O “muro” que António Costa se orgulha de
ter derrubado abriu as comportas para uma mudança tectônica no sistema
político, de que a ascensão do Chega é apenas a mais recente, e inevitável,
manifestação
José Manuel Fernandes
Um dia Portugal ia
deixar de ser exceção, e não falo daquilo que está na moda falar, da “exceção
portuguesa à vaga populista”. Falo da exceção portuguesa que mantinha o
sistema político arrumadinho e seguindo os padrões clássicos do século XX. Isso
acabou, e se é por estes dias que muitos despertam para o fenômeno, quando veem o Chega a subir nas sondagens, é bom terem consciência que isso não acabou
agora, acabou em 2015, com a “geringonça”.
O “muro” que António Costa se
orgulha de ter derrubado abriu as comportas para uma mudança tectônica no
sistema político, de que esta evolução recente é apenas mais uma manifestação. O derrube do “muro” teve dois
efeitos de que agora começamos a ver as consequências.
A “geringonça” está a representar um beijo de morte para
o PCP, e o PCP era a principal barreira ao crescimento da revolta inorgânica
anti-elites.
O primeiro efeito foi
puramente político. A “geringonça” tornou claro que em Portugal passaria a
haver dois blocos a disputar o poder: um bloco “à esquerda”, em que o PS não
tinha problemas em fazer acordos de governação com partidos extremistas e
defensores de regimes autoritários (é bom não esquecermos o que defende
abertamente o PCP e aquilo que disfarçadamente o Bloco pretende) e um outro
bloco “à direita” onde, inicialmente, só existiam dois partidos tradicionais, o
PSD e o CDS.
Hoje já não é assim. PSD e CDS deixaram de estar sozinhos e, no futuro, depois do precedente da “geringonça”, não terão pudor de realizar os acordos que tiverem de realizar para governarem autarquias ou o país. Esse caminho foi seguido à esquerda e à direita noutros países (olhem para Espanha, só para não irem mais longe, com os radicais do Unidas-Podemos sentados no Conselho de Ministros ao lado do PSOE e o Vox a viabilizar executivos regionais e municipais do PP).
Hoje já não é assim. PSD e CDS deixaram de estar sozinhos e, no futuro, depois do precedente da “geringonça”, não terão pudor de realizar os acordos que tiverem de realizar para governarem autarquias ou o país. Esse caminho foi seguido à esquerda e à direita noutros países (olhem para Espanha, só para não irem mais longe, com os radicais do Unidas-Podemos sentados no Conselho de Ministros ao lado do PSOE e o Vox a viabilizar executivos regionais e municipais do PP).
O segundo efeito foi
estrutural. A “geringonça” está a representar um beijo de morte para o PCP, e o
PCP era a principal barreira ao crescimento da revolta inorgânica anti-elites.
Desde que há “geringonça” o PCP já sofreu três dos piores desastres eleitorais
da sua história (nas autárquicas de 2017 e nas europeias e legislativas de
2019) e está literalmente a desmoronar-se. Em algumas das áreas onde tinha
tradicionalmente mais influência foi onde o Chega obteve melhores votações.
Ao contrário do Bloco, que não tem raízes populares, o PCP sabia chegar ao eleitorado de deserdados e esquecidos para quem fala André Ventura. O “muro” derrubado por Costa era também um dique contra o crescimento deste novo tipo de força política, mas com o PCP em queda esse dique desapareceu. Como uma jornalista me disse recentemente, “os pais votam comunista, os filhos Chega”. Em breve os pais também votarão Chega.
Ao contrário do Bloco, que não tem raízes populares, o PCP sabia chegar ao eleitorado de deserdados e esquecidos para quem fala André Ventura. O “muro” derrubado por Costa era também um dique contra o crescimento deste novo tipo de força política, mas com o PCP em queda esse dique desapareceu. Como uma jornalista me disse recentemente, “os pais votam comunista, os filhos Chega”. Em breve os pais também votarão Chega.
