Alexandre Homem Cristo
Foi uma vergonha a virulência dos ataques à
volta do artigo de opinião de um miúdo de 17 anos. Mas foi também um sinal de
alarme: o espaço público está doente, mais intolerante e muito menos livre.
Algo está mal no espaço
público quando este fica preenchido por discussões à volta de um artigo de
opinião de um miúdo de 17 anos. E algo está ainda pior quando, a propósito
desse artigo de opinião, o rapaz de 17 anos que o escreveu se vê alvo de
sucessivas tentativas de humilhação, chacota, difamações (a si e à sua
família), agressões verbais e bullying nas redes sociais. Foi
o que aconteceu a Manuel
Bourbon Ribeiro que, numa carta aberta ao país, partilhou a sua opinião sobre
os desafios sociais e políticos do momento. Problema? É loiro, tem dois
apelidos, parece um “beto” e defendeu o que, no jargão político, se chamaria de
“visão conservadora” – algo que, no mundo enviesado do comentário político e
das redes sociais, o faz ascender a caricatura da direita conservadora, uma
heresia punível com ódio e apedrejamento virtual.
Assim, sem perceber como, um
miúdo de 17 anos pousou os dois pés num combate político radicalizado – e foi
convertido em saco de pancada, não só por “anônimos”, mas também por políticos,
jornalistas ou humoristas.
Não creio que valha a pena
discutir o conteúdo do artigo de opinião em causa. Por maior maturidade que
tenha para a sua idade, um artigo de um miúdo de 17 anos estará inevitavelmente
repleto de certezas, de generalizações, de frases feitas e de uma certa
ingenuidade – e, por isso, acertará numas coisas e errará noutras (faz parte e
é mesmo assim). Do mesmo modo, seria contraproducente rebater as violentas
acusações de que o autor e a sua família foram alvo – e eu, que até sou amigo
da família, sei o quão absurdo foi o teor desses ataques. Ora, pondo tudo isso
de parte, o episódio tem algo na sua raiz que justifica uma reflexão sobre o
estado do nosso espaço público: a discordância de opinião (e logo com a de um
miúdo de 17 anos) justifica o que aconteceu – achincalhamento, agressões
verbais, ostracização social? Obviamente que não. Mas, infelizmente, este caso
tem cada vez menos algo de especial: o bullying virtual e a
agressividade vigente nas redes sociais são a nova realidade, seja no dia-a-dia
dos mais novos ou no próprio debate político.
Eis, portanto, o contributo do
artigo de Manuel Bourbon Ribeiro. Fazer-nos constatar (novamente) que o espaço
público está a ser corroído pelo mau uso das redes sociais, onde as discussões
e trocas de opinião foram substituídas por intolerância à diferença e por
personalização dos ataques. Lembrar-nos do perigo do desaparecimento do
diálogo, na medida em que esse vazio abala o pressuposto de ter na discussão e
na argumentação os instrumentos nobres para a obtenção das melhores soluções
para a comunidade – é, de resto, precisamente essa a vocação de um parlamento:
representar as várias visões presentes numa sociedade e pô-las em diálogo.
Mostrar que uma sociedade assim, envenenada pelo tribalismo identitário, se
fragmenta em grupos radicalizados onde o número faz a força das tiranias de uns
que oprimem a liberdade de outros. E, por fim, revelar que esta intolerância
tem origem, frequentemente, nos grupos sociais que se dizem mais “tolerantes”,
mas que, na prática, se alimentam da intimidação e do silenciamento daqueles
que de si discordam. Repare-se: mais do que ao conteúdo do artigo, as críticas
foram apontadas ao autor – ao seu nome, ao seu aspecto, à sua condição social,
ao seu alegado privilégio – e vieram precisamente dos que, à esquerda e em nome
de maior justiça social, censuram a perseguição das minorias sociais, rejeitam
as avaliações baseadas em preconceitos sociais e pretendem abolir o predomínio
da classe na ascensão social. Contra este miúdo de 17 anos, foi tudo isso que
fizeram: a mais odiosa rejeição do “outro” surgiu destes “tolerantes”.
Houve um tempo (e não foi
assim há tanto tempo) em que, argumentos trocados, se procuravam pontos comuns
ou, no limite, acordava-se em discordar. Não é esse o ar deste novo tempo
dominado pela imediatez das redes sociais. Já não se ouve o que os outros
dizem, fala-se por cima. Já não se argumenta, ataca-se pessoalmente o
adversário. Já não se recorre a factos, especula-se através do preconceito. Já
não se forjam entendimentos, queimam-se pontes. Já não se formam debates,
geram-se fóruns de humilhação. Já não se faz do discurso um nobre instrumento
democrático, lançam-se acusações. Eis um espaço público propício à mentira e
desinteressado da verdade, que vai aceleradamente corroendo os pilares de uma
sociedade livre.
Portanto, após os milhares de
cliques, leituras e partilhas do artigo, o que mais importa reter é isto. Sim,
foi uma vergonha lamentável a virulência dos ataques à volta do artigo de
opinião de um miúdo de 17 anos – ainda mais quando esses ataques foram
personalizados no rapaz e vieram de políticos e jornalistas, pessoas que na sua
vida profissional têm o dever de cuidar do debate público. Mas foi também um
retrato do nosso tempo e um sinal de alarme que faríamos bem em escutar: o
espaço público está doente, mais intolerante e muito menos livre.
Título e Texto: Alexandre
Homem Cristo, Observador, 7-11-2019
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