Portugal tem de vencer a descrença coletiva
através da revitalização do ensino, a reforma das reformas inviável sem o
comprometimento dos indivíduos comuns num projeto que sirva de alavanca social
Gabriel Mithá Ribeiro
O ciclo histórico iniciado no
final da segunda guerra mundial (1939-1945) com estabilidade política e social
e prosperidade econômica, entretanto inverteu-se pela crescente descrença do velho Ocidente
em si mesmo. É tempo do sábio Arquimedes: Dai-me uma alavanca e um
ponto de apoio e moverei o mundo.
A Portugal não falta potencial
histórico, cultural, social e intelectual para se transformar num dos países
mais estáveis e prósperos do mundo. A pré-condição é vencer a descrença
coletiva através da revitalização do ensino, a reforma das reformas inviável
sem o comprometimento dos indivíduos comuns num projeto agregador que sirva
de alavanca social movida pela secular capacidade dos portugueses
em vencerem grandes causas, desta feita transformar o ensino no ponto
de apoio da riqueza da nação e numa das suas instituições mais
sólidas.
Razões para os portugueses
imporem a si mesmos o dever de renovarem o seu contrato social. Cumprir-se
Portugal é o título. Ao primeiro subscritor compete apresentar o
conteúdo do mesmo, aos demais subscritores partilharem o desígnio renovador.
Um contrato social nasce de
deveres morais e cívicos
Em defesa intransigente da
democracia e da sociedade aberta fundadas na liberdade individual, a
legitimidade do presente contrato social depende da partilha, entre os
subscritores, do pressuposto moral da autorresponsabilidade individual,
institucional e coletiva. Tal ponto de partida é incompatível com o ideal
social de vitimização, a fonte-mãe do estado de falência moral e
intelectual do ensino que contaminou a sociedade no seu conjunto desde a
instituição base, a família.
Na gênese do fenômeno estão
mentes predispostas a defender oprimidos contra opressores, reais e imaginários.
Todavia, o obstáculo não reside nesse ideal, apenas em atitudes protetoras que
se posicionam, por princípio, contra a autoridade e a ordem tomadas como
opressoras onde e como quer que se manifestem e interpretadas como manietadas
pelos poderosos, o que invariavelmente instiga a descrença na milenar tradição
histórica, cultural, filosófica, científica, intelectual ou institucional do
Ocidente.
Sendo o conhecimento
intrínseco à condição humana, um contrato social promotor da dignidade,
liberdade, justiça e prosperidade individual e coletiva não é compatível com
relações entre alunos (oprimidos) e professores (opressores)
aprisionadas naquela grelha mental materializada, nas décadas recentes, em
políticas de ensino e imposições pedagógicas contrárias aos fundamentos
civilizacionais do conhecimento e da sua transmissão social. A asserção é
validada por salas de aula tornadas inadequadas à generalização da formação
escolar de qualidade.
Esgotadas de vitimização e
com a bússola mental redirecionada para a autorresponsabilidade, as
sociedades estão a renovar a sua ordem moral, porém sem impactos no ensino. Tal
como existem ideais políticos distintos entre a esquerda e a direita sobre o
Estado, a economia ou a regulação de fronteiras, o mesmo deve acontecer no ensino,
o domínio da vida social que sustenta os demais.
Compete à direita colocar-se
ao nível da esquerda, esta hegemônica, instituindo também aquela um ideal
próprio de ensino para que este deixe de ser o parente pobre do direito de
escolha das democracias sobre matérias fundamentais. A liberdade continuará
truncada enquanto cidadãos e famílias não dispuserem de políticas de ensino
diferenciadas assentes em mensagens coerentes e claras dirigidas, em
simultâneo, num extremo à intimidade das salas de aula (o âmago do ensino) e no
extremo oposto aos indivíduos comuns (a sociedade que o patrocina).
Essa transversalidade define,
por excelência, as relações contratuais entre o Estado e a Sociedade, na
atualidade dominadas por jogos de poder partidários propensos a ignorar os
desafios da vida quotidiana, a fonte da erosão da qualidade das instituições e
da qualidade da democracia pela abstenção eleitoral. Rumar em sentido contrário
significa garantir maior expressão do sentido existencial das pessoas comuns
junto dos poderes tutelares do Estado.