Mas o que mudou na
política em Portugal não mudou apenas por efeito da “geringonça”. Também mudou
porque começamos a assistir às primeiras manifestações do tipo de divisões que
têm marcado as democracias desenvolvidas. Durante grande parte do século XX
habituamo-nos a olhar para a sociedade e a lê-la em função dos interesses
econômicos dos diferentes grupos sociais. Podíamos interpretá-la pela cartilha
da “luta de classes” marxista ou pela do “corporativismo” salazarista, mas a
matriz de base era a mesma, fossem quais fossem as variantes nacionais.
Um conjunto de fatores
econômicos, sociais e culturais que não vou aqui desenvolver foram criando nas
sociedades desenvolvidas outras linhas de clivagem. Vencedores da globalização
contra os derrotados do globalismo. Elites cosmopolitas versus profissionais
sem futuro. Comunidades antigas em choque com vagas migratórias. Velhas
fidelidades partidárias, de gerações, quebradas de um dia para o outro.
Identitários contra nativistas.
Esta mudança sísmica da velha
ordem social e política ajuda a explicar a vitória de Trump na esquecida
“cintura da ferrugem” dos Estados Unidos, a migração direta de eleitores
comunistas para o partido de Marine Le Pen, a polarização entre o Podemos e o
Vox que dilacera a Espanha, ou ainda o derrube por Boris Johnson da secular
“red wall” trabalhista na Inglaterra que resta da revolução industrial.
A nova esquerda, urbana, classe média, instruída, bem na
vida, deixou de conhecer os “de baixo”: não vive nos mesmos bairros, não andou
nas mesmas escolas, não vê os mesmos programas de televisão, não anda nos
mesmos transportes
Em quase todas estas mudanças
as elites foram apanhadas de surpresa – porque se operou uma verdadeira
clivagem social e política e porque a comunicação social também não conseguiu
perceber o que se estava a passar. Em quase todas estas mudanças a nova
esquerda, urbana, classe média, instruída, bem de vida, foi apanhada em contrapé:
não vivia nos mesmos bairros, não tinha andado nas mesmas escolas, não via os
mesmos programas de televisão, não andava nos mesmos transportes, no fundo não
conhecia os “de baixo” que dizia representar. Sem surpresa, deixou de os
representar. Deixou de ter as mesmas preocupações e inquietações, e trocou de
agenda. Sendo que sua nova agenda, mais fracturante e mais identitária, nada
diz à velha base social dos partidos da esquerda tradicional.
É assim que o Chega obtém os
seus melhores resultados em freguesias suburbanas (e no Alentejo) enquanto o
mais puro produto desta nova esquerda, o Livre, tem as suas melhores votações
em freguesias como a do Bairro Alto, em Lisboa.
Uma boa forma de termos
uma percepção deste divórcio é vermos como duas notícias foram tratadas no
último fim de semana.
A primeira, que coincidiu com
o momento em que o país virava os olhos para o congresso do CDS. É a história
do motorista da camioneta que chamara o polícia por causa de uma altercação com
a cidadã luso-angolana Cláudia Simões e que foi violentamente agredido em Massamá, tendo seguido para o hospital onde ficou internado
alguns dias, com o maxilar fraturado. Ainda nada sabemos sobre os agressores,
mas imaginamos, sobretudo depois de tudo o que se disse e escreveu sobre a
forma como Cláudia Simões terá tido agredida pelo polícia que a deteve. Nada
conhecemos também sobre as motivações da agressão, mas suspeitamos do pior.
Contudo desta vez ninguém suspeitou de racismo.
Sensivelmente 24 horas depois
noutro bairro periférico de Lisboa, a Quinta da Fonte, em Loures, uma patrulha da PSP foi recebida à pedrada quando lá
entrou para recuperar um carro roubado. Uma vez que não havia possibilidade de
pedir apoio ao Corpo de Intervenção, os responsáveis da polícia resolveram
adiar a recuperação da viatura, que tinha sido roubada em Sacavém, para o dia
seguinte. Mas no dia seguinte já não havia viatura: ela foi incendiada pelas 2h
da madrugada. Como se a Quinta da Fonte fosse um dos muitos subúrbios de Paris
onde a polícia não entra e onde ardem automóveis todos os fins-de-semana.
