. Em África, a
escravatura não teria funcionado como funcionou se tivesse sido incongruente
com as lógicas do poder ancestral africano que se mantiveram autônomas, e
relativamente estáveis, até ao século XIX.
Em suma, o contacto quotidiano direto
entre africanos e europeus, no plano da moral social e em muito por causa da
questão da escravatura, acabou por ser muitíssimo favorável ao progresso moral
e civilizacional de África.
A última palavra-chave da trilogia
progressista é Racismo. Tal como historicamente foi
instituído, o racismo foi deixando de existir à medida que fechou o ciclo do
nazismo, da discriminação racial formalmente instituída pelos estados
ocidentais, da colonização europeia, da Guerra Fria ou do apartheid na África
do Sul. O que hoje acontece é como se as pessoas do século XIX tivessem
continuado a utilizar a palavra «escravatura» quando o fenômeno se transformou em «racismo», apenas porque o objeto de
discriminação negativa continuou a ser o mesmo, os negros. Acontece que as pessoas
do tempo de Nietzsche foram bem mais lúcidas do que nós hoje ao ajustaram o
conceito ao real então vivido.
Dada a sua inapagável carga histórica,
o termo racismo nunca se libertará do pressuposto
emotivo e afetivo que transformará o branco sempre em carrasco
e o negro sempre em vítima. A rigidez mental desse tipo de
conceptualização conduz à perda de capacidade analítica, uma vez que o sentido
da vida vivida nunca está em estado de repouso e, com o tempo, por si mesmo o
real encarrega-se de desfiliar o rótulo do conteúdo. O problema é o das elites
bem-pensantes insistirem em aprisionar o sentido da vida vivida no presente
numa fórmula discursiva do passado que substitui o racional pelo místico.
Na dúvida, experimente-se, por
hipótese, ser branco na África de Sul ou cristão no Irão. Hoje os conteúdos das
relações inter-raciais, inter-religiosas ou interétnicas não se confundem com
qualquer passado, pelo que não conseguiremos captar com eficácia e justiça a
sua natureza enquanto insistirmos em conceitos anacrônicos, como o do racismo.
A recusa deste quando aplicado ao presente (não ao passado) constitui uma
pré-condição do regresso dos povos do Ocidente à sanidade mental.
As consequências históricas e sociais
da trilogia moral progressista – Colonialismo, Escravatura e Racismo –
traduzem-se na imposição às sociedades de orientações morais e intelectuais
abjetas quase impossíveis de combater por nos faltar a lucidez e a frontalidade
de um Nietzsche. Ler hoje o filósofo oitocentista e, depois, tentarmos
compreender o mundo em que vivemos dissipa dúvidas sobre a regressão moral,
intelectual e da liberdade no Ocidente. Assustador o suficiente para mudarmos
de vida.
Título e Texto: Gabriel Mithá
Ribeiro, Observador,
10-11-2019
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