Portugal não é África. Não pelos ideais que
dominam os governantes e instituições. Portugal não é África apenas pela
dignidade da sua história e pela proteção e socorro material e estratégico
europeu
Gabriel Mithá Ribeiro
Há momentos assim. Um
indivíduo consegue uma abordagem pessoal dos problemas que os faz transbordar
para a consciência social. Não é necessário ser-se Jesus Cristo. Bastam
rejeições ululantes a quem coloca o dedo nas feridas da identidade social que
partilha.
Nas décadas recentes,
procure-se na poesia, música, literatura, cinema, religião, universidades,
imprensa, partidos, escolas, onde quer que seja, para se encontrarem os
responsáveis pela desorientação humilhante da secular alma portuguesa. Para se
escudarem de tão pesada herança, resta-lhes ostracizarem o político singular
que os perturba pela convicção, coragem, persistência. Em poucos meses, as
dores recalcadas foram libertadas e tornou-se irreversível o dever social de as
enfrentar.
Mas falta o essencial, a
prolongada caminhada terapêutica inevitavelmente dependente da disputa aberta
entre convicções morais e identitárias distintas.
Iniciada, a recuperação da
saúde mental coletiva mede-se pela crescente censura à amoralidade ambígua dos
que se equilibram em cima do muro, em particular quando a violência
física e o sacrifício da liberdade não se vislumbram. São os que se furtam aos
riscos, pessoais e sociais, suportados pelos que assumem um dos campos da
dignidade humana e coletiva. Esta terceira via, moral e identitariamente
descomprometida, transforma-se em depositária do pântano existencial
crescentemente insuportável e, por isso, no alvo fácil por ficar entretida
em cima do muro quando a disputa se converte em tão inevitável
quanto legítima para os dois lados da barricada.
Porque pessoas e sociedades
não são estáticas, moderação e prudência situam-se nas fronteiras escorregadias
da lucidez e da coragem ou da estupidez e da cobardia.
Sem dúvida que a complexidade
e subjetividade nunca desaparecem dos enredos sociais e históricos, todavia em
dias de disputa do primado moral a realidade, por si, encarrega-se de
interditar oscilações entre a coisa e o seu contrário, entre o universal e
estável versus o circunstancial e manipulável.
No pensamento social, são dias
em que se radicaliza a necessidade de demarcar o bem do mal, a ordem
do caos, o certo do errado, o justo do injusto,
a vida da morte, autorresponsabilidade da vitimização.
Descendo do abstrato ao vivido, estreitam-se as hesitações sociais entre libertação
e escravatura, independência e império, humanismo e
tortura, vida e genocídio, democracia e ditadura,
integridade humana e mutilação genital, justiça e linchamento,
nacional e estrangeiro, ocidental e antiocidental, estabilidade
e violência, honestidade e corrupção; não-ser-racista
e ser-racista. Exemplos de contextos determinados pelo retilíneo primado
moral.
Não assumir a razão moral como
causa da longa crise portuguesa é recusar validade ao pressuposto fundador da
condição humana e da vida social. Motivo para as próximas disputas eleitorais
assumirem sabor a farsa se a sua substância não for a disputa legítima e
clarificadora da ordem moral coletiva.
À desesperada necessidade do
senso comum em simplificar e clarificar os valores e princípios orientadores da
vida quotidiana, o psicólogo social Serge Moscovici chamou-lhe representação
social. A ignorância dos letrados, bem mais pestilenta do que a censura,
hoje chama-lhe populismo ou demagogia e, por
arrasto, humilha as pessoas comuns justamente quando tentam reerguer a sua
dignidade.
Em quaisquer circunstâncias
históricas, jamais poderá estar em causa o dever do respeito pela neutralidade
dos indivíduos, atitude indissociável do retraimento introspetivo quando a
disputa é moral tendo em conta que nenhuma sociedade é viável com duas morais,
uma para nós e outra para eles. A retórica amoral
balofa dos que insistem em ficar em cima do muro situa-se nos
antípodas dessa condição. Tudo resulta demasiado evidente em posicionamentos na
comunicação social face decisões, episódios ou notícias conotados com a
polarização entre sensibilidades morais e identitárias fortemente
contraditórias, hoje representadas no parlamento.