O establishment acha que nestes subúrbios o
único racismo que existe é o racismo branco – aliás para o establishment só
há racismo branco – e é cego relativamente a todas as restantes realidades, de
que o racismo faz parte, mas não é tudo.
Estes dois episódios não
mereceram muita atenção mediática, nem nenhuma mobilização ativista. Mas
receberam a atenção de um programa matinal de televisão, um daqueles programas
“para o povo” que a elite não vê. Mas que vale a pena ver.
De resto são também episódios
reveladores dos tempos que vivemos por existirem – isto é, por começarem a
acontecer nos subúrbios de Lisboa episódios típicos daqueles que caracterizam
os bairros segregados e degradados de outras grandes capitais europeias – e por
serem quase invisíveis. Isto é, os quotidianos de que estes episódios violentos
são apenas uma manifestação mais extrema são os quotidianos de centenas de
milhares de portugueses que por uma razão ou outra não têm voz, nunca têm voz.
É assim que se cria um vazio
político, que em tempos o PCP ainda conseguia ir preenchendo, mas que hoje só
encontra expressão em quem desafia o sistema e o establishment –
porque o establishment não quer sequer admitir que estes
problemas existem. O establishment nunca anda nos autocarros
da Vimeca. O establishment acha que nestes subúrbios o único
racismo que existe é o racismo branco – aliás para o establishment só
há racismo branco – e é cego relativamente a todas as restantes realidades, de
que o racismo faz parte, mas não é tudo.
Assim chegamos à
sondagem que surpreende: o Chega empatado nos 6% com o PCP e o PAN e já bem à frente do CDS. Mas
uma sondagem que não devia surpreender. Estava escrito nos astros que ia
acontecer.
Ninguém pode adivinhar como
irá evoluir o sistema político português, mas hoje além de sabermos que a
formação de qualquer Governo terá sempre de se ancorar num dos dois blocos que
a primeira “geringonça” consolidou como modelo para a alternância política,
também sabemos que muito dificilmente haverá partidos em condições de repetir
maiorias absolutas.
A vigilância sobre a linguagem, antes um monopólio da
esquerda, é hoje disputada pelos que recordam os excessos de linguagem a que
essa mesma esquerda já se entregou
Os votos seguirão por isso ou
“causas” – há menos fidelidade partidária, tal como há muito menos clareza do
que havia no passado sobre o significado de modelos ideológicos distintos para
a sociedade –, ou “revoltas” ou simplesmente lógicas de contribuir para a
formação de maiorias plurais, tanto à esquerda como, no futuro, à direita.
Neste quadro o jogo é muito
mais aberto e também muito menos condicionado por disciplinas de linguagem.
Sobretudo a vigilância sobre a linguagem, antes um monopólio da esquerda, é
hoje disputada pelos que recordam os excessos a que essa mesma esquerda já se
entregou (o episódio relativo ao uso ou abuso do vocábulo “vergonha” no
Parlamento foi bem elucidativo de como os tempos mudaram).
O que me leva a regressar ao
ponto por onde comecei: quando se derrubam muros este nunca cai só para um
lado, há sempre passagens que se abrem para os dois lados. Há flancos que ficam
descobertos. E pode haver surpresas. A “geringonça” há quatro anos que anda a
falar para os funcionários públicos e os rentistas do regime, esquecendo todos
os portugueses “invisíveis”, os que têm ficado para trás, os que nunca são
notícia e nunca fazem greves. Quando esses portugueses em vez de optarem pela
abstenção forem votar é quase certo que teremos grandes surpresas.
Até porque um dia alguém
acabaria por falar a mesma linguagem deles, como já está a suceder. Agora só
falta que outro alguém que os descreva como um “cesto de deploráveis” para termos realmente o caldo entornado.
Título e Texto: José Manuel
Fernandes, Observador,
31-1-2020, 20h35
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