Cada vez que o sistema ataca o Chega, está
a dizer aos portugueses desiludidos e zangados para votarem no partido de André
Ventura. E é isso que eles vão fazer.
João Marques de Almeida
Aparentemente, a nossa classe
política anda muito preocupada com o crescimento do Chega. Os jornalistas,
esses, por vezes parecem histéricos. Mas o que mais admira é a surpresa desta
gente toda que anda na política portuguesa há décadas.
Começo com mais um exemplo da
hipocrisia organizada em que se está a tornar a política nacional. Todos se
indignaram com as declarações infelizes de André Ventura. Foram infelizes,
embora irónicas, mas foram apenas declarações. Mas as mesmas pessoas nada
disseram sobre uma das maiores fraudes políticas dos últimos anos. Cansado de
nunca eleger qualquer deputado, em Portugal ou na Europa, o Livre arranjou uma
mulher negra e com uma deficiência física para conseguir finalmente eleger um
deputado. Como já se viu, não havia qualquer relação política profunda entre o
Livre e Joacine. O Livre usou a Joacine como uma espécie de barriga de aluguer
política. Mas ela resolveu ficar no Parlamento contra a vontade do partido. Fez
muito bem. O oportunismo do Livre foi repugnante. Pagou o preço que merecia.
Passemos agora à análise
(aviso já que pode ser um pouco maçadora, por isso quem não está para maçadas
pode parar de ler agora). A década que passou trouxe uma série de tempestades
políticas ao nosso país. Tudo começou com a bancarrota de 2011. Portugal foi obrigado
a pedir ajuda financeira à União Europeia e ao FMI, como se fosse um país pobre
do terceiro mundo e não um membro da União Europeia, uma das regiões mais
prósperas do mundo. Um país que havia recebido bilhões de fundos durante mais
de duas décadas foi à falência. Como foi possível isso acontecer? O que
pensaram os portugueses? Que foi o resultado da crise financeira global? Isso
foi conversa de quem estava no poder e de alguns economistas, que são capazes
de dizer seja o que for para não criticar um governo socialista. Para a maioria
dos portugueses, a falência nacional foi resultado da corrupção e da
irresponsabilidade financeira do governo socialista de Sócrates. A maioria dos
portugueses passou a olhar para a política como um modo de se conseguir benefícios
pessoais, como um modo de enriquecimento individual, e não como um serviço
público. A falência de um país tem consequências terríveis para a imagem de
quem nos governa. Só não percebe isso quem não quer.
Os três anos de troika apenas
aumentaram o sofrimento e a desilusão dos portugueses. Muitos pensionistas da
classe média trabalharam uma vida inteira, a maioria sem nunca ter recebido
ordenados elevados, e viram as suas pensões reduzidas. É verdade que aqueles
com pensões mais baixas foram poupados, mas muitos dos que sofreram cortes
vivem no limite das suas pensões. Tudo o que se passou entre 2010 e 2015
provocou muita desilusão, piorou a imagem dos partidos e afastou muita gente da
política.
Estava o país a começar a
acalmar e chegou a revolução política de 2015 chamada geringonça. A curto prazo
a habilidade, o “optimismo irritante” de António Costa, a simpatia e os afetos
de Marcelo Rebelo de Sousa tornaram o ambiente mais ligeiro, aliviando o país.
Mas os efeitos foram mais aparentes do que reais. A aliança do PS com os
comunistas e com os bloquistas foi uma tempestade política, cujas consequências
só agora estamos a perceber. A primeira foi a mais óbvia: a raiva de uma parte
do eleitorado de direita.
Para grande parte do
eleitorado de direita, os socialistas levaram o país à falência, pediram ajuda
externa e foram-se embora. Um governo de direita foi obrigado a fazer o
trabalho duro e difícil e, apesar de tudo, conseguiu ganhar as eleições em
2015. No entanto, apesar da vitória eleitoral, o PS regressou ao governo
apoiado pelas esquerdas radicais. Reconheço que vivemos numa democracia
parlamentar e a solução de António Costa foi inteiramente legítima e
politicamente hábil. Mas esse não é ponto central. A política não se reduz a
argumentos racionais, tem uma dimensão emocional importante. E parte da direita
ficou magoada e zangada. Não deveria custar muito perceber isso.