Além disso, o contexto atual
faz sobressair a diferença entre os dominados pela incapacidade de distinguir
a compreensão dos problemas do dever de resolução
desses mesmos problemas, os que vivem da procrastinação, dos que possuem
maturidade cívica. O mundo não é apenas um lugar para se compreender, mas
também para se agir uma vez que o indispensável conhecimento da razão, que se
situa nos antípodas da fé, não basta porque eternamente ínfimo face à
incomensurável complexidade da condição humana. Maturidade é agir no respeito
pela secular identidade dos povos, pela sua história, tradição moral, crenças,
convicções; maturidade é abrir a porta à transcendência. Gilbert Keith
Chesterton esclareceu: «O louco não é alguém que perdeu a razão, é
alguém que perdeu tudo menos a razão.»[1] E as elites pensantes enlouqueceram.
Por seu lado, o intuitivo senso
comum filiado a experiências concretas do quotidiano começa, felizmente, a
acumular anticorpos contra os obcecados em desencantar um Hitler a cada
esquina. São os que ignoram que o inegável horror nazi é dos poucos males na
face da terra inequivocamente exorcizado, como a inquisição católica, o
absolutismo monárquico ou a escravatura no mundo ocidental. Essa é a
inigualável tradição do Ocidente onde a violência moral e intelectualmente
assumida nunca se repetiu em gerações e séculos seguintes.
Ignorar ou renegar tal
evidência é o seguro de vida da mais perigosa ameaça à condição humana, a
gerada pelo horror comunista que sobrevive por nunca ter sido moral e
intelectualmente exorcizado. Após o final da guerra fria (1945-1991) pôde
manter-se em rédea solta no seu antiocidentalismo e contaminar toda a esquerda.
A alma portuguesa afundou-se por isso mesmo.
Existe uma diferença humana
abissal entre o crime que foi o nazismo e o crime que é o
comunismo. Travar esse horror vivo implica um muro de valores morais e
identitários, assim como de atitudes e de figuras públicas fiáveis que
delimitem, com clareza, a direita da esquerda. São raríssimos os políticos
conscientes dessa imposição moral e identitária, ainda mais raros os capazes de
fazê-la vingar num mundo mentalmente adoecido.
Olhe-se para a África
pós-colonial que não é indiferente à identidade portuguesa, o continente que
mais necessitava e necessita de desenvolvimento, mas ao qual se impôs, há meio
século, um rumo na direção contrária. Admitindo a legitimidade das comparações,
África é a prova provada da herança moral e material da esquerda distinguir-se
para pior dos nefastos nazismo e fascismo, os últimos ainda assim com
consequências bem mais circunscritas no espaço e no tempo.
A desgraça africana adensa-se
ao contextualizar o continente no percurso dos demais continentes, por exemplo,
quanto à evolução da qualidade do ensino, saúde pública, saneamento, segurança
pública, emprego, justiça, equilíbrios ambientais, por aí adiante. Do progresso
continuado do nível de vida das populações durante o período de ocupação
colonial europeia efetiva transitou-se para um interminável ciclo de regressão.
A quem nunca pesou na
consciência um tal destino imposto ao continente mais periférico, e sobretudo
aos mais carenciados desse mesmo continente, já descontando o que aconteceu e
acontece em muitos outros territórios pelo mundo fora, não se concede
tolerância, como não se concedeu ao nazismo e ao fascismo. Transformar a
pobreza material circunstancial, a das sociedades africanas do tempo colonial,
em pobreza moral endémica fruto de experiências ideológicas e políticas
pós-coloniais com a vida das pessoas, e da exclusiva responsabilidade da
esquerda, constitui um crime contra a humanidade sem paralelo na história da
consciência humana, e cujas consequências continuarão a projetar-se nas
próximas gerações africanas.
Se isso não atormenta o nosso
dever de valorizar a condição humana, restará a selvajaria. É doloroso ver
o velho Ocidente mergulhado no descalabro moral e intelectual
ao nem sequer reagir a tal hecatombe humana que o tempo não para de tornar
óbvia, e que vai alastrando a esse mesmo Ocidente.
Portugal não é África. Não
pelos ideais políticos que dominam os seus governantes e instituições. Portugal
não é África apenas pela dignidade da sua longa história e pela proteção e
socorro material e estratégico europeu. Mas há quem julgue que a culpa do longo
mal-estar moral português é do tal político entrado no
parlamento há meses, agora também candidato às eleições presidenciais. Numas
paragens a estupidez prospera, do outro lado do oceano os Estados Unidos da
América.
[1] Citado por Pedro Picoito (2019)
«“Ortodoxia”, G.K. Chesterton» in Linhas Direitas. Cultura e Política à
Direita, Lisboa, Dom Quixote, p.179.
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro, Professor, investigador e ensaísta, doutorado em Estudos
Africanos, Observador,
1-3-2020
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