Para isso, o eixo estratégico
do contrato social tem de ser deslocado da classe e da ação políticas,
justamente para preservar a dignidade destas, para o ensino e para o vasto e
heterogêneo corpo docente sem que o último seja confundido ou reduzido às suas
lideranças, sindicais ou de outra natureza. Trata-se da pré-condição mais
eficaz para os países garantirem horizontes de dignidade, liberdade, justiça e
prosperidade a todos os seus cidadãos, desde que o contrato social assuma a
valorização da missão dos professores cujo impacto é massificado e prolongado
na vida dos indivíduos, da infância à entrada na idade adulta.
Tal desígnio coloca no mesmo
nível a violência doméstica, na intimidade da vida familiar, e a indisciplina, na
intimidade da sala de aula, enquanto desafios à moral social ancorados na
família e no ensino, as duas instituições nucleares. Trata-se de fenômenos que
envolvem sujeitos dominados por contextos que os forçam a manter os atropelos à
sua dignidade em silêncios pessoal e socialmente patológicos dado que o pior
não é reparável, perdura na memória, mesmo quando se faz justiça, males que
prejudicam toda uma família ou a qualidade do restante percurso escolar de toda
uma turma.
Da articulação entre opções
políticas e opções pedagógicas vigentes resultou a propagação da indisciplina
em contexto escolar, semente de fenômenos esterilizadores da vida social que se
estendem da agressividade verbal à violência psicológica e física.
Após décadas de consequências
cumulativas agravadas nenhum poder tutelar, de acadêmicos a políticos incluindo
os órgãos de soberania, pode alegar desconhecimento ou inocência. Daí não ser
legítimo que se coloquem à margem desta iniciativa cívica de renovação do
contrato social apostada em garantir que a qualidade vida social se sustente na
dignidade moral, institucional e cívica das pessoas comuns em muito gerada a
partir da intimidade dos quotidianos de sala de aula.
Outro princípio do sentido de
justiça deste contrato social é o de permanecer aberto a todos os indivíduos e
instituições. Fundamentais às democracias, os partidos políticos que nele
invistam investem também no seu reconhecimento social e eleitoral transversal
(dos pobres aos ricos), amplo (a escolarização é massificada) e renovável (o
ensino prepara cada nova geração).
Os cinco grandes inimigos
da prosperidade portuguesa
Cumprir-se Portugal é
um desígnio coletivo incisivo: gerar consensos sociais e institucionais que
protejam as salas de aula dos cinco grandes inimigos da sociedade digna, livre,
justa e próspera (a ordem é aleatória).
1º A qualidade do ensino,
antecâmara da qualidade da vida social, resulta da observância dos princípios
da transparência, honestidade e neutralidade política, qualquer deles inimigo
da anarquia na classificação dos resultados escolares. O sistema de
ensino em vigor cruza variantes qualitativas (inúmeras fichas/relatórios para
cada aluno) e quantitativas (existem níveis de 1 a 5; valores
de 0 a 20; percentagens de 0 a 100; uma escala de 0
a 10 para as ações de formação dos professores) que se sobrepõem e
anulam entre si para, no final, ninguém ter mais certezas do que valem e quem
deve passar ou chumbar, transitar ou ficar
retido, campo aberto a todo o tipo de intervenções e manipulações políticas
e ideológicas atentatórias da estabilidade e viabilidade institucional do
ensino. Contra essa teia opaca que esconde do espaço público os erros
cumulativos das políticas de ensino nas décadas recentes, os instrumentos e
procedimentos em causa devem ser simplificados e estáveis do primeiro ciclo do
ensino básico ao ensino universitário para que os indivíduos comuns também os
entendam. Assegurar transparência, honestidade e neutralidade política não
corrige apenas as graves disfuncionalidades do sistema de ensino, como também
sedimenta as predisposições culturais e sociais contra a corrupção e contra a
inércia burocrática.
2º Tornar o ensino a fonte
privilegiada da moral social da autorresponsabilidade implica a defesa
intransigente dos exames nacionais em final de ciclo. Nunca se
comprovou a existência de alternativas capazes de regular a autonomia
inevitável do trabalho quotidiano das salas de aula mais fiáveis e objetivas,
menos burocráticas, ideologicamente mais neutras, socialmente mais justas. Por
funcionarem como pedras angulares da autonomia institucional que garante a
qualidade do ensino, o sistema de classificação dos resultados
escolares e os exames nacionais em final de ciclo selam
o contrato social tricotômico entre o ensino, a sociedade e a democracia. Razão
para ambos serem passíveis de consultas públicas para que a sociedade possa
democraticamente proteger ou renovar, com transparência, aqueles dois pilares
do sistema de ensino.
