Em Nova Iorque tudo é caro e chique e padronizado e cansativo. Sei que é o capitalismo a funcionar, mas aborrece-me que os capitalistas em questão ostentem o rosto do “Che” na “t-shirt” de marca
Alberto Gonçalves
Após quase quatro anos de
ausência, vinte mil quilómetros de avião e cinco mil de carro, regressei de
três semanas nos Estados Unidos. Eis o que vi.
Vi o derradeiro avanço da “gentrificação” das cidades, principalmente Nova Iorque, que se tornou de vez um retiro de abonados. O curioso é que os beneficiários não usam a cartola, o monóculo e as polainas da lenda. Não, senhor. Uma breve observação nas zonas residenciais, como o Upper West Side ou a Village devolve-nos um desfile de criaturas saídas das séries da Netflix ou do Disney+: jovens com consciência da moda e profissões “criativas”, afetados, sensíveis e que terminam as frases afirmativas num tom interrogativo e que dá vontade de os agredir com um rodovalho na cabeça. Ou seja, o tipo de criaturas que, se chamadas a fazê-lo, condenam a “gentrificação” por remover a “alma” dos bairros e fingem não perceber que são eles os protagonistas do processo. John Varvatos, o “designer” que já em 2008 abriu uma loja caríssima e inútil no lugar do infecto e saudoso CBGB, o berço do “punk” e da “new-wave”, é um ruidoso defensor de todas as patetices “woke”.
Ao som de protestos
hipócritas, a “alma” de Manhattan, que só apanhei de raspão vai para duas
décadas, sumiu sem deixar rasto nem inspirar culpa. Até os “delis” de fancaria,
que haviam substituído os verdadeiros, estão a ceder à praga de cafetarias
“orgânicas” e assépticas, onde um reles “espresso” vem com pedigree e custa
quatro dólares. Não há espaço para a excentricidade (em São Francisco, diga-se,
espaço não falta: no Castro, o bairro gay, vi três homens completamente nus a
almoçar numa esplanada) nem para a tradição e o hábito (desde 2018, a Amoeba
Records de Los Angeles foi despejada em favor de uma “experiência imersiva”
sobre Van Gogh, que para cúmulo desfigurou o edifício de arquitetura “googie”).
Em Nova Iorque, fora o tradicional lixo nos passeios e as habituais ratazanas,
tudo é caro e chique e padronizado e cansativo. Sei que é o capitalismo a
funcionar, mas aborrece-me que os capitalistas em questão ostentem o rosto do
“Che” na “t-shirt” de marca.
Vi inúmeras lojas fechadas, umas por estreitamento do horário, outras por estrangulamento da economia. No primeiro caso, ainda em 2018 era facílimo encontrar em Nova Iorque um restaurante aberto de madrugada. Agora, até os coreanos têm horário de encerramento (meia-noite, valha-me Deus). Às dez, salvo por um ou dois pedaços, São Francisco está a dormir. Phoenix, que nunca se notabilizou pela boémia, mas hoje é uma megalópole sem fim, idem. Los Angeles, ibidem. Las Vegas é há muito um pandemónio deprimente. Tomar um café à uma da manhã transformou-se num desafio. Não sei a razão, mas responsabilizo a inclinação deliberada ou fortuita para transformar o mundo num lugar mais triste a cada ano que passa. Pelo contrário, no segundo caso desconfio da causa que levou incontáveis estabelecimentos a fechar definitivamente e a assemelhar zonas prósperas das principais cidades a lugarejos delapidados do Mississippi, com tapumes a vedar a vitrine do que outrora foi uma promessa de negócio. Mais alguém aposta nas brincadeiras a pretexto da “pandemia”?
Vi que as brincadeiras
deixaram vasta herança. A reboque das falências e do desemprego, as
estatísticas e meia dúzia de cidadãos sortidos contaram-me que o crime urbano
subiu imenso nos últimos dois anos. Julgo que a nova susceptibilidade das
autoridades às críticas por “excessos”, a beatificação racista das “minorias” e
os progressos das drogas sintéticas também não serão alheios à tendência. Ao
entardecer e com frequência em pleno dia, em qualquer sítio com mais de cem mil
habitantes, há dois zombies a cada esquina. Esclareço que nenhum me atacou,
embora alguns me tenham cravado cigarros com sucesso.
Vi que, ao contrário dos seus
custos, a “pandemia” desapareceu, tirando nos bonacheirões que mantêm a máscara
e em certas reservas índias, que mantêm as restrições por inteiro. Os pobres
“nativo-americanos” continuam com pavor das doenças dos brancos, por acaso
oriundas da China, e continuam a ser manipulados por eles. Amber, uma navajo
educadora de infância, informou-me que 10% dos “indígenas” (termo oficial)
morreram de Covid. Sem descontarmos a inflação nas contagens, o valor “correto”
é 0,4%, de facto um pouco acima das demais etnias.
Vi, dentro e fora das reservas do Arizona, do Novo México e do Nevada, o culto de Trump em rédea solta. Por toda a parte abundam, à venda e já vendidos, dísticos, camisolas e bonés a solicitar o regresso do empresário à Casa Branca. O entusiasmo é apenas proporcional à repulsa pelo sr. Biden, o taralhouco em funções. Nada é tão americano, no sentido de interessante, quanto um índio montado numa Harley decorada com uma enorme bandeira a declarar “Fuck Brandon” (procurem na net as origens da expressão, mas “Let’s Go Brandon” é uma maneira gentil de insultar o sr. Biden, gentileza que o índio em causa dispensou).
Em Oatman, numa parte velhinha
da Route 66, tudo exceto os burros selvagens é simbologia republicana. Em
Winslow, Arizona, um comércio central de “souvenirs” converteu-se numa casa de
propaganda libertária. Perguntei ao dono se tinha clientes democratas. Prendeu
um sorriso e respondeu que sim, e que metade saía logo depois de entrar. Eu
demorei-me o suficiente para adquirir um par de livros (apolíticos) e um belo
chapéu com a “Gadsden flag”.
Vi a segunda melhor coisa que
a América tem: americanos. Não conheço lugar em que seja tão fácil encontrar
sujeitos assim decentes e cordiais. Basta evitar as principais cidades. Nas
“small towns” e na ruralidade pura, as pessoas cumprimentam-nos à toa, puxam
conversa com sincero empenho, seguram-nos a porta o tempo necessário e o
desnecessário, não buzinam as nossas asneiras rodoviárias, abrandam para
entrarmos na estrada etc. Claro que, na América que o cinema e a televisão nos
impingem, a América do sr. Biden e das sinistras corporações “modernas”, estas
pessoas ou não aparecem ou aparecem sob a forma de caricaturas, para efeitos de
galhofa ou sociologia. Claro que estas pessoas retribuem o desprezo.
Vi, e revi e hei de rever
enquanto puder, a melhor coisa da América: as prodigiosas avarias que a natureza
por lá semeou, principalmente no Sudoeste. Nos últimos cento e cinquenta anos,
pelo menos, produziram-se milhares de páginas a notar a impossibilidade de
descrever semelhantes paisagens. Não contribuo para o rol. Limito-me a
confirmar que enfim o pobre cliché da “beleza indescritível” é adequado. Ateu,
sempre que atravesso aqueles desfiladeiros, aqueles vales, aquelas “mesas”,
aqueles rochedos, aqueles desertos e aquele céu, todos desmesurados, chega-me a
suspeita de que o divino afinal existe, e vive ali. E a certeza que dali, à
revelia das mudanças do mundo, não sairá.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
3-9-2022, 0h21
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-