Com uma parte da direita
zangada, Costa formou um governo maioritariamente de ministros que tinham
estado no governo que levou o país à falência. Pareceu que estava a gozar com
os portugueses. Além disso, um presidente da república eleito por grande parte
da direita zangada começou a dançar serenatas à chuva com Costa e a tirar
selfies com tudo o que é ministro socialista. Obviamente, Marcelo não foi
eleito para combater o governo e do seu ponto de vista interessava-lhe manter
uma boa relação com os socialistas. Mas Marcelo Rebelo de Sousa poderia ter
pensado um pouco na direita zangada que votou nele e ter sido mais discreto e compreensivo
em relação às mágoas de parte do seu eleitorado. Ainda por cima um político que
se orgulha da sua inteligência emocional. Mas Marcelo não fez nada disso. A
direita zangada sentiu-se também humilhada e abandonada.
Mas a geringonça provocou
outros efeitos. Em primeiro lugar, aumentou a arrogância do Bloco. Deslumbrados
com o poder, tentaram impor a sua agenda cultural revolucionária aos
portugueses sem olhar a meios nem a limites. Passaram a atacar sem dó a noção
de família tradicional. Há uma grande diferença entre defender os direitos de
novas formas de vida familiar e atacar a família tradicional, o que obviamente
um partido revolucionário como o Bloco nunca conseguirá entender. Quiserem
também proibir tradições e costumes portugueses, como a tourada e a caça, luta
à qual se aliou o PAN. Por fim, começaram a atacar a própria história de
Portugal e o passado dos portugueses, neste caso com o Livre a juntar-se à
festa. As esquerdas radicais acreditam mesmo que podem tentar alterar a
identidade de um dos países mais antigos da Europa sem que isso tenha
consequências políticas? Dito de outro modo, enlouqueceram ou ficaram cegos com
a ideologia e o poder?
O PCP também pagou um preço
elevado com a geringonça: juntou-se a um dos inimigos capitalistas de sempre,
abandonando a classe trabalhadora. Passaram décadas a atacar o PS, e por vezes
com violência, e de repente aliam-se aos antigos inimigos. Terão explicado isso
bem aos seus eleitores? Os últimos resultados eleitorais sugerem que não. Com a
geringonça, o PCP perdeu eleitores que jamais recuperará.
A geringonça mostrou ainda
mais duas coisas. O radicalismo deixou de pagar um preço político. Desde que
consigam os votos suficientes, os partidos radicais acedem ao poder. Desde
2015, o poder deixou de estar vedado aos radicais ou aos extremistas. Como
explicou Costa, já não há muros para manter radicais fora do poder. André
Ventura aprendeu com Costa que no dia em que alcançar 10% de votos fará parte
de um governo de direita. E o PSD também vai aprender. Será uma questão de
tempo e de saudades do poder. Além disso, a geringonça também mostrou que uma
aliança com partidos extremistas não implica perder votos ao centro. Mas uma
lição de Costa para o PSD aprender.
A década que passou trouxe
demasiados choques e convulsões aos portugueses. Foram crises económicas,
falências financeiras, sofrimentos sociais, casos de corrupção (envolvendo um
primeiro ministro), mentiras, faltas de respeito com os portugueses,
irresponsabilidades dos governos e revoluções políticas. A década que passou
foi a mais complicada e radicalizada desde a de 1970. A nossa classe política
acreditou que depois de dez anos assim, tudo ficaria na mesma?
Nas últimas eleições, metade
dos portugueses não votaram. Repito: metade. A culpa foi dos partidos que os
abandonaram. Muitos deles continuarão absolutamente desligados da política e
não votarão. Mas muitos não se sentem representados pelos partidos políticos
tradicionais. Desses, seguramente que muitos não concordarão com Ventura em
relação a certas questões e não concordam com tudo o que ele diz. Mas querem
castigar os partidos tradicionais. Só precisam de um partido fora do sistema,
para voltar às urnas. Cada vez que o sistema ataca o Chega, está a dizer aos
portugueses desiludidos e zangados para votarem no partido de André Ventura. E
é isso que eles vão fazer. Os líderes políticos nacionais querem saber quem são
os culpados do crescimento do populismo em Portugal? Vejam-se ao espelho. Não
culpem é os eleitores. Em democracia, os políticos não mudam de povo. Mas o
povo muda de políticos. Não têm notado o que se passa na Europa, no Brasil e
nos Estados Unidos?
Título e Texto: João
Marques de Almeida, Observador,
2-2-2020, 0h35
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