3º A burocracia volumosa do
ensino é inimiga da sociedade digna, livre, justa e próspera. Estão em
causa procedimentos burocráticos de controlo político possessivo dos atos de
ensinar e aprender de tal modo entranhados que não se estranha o isolamento,
silenciamento ou repressão da mais substantiva diferenciação pedagógica, a de
sentido liberal no pensamento e conservadora nas práticas com uma longa
tradição de provas dadas. O nosso ideal de sociedade jamais será compatível com
tão violento controlo político das consciências que tem de ser removido dos
quotidianos escolares. Em primeiro lugar, da regulação institucional de
atitudes e comportamentos dos alunos perdida no avolumar de
participações disciplinares escritas e demais procedimentos burocráticos cujo
efeito manifesta-se na desautorização do poder da palavra dos professores
comandados a partir do gabinete político do ministro da Educação por papéis e,
com isso, ficou deslegitimado o exercício de autoridade autônomo, direto,
simples, adulto por parte dos profissionais do ensino quando está em causa o
avolumar de situações comuns, contudo cruciais, sendo que a falta de
dignificação e democratização do exercício legítimo da autoridade em sala de
aula é inimiga de condições de ensino moralmente aceitáveis. E em segundo
lugar, do aproveitamento escolar cuja tônica o poder político
coloca em volumosas exigências burocráticas e administrativas remetidas para
docentes e estabelecimentos de ensino, razão da fragilização nas gerações
recentes dos pressupostos institucionais, culturais e sociais que incentivam
estudantes e famílias a investir no estudo, esforço e observância de regras
para garantirem o sucesso escolar por si mesmos, o que faz das políticas de
ensino vigentes inimigas de uma sociedade de adultos pessoal, familiar e
profissionalmente dinâmicos e autorresponsáveis.
4º A qualidade do sistema
de ensino – e do tipo de vida cultural, cívica, profissional ou económica que
dele derivam – são inimigos de currículos escolares injustificadamente
extensos, inadmissivelmente atravessados por propósitos de doutrinação
ideológica sectária, disfuncionalmente flexíveis, instáveis. Retrato
curricular do ensino básico e secundário extensível aos programas das
disciplinas. A comparação entre o número e tipo de disciplinas, assim como da
carga horária semanal atuais com os anteriores à vaga reformista em curso desde
os anos noventa deixam salientes a face perversa das gorduras tóxicas da
despesa pública. Nada legitima jobs for the boys, recrutamento
de tropas sindicais ou compra de votos alimentados pela
sobrecarga dos horários escolares dos alunos, causa em si da perda de qualidade
do que aprendem e como aprendem. Não menos grave tem sido a degradação da
preparação científica, intelectual e da motivação dos professores no decurso
das suas longas carreiras imposta por um tipo de formação profissional apostado
em desviá-los das áreas científicas ou acadêmicas de origem (português,
matemática, inglês, francês, história, geografia, físico-química, ciências
naturais, filosofia, artes) em troca da fidelidade compulsiva à ideologia
ativista sectária em formato de pedagogias ativas. Ao fim de
décadas, a sociedade está transformada numa experiência laboratorial
permanentemente a caminho da desregulação, da histeria e do falhanço.
5º O atropelo reiterado das
fronteiras institucionais entre partidos políticos e universidades é o maior
inimigo da socialização da qualidade do conhecimento científico, intelectual ou
analítico. Dessa relação perversa nasceu e adensou-se a névoa ideológica
mais tóxica que paira nas salas de aula, as ciências da educação e
sequelas, barrigas de aluguer da revolução das mentes em curso nunca
explicitamente consentida pelas democracias, cidadãos e famílias. A
instrumentalização política do conhecimento e da pedagogia jamais será
compatível com uma sociedade digna, livre, justa e próspera.
Disposição final:
contratualizar a alma portuguesa
Crises endêmicas e sentimentos
de descrença são testes à maturidade da alma dos povos. Séculos de história e
de presença pioneira no mundo permitem aos portugueses assumir, por si mesmos e
de forma pacífica, o dever moral, cívico e político de renovarem o seu contrato
social. Cumprir-se Portugal é um justo tributo ao gênio do
poeta Fernando Pessoa e, através dele, às gerações do passado, do presente e do
futuro.
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro, Primeiro subscritor, Observador,
8-2-2020, 7h37
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